‘Reforma do Código Civil está madura para seguir no Senado’, diz Salomão após protesto de advogados
O ministro Luís Felipe Salomão, vice-presidente do Superior Tribunal de Justiça (STJ), que liderou a comissão de juristas responsável pelo anteprojeto de reforma do Código Civil, considera que o texto está pronto para ser votado.
“Penso que o debate está maduro para prosseguir no Senado Federal, pois são poucas as proposições sem consenso para que os senadores, democraticamente, decidam acolher, recusar ou ajustar”, afirma em entrevista ao Estadão.
Recentemente, 19 associações de advogados lançaram manifesto pedindo que o projeto seja mais bem debatido com a advocacia e a academia. Essas entidades se dizem preocupadas com o ritmo da tramitação da proposta e com a perspectiva de votação do texto até o final do ano.
O Código Civil regula relações cotidianas como casamento, divórcio, herança, e negócios privados, contratos, indenizações e deveres das empresas.
O projeto de reforma foi apresentado pelo senador Rodrigo Pacheco (PSD-MG), ex-presidente do Senado, que agora tenta fazer avançar a pauta no Congresso.
A versão atual do Código Civil é relativamente nova – está em vigor desde 2002. Apesar disso, os juristas envolvidos no projeto de reforma argumentam que a atualização é necessária para fazer frente às transformações sociais em curso nos últimos 20 anos.
Ao Estadão, Salomão afirma que o texto já foi alterado por 64 normas, e que há mais de 50 propostas de modificação pendentes de apreciação no Congresso, mas que as alterações pontuais “não conseguiram suprir em tempo hábil todas as necessidades dos segmentos sociais, políticos e econômicos em constante evolução”.
“As intensas mudanças na sociedade brasileira experimentadas ao longo do século XXI, com modelos negociais e contratuais inovadores, passando pela engenharia genética, novos arranjos familiares com impactos no plano sucessório, a comunicação em tempo real proporcionada pela internet – agora disponível na palma da mão –, são apenas alguns exemplos de fatos que indicam a necessidade de atualização das regras que regem as relações jurídicas no campo civil.”
Os maiores objetivos da reforma, segundo o ministro, são assegurar maior autonomia de vontade às pessoas, promover a desjudicialização de vários atos e procedimentos, estimular o empreendedorismo e facilitar o ambiente de negócios.

O projeto altera 1.122 dos 2.046 artigos da versão atual da lei. Juristas e entidades do Direito vêm fazendo lobby por um debate mais aprofundado do texto, levando em conta a extensão das mudanças.
Na nota conjunta divulgada na semana passada, as 19 associações de advogados alertaram para o risco de alteração estrutural do Código Civil, se o projeto for aprovado. Na avaliação das entidades, as mudanças propostas ultrapassam o escopo de uma reforma. Trata-se na prática da criação de um novo Código Civil.
Salomão discorda do diagnóstico. Da perspectiva do ministro, o projeto “nada mais é do que a adequação do texto legal ao entendimento jurisprudencial e doutrinário” que, em grande medida, já são aceitos e aplicados na solução dos conflitos de natureza civil.
Segundo o ministro, as alterações e inovações são pontuais e “não desnaturam” a essência do texto de 2002.
“Boa parte das sugestões está pautada na jurisprudência consolidada do Superior Tribunal de Justiça e do Supremo Tribunal Federal, nos enunciados aprovados nas Jornadas de Direito Civil promovidas pelo Conselho da Justiça Federal, bem como em posições doutrinárias já sedimentadas no meio acadêmico”, explica.
A reforma foi anunciada com a justificativa de adaptar o código a demandas geradas por dois aspectos de transformação social: o efeito da tecnologia e a alteração dos padrões nos relacionamentos familiares. São excluídas, por exemplo, as referências a “homem” e “mulher” nas menções a casal ou família. Além disso, um capítulo novo foi criado para inserir regras sobre direito digital, incluindo normas sobre uso de Inteligência Artificial.
Especialistas também vêm manifestando preocupação com o aumento dos poderes que podem ser conferidos ao Poder Judiciário para interferir e anular negócios privados com base em conceitos sem definição normativa clara, como função social do contrato e desrespeito à ordem pública. Salomão defende que a excepcionalidade da revisão contratual deve ser a regra.
“As sugestões apresentadas pela comissão de juristas procuraram estimular o empreendedorismo e facilitar o ambiente de negócios, resguardada a segurança jurídica para as partes envolvidas.”
Leia a entrevista completa com o ministro Luís Felipe Salomão:
O Código Civil é relativamente novo. Por que considera a atualização necessária?
O texto atual do Código Civil, que substituiu o Código de 1916, é fruto do trabalho de uma comissão de juristas – liderada por Miguel Reale –, reunida no distante ano de 1969. Só juristas homens integraram esta Comissão. No contexto seguinte de abertura política e da Assembleia Nacional Constituinte, o projeto tramitou por anos no Congresso Nacional até ser aprovado e, por fim, sancionado em 2002.
Além de uma nova Constituição em 1988, também as intensas mudanças na sociedade brasileira experimentadas ao longo do século XXI, com modelos negociais e contratuais inovadores, passando pela engenharia genética, novos arranjos familiares com impactos no plano sucessório, a comunicação em tempo real proporcionada pela internet – agora disponível na palma da mão –, são apenas alguns exemplos de fatos que indicam a necessidade de atualização das regras que regem as relações jurídicas no campo civil.
Não obstante a plasticidade do Código Civil, bem como os reconhecidos e inovadores princípios da eticidade, operabilidade e boa-fé objetiva, o diploma já foi alterado por 64 normas, havendo ainda mais de 50 propostas de modificação pendentes de apreciação.
As alterações legislativas implementadas simplesmente não conseguiram suprir em tempo hábil todas as necessidades dos segmentos sociais, políticos e econômicos em constante evolução.
Especialistas vêm afirmando que as mudanças são tão amplas que não se trata de uma reforma e sim da criação de um novo código. Concorda?
Boa parte das sugestões apresentadas no relatório final pela comissão de juristas e que agora tramitam na forma de projeto de lei no Senado Federal está pautada na jurisprudência consolidada do Superior Tribunal de Justiça e do Supremo Tribunal Federal, nos enunciados aprovados nas Jornadas de Direito Civil promovidas pelo Conselho da Justiça Federal, bem como em posições doutrinárias já sedimentadas no meio acadêmico.
Ademais, para promover o necessário debate democrático, a comissão de juristas, composta ao final por 37 membros e 6 consultores voluntários – renomados civilistas, professores da academia, advogados, membros do MP, magistrados, profissionais reconhecidos no Brasil e no exterior –, ao longo de 8 meses de trabalho, convidou mais de 400 entidades representativas da sociedade civil, faculdades de direito, órgãos públicos e associações, para que enviassem propostas de revisão ou alteração do Código Civil, totalizando cerca de 280 sugestões.
Também foram realizadas quatro audiências públicas em diferentes regiões do País, e outros debates acadêmicos em universidades e eventos jurídicos. Inúmeras contribuições de iniciativa popular também chegaram pelo canal e-Cidadania do Senado Federal.
Participaram juristas argentinos, que recentemente editaram um novo Código Civil. Aliás, no mundo estão atualizando suas legislações neste campo do direito.
Algumas dessas sugestões apresentadas são inovadoras e outras formaram importantes vetores que também orientaram as propostas de atualização: assegurar maior autonomia de vontade às pessoas; promover a desjudicialização de vários atos e procedimentos; estimular o empreendedorismo e facilitar o ambiente de negócios; garantir as alterações necessárias para atualização do texto, mas observando sempre o princípio da segurança jurídica.
Por isso, pode-se afirmar que o projeto de lei que adveio do relatório final da comissão de juristas nada mais é do que a adequação do texto legal ao entendimento jurisprudencial e doutrinário – que em grande medida são aceitos e aplicados na solução dos conflitos de natureza civil –, bem como a atualização de regras civis em decorrência dos avanços tecnológicos e mudanças sociais que ocorreram desde o início do século XXI, na atual transição da vida analógica para a digital.
A participação dos mais diversos segmentos da sociedade civil representou algumas alterações e inovações pontuais, mas que não desnaturam a essência do texto de 2002.
Recentemente, 19 associações de advogados lançaram um manifesto pedindo que o projeto seja mais bem debatido com a advocacia e a academia. Essas entidades se dizem preocupadas com o ritmo da tramitação da proposta e com a perspectiva de votação do texto até o final do ano. Considera que uma votação ainda em 2025 seria apressada?
O relatório final da comissão de juristas, como ressaltado, foi precedido de amplo debate com a sociedade civil, que participou ativamente no período de setembro de 2023 a abril de 2024 – momento da entrega solene do anteprojeto ao Senado Federal.
Por outro lado, decorrido mais de um ano desde a apresentação do trabalho da comissão de juristas, a publicidade do relatório permitiu aos mais diversos segmentos manifestar discordância com alguns pontos presentes na proposta e expor os respectivos argumentos.
Assim, penso que o debate está maduro para prosseguir no Senado Federal, pois são poucas as proposições sem consenso para que os senadores, democraticamente, decidam acolher, recusar ou ajustar na proposta constante no projeto de lei.
O projeto prevê a função social e o desrespeito à ordem pública como causas de nulidade de negócios jurídicos e contratos. Alguns juristas afirmam que esses são conceitos de difícil definição, o que pode aumentar a insegurança jurídica. Isso foi levado em consideração?
As sugestões apresentadas pela comissão de juristas procuraram estimular o empreendedorismo e facilitar o ambiente de negócios, resguardada a segurança jurídica para as partes envolvidas.
A função social do contrato e o respeito à ordem pública são garantias já presentes no Código Civil de 2002. No projeto apresentado em 1975 pela comissão presidida por Miguel Reale, o Código Civil deveria conter três princípios fundamentais: eticidade, com referências frequentes à probidade e boa-fé e uso de normas genéricas ou cláusulas gerais; sociabilidade, para superar o viés eminentemente individualista do vetusto código para outro predominantemente social – como se vê no regramento da natureza social da posse e redução do prazo prescricional de usucapião em algumas situações –; e operabilidade, mediante a apresentação de proposições capazes de facilitar a interpretação e aplicação.
As cláusulas abertas do Código permitiram uma atuação maior dos juízes em sua implementação.
As alterações apresentadas no relatório final da comissão de juristas, portanto, não representam nenhuma novidade ao que já está inserido no Código Civil, sobretudo com as mudanças implementadas em 2019 pela Lei da Liberdade Econômica (Lei n. 13.874/2019).
Como bem assinalado em recente texto de autoria do professor Mário Luiz Delgado, membro da comissão de juristas e publicado no Estadão em 5/5/2025, o que se propõe é “a ampliação da autonomia privada, em prestígio à liberdade contratual e aos princípios da intervenção mínima e da excepcionalidade da revisão contratual, reforçando as balizas trazidas, em 2019, pela Lei da Liberdade Econômica”.
Um livro novo é criado para regular temas relacionados aos avanços da tecnologia, entre elas a Inteligência Artificial. Quais são os riscos de regular uma tecnologia ainda em desenvolvimento?
Os artigos 609-A a 609-G tratam da prestação de serviços e de acesso a conteúdos digitais, definidos por um “conjunto de prestações de fazer, economicamente relevantes, que permitam ao usuário criar, tratar, armazenar ou ter acesso a dados em formato digital, assim como partilhar, efetivar mudanças ou qualquer outra interação com dados em formato digital e no ambiente virtual”. As proposições buscam regular questões contratuais no debate atual, tal como o uso de inteligência artificial, que “deve ser identificada de forma clara e seguir os padrões éticos necessários, segundo os princípios da boa-fé e da função social do contrato” (artigo 609-F).
Os artigos 10 e 11 do livro de Direito Digital dispõem sobre a remoção de conteúdo na internet. Essas previsões podem afetar publicações jornalísticas?
Não, de forma alguma. O livro proposto, que trata do direito digital, por si só uma grande inovação, está sendo reverenciado pela doutrina nacional e estrangeira.
O artigo 10 inserido no Livro Digital prevê a possibilidade de requerer a exclusão de dados pessoais e dados pessoais sensíveis quando expostos sem finalidade justificada, encontrando-se alinhado com o artigo 18 da Lei Geral de Proteção de Dados (LGPD).
O artigo assegura o direito de requerer a exclusão permanente de dados ou de informações apenas se representarem lesão a direitos da personalidade, disposição consonante com importante precedente de 2009 do Supremo Tribunal Federal que envolveu a antiga Lei de Imprensa (Lei n. 5.250/1967)
No julgamento da Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) nº 130, o STF concluiu pela incompatibilidade da Lei 5.250/1967 com o texto constitucional promulgado em 1988, visto que tal diploma legal não se revelava harmônico com princípios democráticos e republicanos.
Procurou-se ressaltar que as publicações jornalísticas têm o direito de informar, buscar a informação e de opinar, sendo vedadas limitações arbitrárias aos meios de comunicação por críticas dirigidas a autoridades quando emitidas no interesse público.
Em tal julgado, contudo, a Suprema Corte ressaltou que o exercício abusivo pode se caracterizar como ilícito e gerar o dever de indenizar, se demonstrada violação a direitos fundamentais como à inviolabilidade, à privacidade, à honra e à dignidade da pessoa humana.
Assim, o artigo 11 do Livro de Direito Digital não restringe as publicações jornalísticas, mas apenas prevê a possibilidade de a pessoa requerer a exclusão da matéria ao juiz, desde que satisfeitos os requisitos contidos no parágrafo único do mesmo dispositivo.
O anteprojeto reconhece a vida humana “pré-uterina”. Essa previsão pode dificultar o aborto no Brasil?
A proposta agora em tramitação avança muito em relação à reprodução assistida – tema carente de regramento legal e que contou com um olhar atento e sensível da Comissão de Juristas, tendo sido dedicado todo um capítulo em subtítulo que trata da filiação, abordando temas tais como a doação de gametas, a cessão temporária de útero e a reprodução assistida post mortem.
Atualmente, o registro de nascimento e emissão da respectiva certidão dos filhos havidos por reprodução assistida foi objeto do Provimento nº 52, de 14 de março de 2016, da Corregedoria Nacional de Justiça, do Conselho Nacional de Justiça (CN/CNJ), pois antes o registro somente era realizado por decisão judicial. O ato teve algumas atualizações e hoje nos artigos 512 e seguintes do Provimento CN/CNJ nº 149, de 30 de agosto de 2023 – Código Nacional de Normas da Corregedoria Nacional de Justiça do Conselho Nacional de Justiça – Foro Extrajudicial (CNN/ CN/CNJ-Extra), que regulamenta os serviços notariais e de registro.
A proposição que versa sobre a potencialidade da vida humana pré-uterina e a vida humana pré-uterina e uterina (§ 1º do artigo 1.511-A) deve ser vista no contexto do artigo em que está inserida: planejamento familiar, de livre decisão do casal.
Assim não vejo como essa proposta tenha o potencial de interferir no polêmico debate em relação ao aborto sob os diferentes ângulos em que é realizado – direito das mulheres em dispor sobre o próprio corpo, controle de natalidade ou no campo criminal nos casos de estupro.