Acordo entre deputados tira temas espinhosos da pauta, mas Alesp estuda criar ‘dia da polêmica’
Deputados estaduais paulistas mantêm um acordo informal que garante a aprovação de projetos sem discussão no plenário da Assembleia Legislativa de São Paulo (Alesp). O arranjo, que atropela o debate público, envolve todos os partidos da Casa – do PT ao PL.
Pelo acordo, cada deputado escolhe três propostas prioritárias para o mandato, em ordem de preferência. As sugestões são reunidas em uma lista, organizada pelo deputado Thiago Auricchio (PL), e repassadas aos líderes partidários. Cada líder consulta sua bancada para identificar possíveis objeções. Depois, todos se reúnem novamente e definem quais projetos têm consenso para seguir adiante.
Em nota, a Alesp disse que “todos os projetos pautados em plenário, conforme disciplina o Regimento Interno, garantem o direito a discussão e votação”.

Como a regra é pautar apenas projetos com apoio unânime das bancadas, os parlamentares evitam temas espinhosos e apostam em propostas mais palatáveis, com chance de aprovação.
Deputados ouvidos pelo Estadão afirmam que o “acordo de cavalheiros” vigora há várias legislaturas, mas parte deles – especialmente bolsonaristas e integrantes da oposição – reclamam da falta de espaço nos últimos anos para apresentar projetos de viés ideológico, que dificilmente alcançariam consenso.
Diante das queixas, o presidente da Alesp, André do Prado (PL), estuda a criação de um dia exclusivo, na semana, para votação de propostas polêmicas.
“Vários projetos que poderiam beneficiar a população são excluídos da lista. Para que os projetos cheguem ao plenário, é necessário apresentar propostas ‘água com açúcar’, que não interfiram sobretudo na vida do governo. Sempre fui crítico deste acordo, pois, na prática, ele elimina o debate. Há anos que a Alesp não fiscaliza nem legisla; apenas aprova projetos do governo, muitos dos quais acabam prejudicando a população”, afirmou o deputado Carlos Giannazi (PSOL).
Para se ter ideia, na atual lista que circula na Casa, e à qual o Estadão teve acesso, sobram propostas de baixo impacto, sem grandes repercussões estruturais, como o PL que institui a “Semana Estadual do Livro e de Incentivo à Leitura e à Escrita”, a proposta de criação da “Semana da Amizade entre os Animais de Estimação e seus Tutores” e o que declara a cidade de Natividade da Serra a capital estadual do cambuci.
A tramitação desses projetos ocorre de forma acelerada: em geral, aprova-se o regime de urgência, convoca-se o Congresso de Comissões e, em seguida, o projeto chega ao plenário já com carimbo de “aprovado”. Tudo isso, muitas vezes, no mesmo dia, para garantir que ninguém descumpra o combinado.
No ano passado, por exemplo, foram aprovados 35 projetos em 1 hora e 11 minutos durante uma sessão no dia 24 de junho. Não houve discussão em nenhum deles: a votação foi simbólica e, em alguns casos, parlamentares pediram para deixar registrado que eram contra determinada proposta.
Os textos aprovados versavam sobre temas como reconhecimento de pessoas com fibromialgia como pessoas com deficiência, a inclusão da educação climática nas escolas e autorização para o governo criar programa habitacional para policiais.
Líder do governo Tarcísio de Freitas e no quinto mandato consecutivo, Gilmaci Santos (Republicanos) não se recorda em qual gestão a prática foi estabelecida, mas afirma que, embora não seja regimental, ela se tornou uma “tradição” na Casa.
“Para evitar que o deputado não passe o ano sem aprovar um projeto, conseguimos chegar a esse acordo de aprovar propostas que não tenham objeção de ninguém. É um acordo de cavalheiros, não uma regra. A ideia é aprovar um projeto de cada deputado por semestre, mas nem sempre conseguimos”, disse Gilmaci.
O deputado afirma que há projetos que tramitaram e estão há anos prontos para votação, mas que permanecem de fora da pauta justamente por serem polêmicos. Um exemplo citado por ele é um projeto de lei do deputado Altair Moraes (Republicanos) que estabelece o sexo biológico como único critério para a definição de gênero de competidores em partidas esportivas oficiais do Estado.
O acordo coletivo também resolve a dificuldade de conseguir quórum, ou seja, a presença de ao menos 48 deputados para que os projetos entrem em votação. Como cada parlamentar tem interesse que seu projeto seja aprovado, a tendência é que um número maior compareça à reunião.
“O presidente André do Prado tem a intenção de pautar esses projetos não consensuais. É um desejo dele. E eu sou favorável que paute, que tenha a discussão e a gente veja quem ganha. Deve ser uma dinâmica colocada em prática no segundo semestre”, afirmou o líder de Tarcísio.
Um exemplo de como o sistema dificulta o debate às claras sobre os projetos ocorreu na terça-feira, 22. A Alesp convocou sessão extraordinária para votar 26 projetos de lei apresentados pelos parlamentares. Pouco antes do início, a deputada Professora Bebel (PT) foi à tribuna anunciar que seu partido iria obstruir a votação por causa de uma proposta do deputado Tenente Coimbra (PL) para criar uma carteira de identificação estudantil gratuita e emitida pela Secretaria de Educação de São Paulo.
Coimbra rebateu em seguida que o projeto fazia parte do acordo entre os parlamentares. Faltando meia hora para o início, o presidente André do Prado cancelou a sessão extraordinária, o que impediu a aprovação de duas dezenas de propostas porque houve discordância sobre apenas uma delas.
“Haja vista o desacordo sobre alguns projetos, essa Presidência achou melhor reunir novamente o Colégio de Líderes para que a gente possa achar um consenso para que não venhamos a esse plenário e não consigamos pautar os projetos que já estavam acordados”, explicou.
Coimbra disse ao Estadão que a opção pelo consenso busca evitar que as bancadas insatisfeitas obstruam a tramitação das proposições. “A gente pode forçar e colocar em votação, mas se todo projeto de deputado tiver ampla discussão por seis horas, mais os encaminhamentos, a gente acaba não conseguindo votar outros projetos, como os do governador, porque a pauta ficará travada”, afirmou o deputado.
Pelo regimento interno, cada deputado pode falar por até 30 minutos sobre determinado projeto. A discussão é encerrada quando ninguém mais quiser debater. Outra alternativa é colocar em votação o encerramento da discussão, mas isso pode ocorrer somente após o prazo mínimo de seis horas de discussão. “O PT tem 19 deputados, mais seis do PSOL. Se eles forem discursar, a gente gasta duas sessões só debatendo o meu projeto”, declarou Coimbra.