Você sabia que o maior parceiro de Carlos Gardel nasceu no Bixiga?
A ligação do Bixiga com a música vai além da tarantela da festa de Nossa Senhora Achiropita ou do samba do Vai-Vai. O bairro também foi berço de um dos nomes mais sensíveis da história do tango: Alfredo Le Pera.
Filho dos imigrantes italianos Alfonso Le Pera, calabrês, e Maria Sorrentino Moreno, napolitana, Alfredo nasceu às 22h30 do dia 7 de junho de 1900, na rua Major Diogo, 122. Dois meses depois, a família se mudou para Buenos Aires, capital argentina em plena efervescência, onde Le Pera cresceria e construiria sua trajetória artística.

Você se lembra daquela notável cena do filme “Perfume de mulher” (1992) em que Al Pacino, interpretando um ex-tenente coronel cego, dança o tango Por uma cabeza com Gabriella Anwar? Pois bem, a letra da música imortalizada na voz de Carlos Gardel, foi escrita por Le Pera.
Ao todo, ele fez 31 poemas para o “Rei do Tango”, entre eles sucessos como El Dia em que me quieras, Silencio, Cuesta Abajo e Volver, um clássico do gênero. Gardel ao se inspirar para compor um tango, elegia um tema e um sentimento, começava a cantarolar a meia voz até encontrar a melodia apropriada. “Chamo então chamo ao meu amigo e companheiro Alfredo Le Pera e com a ajuda da pianista imediatamente componho a melodia definitiva e a letra”, contava..
Le Pera, dizem seus fãs, introduziu a ternura e atemporalidade ao tango. Por una Cabeza, um dos tangos mais famosos da dupla, conta a história de um apostador compulsivo em corridas de cavalo que compara seu vício aos cavalos com a atração irresistível que sente pelas mulheres. Retrato de Gardel? Já Mi Buenos Aires Querido é um hino exaltando sua beleza, sua cultura e sua emoção.
Quando a família Le Pera chegou à capital argentina a cidade já tinha encanto. População de 661 mil habitantes, quase três vezes a de São Paulo em 1900, de 240 mil. Enquanto lá arquitetura e costumes lembravam Paris, a capital paulista buscava ser firmar como um centro comercial e financeiro, a avenida Paulista se preparava para os palacetes dos barões do café, mas chácaras ao redor do centro continuavam sendo urbanizadas, entre elas terras no Bixiga vendidas “em lotes ou em braças” mais acessíveis para as posses dos imigrantes calabreses e sicilianos que vieram tentar viver em São Paulo. Era o tempo dos lampiões de gás e a moradia dos Le Pera ficava vizinha ao recém-inaugurado “Grupo Escolar da Bella Vista” (hoje E.E. Maria Augusta Saraiva), “completamente isolado, com uma vista encantadora”.
Ele estudou piano criança e, atendendo ao gosto dos pais, foi fazer Medicina, mas largou o curso no quarto ano, para sua verdadeira paixão: a escrita. Atuou como jornalista e crítico teatral, escrevendo para vários jornais. A convivência com o ambiente teatral lhe abriu as portas para a dramaturgia, tendo escrito mais de uma dezena de peças.
Mesmo tendo apreço pela vida noturna, Alfredo era discreto e introspectivo, um perfil oposto ao de Carlos Gardel, que era do tipo galã, bonitão, sorridente e fez moda com seu jeito de vestir, o chapéu de feltro e o lenço no bolso do paletó. Sua paixão era escrever canções, segundo o estudioso de tango Ruben Ali. “O brasileiro pode ser definido como um boêmio de alta qualidade poética’, afirma ele. Teve namoros intensos com bailarinas, a primeira delas Aída Martinez, rompendo uma relação com uma colega de Medicina que causou um certo escândalo. Anos depois, ao ver a noiva adoecer, a levou à Suíça para tratamento. Apesar dos esforços médicos, a amada faleceu após seis meses. Muitos acreditam que a dor dessa perda inspirou Le Pera a escrever “El día que me quieras’.
A primeira letra de tango escrita de fato pelo filho do Bixiga foi Carillón de la Merced, em 1931, em parceria com o amigo e renomado pianista argentino Enrique Santos Discépolo, inspirados pela melodia produzida pelos carrilhões da Basílica La Merced de Santiago, durante viagem ao Chile com a companhia de revistas de Mario Denard, da qual era secretário.
Seu encontro com Gardel aconteceu em um café de Paris, por intermédio de Edmundo Guibourg. “Carlito” buscava um roteirista para seus filmes. Le Pera estava na capital francesa trabalhando como tradutor para o espanhol das legendas de filmes mudos e agenciador de películas para o mercado argentino. Ao se darem as mãos, Gardel reconheceu Alfredo dos cafés de Buenos Aires. Mesmo já tendo discutido com ele no passado por conta de uma crítica, o cantor foi diplomata e não tocou no assunto. A parceria foi frutífera: entre 1932 e 1935 trabalharam também em sete filmes cujos roteiros foram feitos pelo filho do Bixiga. O primeiro foi “Cuesta abajo” filmado em 1934 em Long Island e que contou com a participação do brasileiro em um pequeno papel. Ele fingia uma discussão com Gardel em um cabaret enquanto o cantor dançava com a atriz Mona Maris.
As músicas das películas tornaram-se mais famosas que elas. Por una cabeça fazia parte do filme “Tango Bar”, que teve estreia póstuma em Nova York em 5 de julho de 1935, poucos dias após a morte dos parceiros em um trágico acidente aéreo no aeroporto de Medellin, na Colômbia, em 24 de junho, que vitimou 17 pessoas e só um violonista sobreviveu, cego.
Em 2025, ano em que se completam 125 anos de seu nascimento, o projeto leperapoetadegardel.org/30poemasparagardel celebra sua memória com 125 homenagens em diversas partes do mundo ao brasileiro sensível, discreto e apaixonado que deu alma e poesia ao tango.