O general que parece sepultar com seu depoimento toda uma época de golpes, rebeliões e ditadura
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“Se dissemos que não há inocentes na política, isso se aplica mais aos juízes do que aos condenados.” Assim Merleau-Ponty tratou a confissão de Nikolai Bukharin no julgamento de Moscou, o terceiro do Grande Terror. O depoimento do dirigente bolchevique foi o ponto alto do processo. Descrito por Lenin em seu testamento como “o preferido do partido”, Bukharin confessou o que lhe atribuíam. Queria salvar a pele de sua mulher, Anna Larina, e do filho do casal. Mas, para surpresa de todos, negou a acusação de ter tramado a morte de Lenin. Mesmo assim, foi condenado e executado com os demais réus. A engrenagem que se moveu em Moscou naqueles anos está no centro de Humanismo e Terror, de Merleau-Ponty.
Diante do gigantismo do espetáculo que se começou a encenarem em Brasília, é possível relembrar o filósofo francês. Cada vez que Alexandre de Moraes interpelava o general Marco Antonio Freire Gomes, o magistrado despertava na audiência a impressão de estar diante de um Andrei Vichinski, o implacável acusador de Bukharin. Mas se é verdade que os juízes não são inocentes na política, os acusados – e as testemunhas – também não são. É o que, no fim, mostrou o depoimento do general.
Ao sentar-se como testemunha de acusação em um processo sobre uma tentativa de golpe de Estado depois de ter comandado o Exército, o general parecia encenar o fim de uma época, como o Bolívar descrito por Gabriel García Márquez em O General em seu labirinto. Ao publicá-lo, o escritor foi acusado de desnudar o general, de apresentá-lo humano demais, enquanto viajava pelo Rio Magdalena, recolhendo os passos de sua vida. Não só de sua carreira. Freire Gomes tratou ao sentar-se diante de Moraes. Fez mais: sem querer, visitou a história da República.
A cada momento em que o general reafirmou o que dissera em depoimento à PF, desnudando a ação de Bolsonaro ao buscar envolver o Exército na trama golpista, toda uma época republicana parecia se fechar em uma viagem até Santa Marta, deixando para trás o tempo em que o Poder Militar e parte de seus integrantes imaginavam julgar e corrigir o Poder Civil. Tempo de rebeliões armadas, de golpes de Estado e de ditaduras.

Freire Gomes pôde parecer pouco enfático em relação a dois dos réus: Paulo Sérgio Nogueira, ex-ministro da Defesa, e o almirante Almir Garnier, ex-chefe da Marinha. Afirmou que este demonstrou lealdade a Bolsonaro, o que significaria apoio à ordem do golpe. Quem acha pouco seu depoimento não compreendeu o alcance do processo para a história do País e continua a tratá-lo apenas da ótica de inocentes e culpados, em vez de visualizar a República desnuda em seu labirinto.
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