Juiz eleitoral no Ceará põe inelegível por oito anos prefeito ‘mano do CV’
O juiz Magno Gomes de Oliveira, da 54.ª Zona Eleitoral do Ceará, decretou a inelegibilidade por oito anos do prefeito de Santa Quitéria, José Braga Barrozo, o Braguinha, acusado de ter sido reeleito em 2024 com apoio maciço do Comando Vermelho, a violenta facção do crime organizado. Oliveira decretou a cassação do diploma de Braguinha e ainda ordenou novas eleições na cidade de 42 mil habitantes localizada a 220 quilômetros de Fortaleza após o trânsito em julgado de sua sentença.
Braguinha chegou a ser preso no início do ano em meio à posse festiva dos prefeitos eleitos em todo o País. Ele pode recorrer. Nos autos, o prefeito negou ter coagido eleitores da oposição e não admitiu ligação com o CV.
A sentença de caráter eleitoral é apontada por investigadores como de ‘extrema importância’ porque representa golpe contundente na infiltração de organizações criminosas no meio político. Assim como o CV, o PCC (Primeiro Comando da Capital), criado em São Paulo nos anos 1990, também promove parcerias com administrações públicas, segundo o Ministério Público.
Em sua sentença de 91 páginas, à qual o Estadão teve acesso, o juiz eleitoral em Santa Quitéria detalha todo o inquérito da Polícia Federal que resultou na Ação de Investigação Judicial Eleitoral proposta pelo Ministério Público contra Braguinha e seu vice Francisco Gardel Mesquita Ribeiro por ‘abuso de poder político e econômico’.
A decisão alcança, ainda, Kylvia Maria de Lima Oliveira, que foi candidata a vereadora, e os servidores públicos Francisco Leandro Farias de Mesquita e Francisco Edneudo de Lima Ferreira. Os três também negam elo com o CV.
A suposta proximidade do grupo de Braguinha com a facção lhe rendeu a alcunha ‘Mano do CV’ em redes do crime organizado, segundo os investigadores.
Segundo a PF, o Comando Vermelho coagiu, sabotou e até expulsou da cidade apoiadores do então candidato Tomas Figueiredo, adversário de Braguinha, por meio de pichações, ameaças via mensagens em redes sociais e violência nas ruas.
A Promotoria e a PF sustentaram que criminosos ligados ao CV participaram ativamente da campanha de Braguinha e de aliados dele, até com apoio financeiro e a entrega de drogas para compra de votos. O grupo do prefeito pagou o apoio a um líder do Comando Vermelho com um veículo de luxo que foi levado à favela da Rocinha, reduto da facção, diz a PF.
Os investigadores descobriram que ‘servidores públicos municipais viajaram ao Rio de Janeiro para intermediar o acordo com a facção, o que foi documentado em relatórios’. Kylvia Lima, que tentou uma cadeira na Câmara Municipal, também teria sido beneficiada com o incentivo do CV.
A sentença é baseada em provas técnicas, testemunhos de delegados das Polícias Civil e Federal, e material extraído de celulares apreendidos.
‘FORA TOMAS’
O juiz destacou que o processo eleitoral de 2024 foi tumultuado por pichações em vários bairros de Santa Quitéria com ameaças contra eleitores e apoiadores do então candidato a prefeito Tomas Figueiredo – rival de Braguinha -, e com a indicação de que as ameaças partiam do Comando Vermelho.
As pichações cobriram muros pela cidade. ‘Fora Tomas’, ‘Quem apoiar o Tomas vai entrar no problema com o CV e a tropa do Paulinho Maluco’, ‘Quem apoiar o Tomas vai entrar na bala’, ‘Quem apoiar o 15 (Tomas) vai morrer’.
A campanha foi marcada também por uma onda de ameaças a eleitores por meio de mensagens de áudio, distribuídas através de redes sociais, como Instagram e Whatsapp. “Intimidação de eleitores para que apoiassem e votassem nos candidatos apoiados pela facção criminosa, tudo sob pena de sofrerem depredação em seus estabelecimentos comerciais e seus veículos, caso contivessem adesivos de campanha do candidato proscrito (adversário de Braguinha)”, aponta a decisão judicial amparada em relatório da PF.
O Ministério Público Eleitoral e a PF destacaram a ocorrência de pichações veiculando ameaças contra eleitores de Tomás Figueiredo durante a campanha. As ameaças foram feitas por mensagens telefônicas e telemáticas, provocando ‘esvaziamento dos atos de campanha de Tomas Figueiredo’. Também foram relatadas ameaças de agressões físicas e danos aos veículos de apoiadores do rival de Braguinha.
Durante a campanha, criminosos anunciaram que iriam ‘incendiar’ o cartório eleitoral da 54;ª Zona. A PF resgatou mensagens por e-mails de faccionados do Comando Vermelho orientando os pichadores a ‘omitirem o nome do candidato Braga, a fim de ocultar que estavam empenhados em favorecê-lo no pleito majoritário de Santa Quitéria’.
A investigação rastreou a compra de um veículo de luxo em Fortaleza e o ‘subsequente transporte do mesmo até a capital fluminense, para ser entregue dentro da Favela da Rocinha ao criminoso conhecido como ‘Paulinho Maluco’.
Nascido em Santa Quitéria, ‘Paulinho Maluco’, apelido de Anastácio Ferreira Paiva, é apontado como um dos líderes do Comando Vermelho. Também conhecido como ‘Doze’, ele é o líder do Comando Vermelho na região do sertão central do Ceará, ‘indivíduo de alta periculosidade, que possui uma vasta ficha de antecedentes criminais por tráfico de drogas e homicídios, e contra quem pesam mandados de prisão em aberto, porém encontra-se foragido, escondido na Rocinha, no Rio de Janeiro’.
Ele teria ordenado a viagem de Daniel Claudino de Souza, o ‘Da30’, até Santa Quitéria para coordenar as ações criminosas, ‘voltadas a prejudicar a candidatura de Tomas Figueiredo e favorecer a candidatura de José Braga Barrozo’.
‘VAMOS PRÁ CIMA’
A investigação mostra que ‘Da30’ escalou o traficante ‘Rikelme’ para a missão em Santa Quitéria. No dia 16 de agosto de 2024, ‘Rikelme’ emitiu uma ordem no grupo do Whatsapp do CV, sinalizando aos demais integrantes que a campanha política estava começando. “Vamos pra cima mostrar nossa força. Temos Kylvia Lima e Gabriel Filho e o BG para prefeito.” BG é como os faccionados se referiam a Braguinha. “Vamos apoiar os nossos, vamos em busca.”
A PF e a Promotoria eleitoral verificaram ‘financiamento espúrio’ da campanha da então candidata Kylvia Maria de Lima Oliveira pelo faccionado ‘Da30’.
No celular de ‘Da30’ foram identificados 1038 chats em que ele mantinha articulação permanente com outros integrantes do CV ‘com vistas a tentar fortalecer a candidatura de Kylvia’ – batizada nas redes do crime como ‘candidata do Comando Vermelho’.
Em uma conversa de 31 de julho de 2024, Kylvia expressou seu reconhecimento pelo apoio de ‘Da30’. Ela chegou a visitar naquele mesmo dia a residência dos pais do bandido, ‘ocasião em que demonstra ter conhecimento sobre o acesso dele a armas, bem como de sua condição de liderança na facção criminosa’.
Em um áudio, ‘Da30’ orientou seu comparsa ‘PL Trapiá’ a compartilhar a logomarca da campanha de Kylvia e pedir votos para ela.
Outro diálogo, recuperado pela PF, mostra ‘Da30’ orientando seu interlocutor a adiar um ataque contra rivais porque estava na expectativa de receber fuzis encaminhados pelo faccionado ‘Num’, traficante e mandante de assassinatos no sertão cearense, segundo a PF.
Em outro celular de ‘Da30’, a PF contou 878 chats, com diálogos mantidos com ‘FP Bravo’ e ‘Kayke RK’. O grupo ajustou um encontro na praia do Leblon, no Rio, e o envio de maços de dinheiro contados por máquina no importe de R$ 150 mil. Numa conversa com ‘Kayke RK’, ‘Da30’ se gaba de que ‘está muito bem, só matando ‘alemão’ e ganhando dinheiro’.
Em um áudio de 21 de outubro, ‘Da30’ informa Kylvia que ‘estava comprando votos para ela na localidade Trapiá, que já teria gasto em favor da campanha dela mais do que o próprio Braga’.
A PF identificou que, além de ‘Da30’, outros integrantes do CV teriam participado ativamente da estratégia de pressão e intimidação de apoiadores do adversário de Braguinha no pleito de 2024. São citados ’12′, ‘Dazarea’ e ‘Paizão’.
“A intenção dos criminosos era amedrontar não apenas o candidato (Tomas) e seus apoiadores/eleitores, mas também instituições, servidores e autoridades, em total atentado à normalidade e legitimidade do pleito”, pontua o juiz Magno de Oliveira.
À PF, Tomas Figueiredo declarou que ‘desde a primeira semana da campanha não conseguia realizar seus eventos, nem visitar eleitores’. Segundo ele, pessoas que trabalhavam na sua campanha foram ameaçadas pelo Comando Vermelho ‘desde o primeiro evento’. “Os eleitores tinham medo de me receber em suas casas e sofrer represálias”, disse o adversário de Braguinha.
CONTESTAÇÃO DE BRAGUINHA
Em sua contestação nos autos da ação judicial, o prefeito agora cassado José Braga Barrozo, o Braguinha, alegou ‘ausência de participação em quaisquer atos de coação de eleitores durante a campanha eleitoral de 2024’. Ele também apontou ‘prévia animosidade’ entre um dos líderes do CV, o ‘Paulinho Maluco’ e o então candidato Tomás Figueiredo, seu adversário no pleito de 2024.
O prefeito criticou, ainda, a ‘fragilidade do acervo probatório’ e sustentou a ‘inexistência de vínculo’ com o traficante ‘Num’, outro faccionado. Rejeitou, ainda, ‘vínculo político’ com Kylvia’, que tentou uma cadeira na Câmara de Santa Quitéria e era mencionada nas redes sociais do crime como ‘candidata do CV’.
A defesa de Braguinha também apontou ‘ausência de efetiva repercussão das pichações veiculando ameaças no resultado do pleito eleitoral de Santa Quitéria’.
CONTESTAÇÃO DOS SERVIDORES FRANCISCO GARDEL MESQUITA RIBEIRO E FRANCISCO LEANDRO FARIAS DE MESQUITA
Francisco Gardel alegou ‘ausência de qualquer referência ao seu nome nas ações que teriam caracterizado abuso do poder econômico ou político em Santa Quitéria, durante a campanha eleitoral de 2024’. Francisco Leandro disse que os autos não contêm ‘comprovação de conduta ilícita’ de sua parte, ‘pois a mera alusão a uma viagem ao Rio de Janeiro, ainda que ocupasse cargo comissionado na prefeitura de Santa Quitéria, não é suficiente para caracterizar abuso de poder político ou econômico, tampouco qualquer tipo de conluio com organização criminosa’.
A reportagem do Estadão busca contato com a defesa de Kylvia de Lima. O espaço está aberto.