Uns mais autônomos que outros?
1. Concorrência, divergência e iniciativas legislativas
Nos últimos anos, significativa parcela da população amazonense tem sido reiteradamente impactada por graves fenômenos naturais. Dados oficiais da Defesa Civil apontam que, em 2022, os 62 municípios do Estado do Amazonas foram afetados pela severa estiagem dos rios. No ano subsequente, relatório atualizado revelou que 14 municípios estiveram em situação de alerta em virtude de enchentes e inundações. Situações extremas como essas desencadeiam mobilizações em múltiplas frentes da sociedade civil e do Poder Público, impulsionando agentes políticos das distintas esferas federativas a propor medidas excepcionais, voltadas a mitigar os efeitos danosos sobre as populações diretamente atingidas.
Nesse contexto, foi aprovada, em setembro de 2024, a Lei n° 7.007/2024, do Estado do Amazonas, voltada a isentar “de pagamento de fatura de energia elétrica os ribeirinhos localizados em municípios afetados por efeito de inundação ou estiagem”. No plano federal, iniciativa análoga foi apresentada em agosto de 2024 por parlamentar amazonense, por meio do Projeto de Lei n° 3.121/2024, que objetiva conceder “isenção total da tarifa de energia elétrica aos consumidores ribeirinhos atingidos por situações de calamidade pública, como secas e enchentes, enquanto durar o fato gerador”.
Medidas semelhantes foram adotadas no Estado do Rio Grande do Sul, que enfrentou severas enchentes no primeiro semestre de 2024. Na Assembleia Legislativa gaúcha, foram apresentadas proposições legislativas com o intuito de instituir isenções tarifárias em caráter temporário. O Projeto de Lei n° 159/2024 busca beneficiar consumidores diretamente atingidos por enchentes e alagamentos, ao passo que o Projeto de Lei n° 167/2024 propõe isenção das tarifas de energia a templos religiosos e entidades sem fins lucrativos que acolheram pessoas atingidas pelo desastre. Na seara federal, apresentou-se ainda o Projeto de Lei n° 1.538/2024, o qual visa instituir isenções tarifárias sobre energia elétrica e água para consumidores afetados em face de calamidade pública regularmente decretada.
A concorrência de iniciativas legislativas com propósitos semelhantes, apresentadas em diferentes entes federativos, suscita relevantes questionamentos de ordem constitucional, notadamente no que se refere à competência legislativa para dispor sobre a matéria.
2. A competência legislativa em matéria de energia elétrica
O texto constitucional atribui à União, com exclusividade, a competência para legislar sobre energia (art. 22, IV), bem como para explorar – diretamente ou mediante autorização, concessão ou permissão – os serviços e instalações de energia elétrica (art. 21, XII, alínea “c”). Nesse cenário, a prestação dos serviços de energia elétrica se dá principalmente por intermédio de empresas concessionárias, cujos contratos são celebrados com a União e submetidos à regulação técnica e econômica por agência reguladora federal especificamente instituída para esse fim.
O modelo institucional adotado para o setor elétrico atraiu elevados investimentos privados, a partir de fundamentos voltados a garantir segurança regulatória e equilíbrio econômico-financeiro das concessões. Nesse sentido, a intervenção legislativa de entes subnacionais no regime tarifário – ainda que com propósitos de elevado valor social e humanitário – pode comprometer seriamente a sustentabilidade dos contratos de concessão, comprometer a continuidade do serviço e abalar a confiança do setor privado.
Diversas leis estaduais que interferiam no regime tarifário em casos específicos foram, sobretudo a partir de 2000, afastadas judicialmente em razão da competência privativa da União para legislar sobre energia. Foi o que ocorreu, por exemplo, em relação (a) à Lei n° 11.462/RS, de 17/04/2000, que isentava da tarifa de energia elétrica trabalhadores desempregados, (b) à Lei n° 11.372/SC, de 18/04/2000, que isentava da tarifa de energia elétrica trabalhadores que “não dispunham de qualquer remuneração”, e (c) à Lei n° 11.260/SP, de 08/11/2002, que impedia o corte do fornecimento de energia por falta de pagamento de tarifas sem prévia comunicação por parte da prestadora do serviço. Também assim foi julgado em face (d) da Lei n° 3.449/DF, de 30/09/2004, que eliminava a cobrança de tarifa básica mínima para assegurar o pagamento apenas sobre o consumo efetivo do serviço, (e) da Lei nº 2.042/MT, de 03/12/1999, e da Lei nº 1.618/AC, de 30/12/2004, que vedavam o corte do fornecimento de energia em sextas-feiras, sábados, domingos, feriados e vésperas de feriados.
3. A competência para legislar sobre consumo
O principal fundamento constitucional utilizado pelas autoridades estaduais para defender, na maioria desses casos, os diplomas impugnados recai sobre a competência concorrente das unidades subnacionais para legislar sobre “produção e consumo” (art. 24, V) e “responsabilidade por dano ao consumidor” (art. 24, VIII). Sustenta-se, nessa linha, que dispositivos voltados a resguardar a manutenção do fornecimento de energia elétrica em face de circunstâncias especiais se enquadrariam como tutela das relações de consumo e proteção do consumidor, o que justificaria a atuação legiferante dos Estados-membros.
A jurisprudência do STF, contudo, passou a rejeitar essa tese, assentando duas linhas argumentativas principais: (i) a distinção conceitual entre o consumidor, sujeito das relações de consumo stricto sensu, e o usuário de serviços públicos, sujeito a distinto regime jurídico; e (ii) a indevida interferência de leis estaduais nas relações contratuais estabelecidas entre a União — na qualidade de poder concedente — e as concessionárias de energia elétrica, sujeitas à regulação federal e ao princípio do equilíbrio econômico-financeiro.
Esse entendimento, todavia, passou a sofrer inflexões a partir da década passada. Em dezembro de 2018, o STF apreciou a constitucionalidade da Lei n° 14.040/PR, de 28/04/2003, que vedava o corte do fornecimento de energia elétrica em unidades residenciais “por falta de pagamento de suas respectivas contas, às sextas-feiras, sábados, domingos, feriados e no último dia útil anterior a feriado”. A despeito da semelhança com os casos anteriores, reconheceu-se, por ampla maioria, a constitucionalidade da lei paranaense, julgando tratar-se de legítima disciplina sobre consumo e direito do consumidor.
O advento da pandemia de COVID-19, por sua vez, serviu de motivação à aprovação de diversas leis estaduais que proibiam a interrupção do fornecimento de energia elétrica em face de inadimplência durante a calamidade pública decretada naquele período. Alguns desses diplomas legais foram questionados perante o STF em sede de controle abstrato de normas, como a Lei nº 20.187/PR, de 22/04/2020, a Lei nº 1.389/RR, de 07/05/2020, e a Lei nº 5.143/AM, de 26/03/2020. Nesses julgados, foi acolhida a tese da constitucionalidade, afirmando-se que as “normas impugnadas implementam conteúdo de natureza consumerista, contida no inc. V do art. 24 da Constituição da República, que não apresentam interferência na estrutura de prestação do serviço público, nem no equilíbrio dos contratos administrativos”.
4. Continuidade ou mudança de orientação?
A despeito dos julgamentos mencionados, que reconheceram a constitucionalidade de leis estaduais editadas em contextos de calamidade pública, descabe afirmar que seu conteúdo reflete mudança de orientação jurisprudencial sobre a matéria. Mesmo durante o período da pandemia, a Corte continuou a declarar a inconstitucionalidade de leis estaduais que interferiam no regime tarifário para impedir o corte no fornecimento de energia em face de inadimplência.
É o que se verifica em face das decisões que resultaram na declaração de inconstitucionalidade da (a) da Lei nº 2.042/MS, de 03/12/1999, e da Lei nº 5.484/MS, de 18/12/2019, que vedavam a efetivação de tais cortes “às sextas-feiras, vésperas de feriados e em quaisquer dias precedentes a datas em que, por qualquer razão não haja expediente bancário normal”, bem como (b) da Lei n° 4.632/DF, de 23/08/2011, que condicionou a suspensão dos serviços apenas “quando houver atraso igual ou superior a 60 (sessenta) dias no pagamento da fatura” e proibiu sua realização “em sextas-feiras, sábados, domingos, feriados e no último dia útil que anteceder a feriados”.
A dissonância jurisprudencial gerada — em face de julgados que ora vedam, ora admitem leis estaduais que interferem na cobrança de tarifas de energia elétrica e restringem a suspensão do seu fornecimento ante a falta de pagamento pelo usuário — poderia sugerir o reconhecimento de ressalva ou hipótese excepcional. Alguém poderia cogitar de tal variação em razão de desastres naturais e calamidades, ainda que possa causar espécie a oscilante extensão da noção de consumo para fins de interpretação das competências concorrentes[1]. Entretanto, o recente julgamento da ADI nº 7.337/MG excluiu essa linha de compreensão.
Nesse recente caso, foi apreciada a constitucionalidade da Lei n.º 23.797/MG, de 20/01/2021, que autorizava o Governador do Estado de Minas Gerais a conceder isenção da tarifa de energia elétrica a consumidores residenciais, comerciais e industriais. O benefício teria aplicação, segundo o texto legal, “nos três meses subsequentes ao período em que forem constatadas pelo poder público enchentes de grande proporção nos municípios do Estado”. Muito embora o diploma estadual contemple finalidade semelhante à das leis aprovadas no contexto da pandemia — ou seja, assegurar a continuidade do fornecimento em situações de calamidade pública —, foi reiterada a prevalência da competência privativa da União para legislar em matéria de energia elétrica.
Preponderou, nesse julgamento, a tese de que “não cabe ao Estado de Minas Gerais a elaboração de normas relativas a tarifas de energia elétrica”. Segundo o juízo acolhido pela maioria do STF, “ao prever isenções de tarifas, ainda que por períodos determinados, a norma ora impugnada interferiu nos contratos de concessão entre o poder concedente e a empresa”. Rejeitou-se, assim, qualquer caracterização do diploma estadual como lei sobre consumo ou flexibilidade em face de graves calamidades públicas.
5. O tratamento assimétrico
Logo após a promulgação da Constituição de 1988, travou-se relevante debate doutrinário acerca da possibilidade de se admitir tratamento normativo assimétrico entre unidades da federação. À luz do permissivo contido no parágrafo único do art. 22 da Constituição, cogitou-se da viabilidade de delegação seletiva de competências privativas da União apenas a certos entes subnacionais, mediante edição de lei complementar. Contemplava-se, portanto, hipótese de descentralização assimétrica do poder de legislar, fundada na pluralidade federativa e nas especificidades atinentes a cada Estado-membro[2].
Tal discussão, entretanto, perdeu relevância ao longo dos anos, em grande medida devido ao escasso uso desse mecanismo. No entanto, ao se analisar o teor dos julgados do STF concernentes à constitucionalidade de leis estaduais que impõem restrições ao corte do fornecimento de energia elétrica em casos de inadimplência, constata-se, sob outras condições, o ressurgimento da problemática.
Com efeito, a jurisprudência sobre a questão tem sido marcada por considerável variação de entendimentos. Ora se afirma a competência privativa da União para dispor sobre energia elétrica, rechaçando a tese de que a matéria comporte atuação normativa por parte dos Estados-membros; ora se admite que o tema se insere na esfera das relações de consumo, de modo a atrair a competência legislativa concorrente prevista nos incisos V e VIII do art. 24 da Constituição. Assim, leis estaduais com conteúdos normativos substancialmente semelhantes são, em determinados casos, reputadas constitucionais, ao passo que, em outros, são afastadas em razão de dispor sobre matéria reservada à competência da União.
Ao reconhecer a constitucionalidade de algumas dessas leis e rejeitá-la em relação a outras, passam tais decisões, na prática, a exercer função assemelhada a da lei complementar requerida no art. 22, parágrafo único, da Constituição. Chancelam a legislação de certos Estados sobre questões tarifárias e a continuidade do fornecimento de energia, enquanto rejeitam disciplina similar aprovada por outros, sem que se possa vislumbrar critério uniforme que sustente tal distinção.
Tome-se, por exemplo, as leis estaduais que vedam o corte de energia elétrica em sextas-feiras, finais de semana e feriados. O Estado do Paraná logrou êxito em ver reconhecida a constitucionalidade da Lei n.º 14.040/2003, obtendo, assim, julgamento favorável da Suprema Corte em face da regulação que dispensou à matéria. Já os Estados do Acre, do Mato Grosso e do Mato Grosso do Sul, embora tenham aprovado textos legais de conteúdo semelhante, não alcançaram o mesmo juízo. Suas leis foram declaradas inconstitucionais, sob o fundamento de que extrapolavam os limites da competência estadual.
Confere-se, assim, tratamento assimétrico às unidades da federação. As definições de consumo e energia elétrica têm oscilado em face de cada ente federativo. Alguns têm suas leis referendadas pela Suprema Corte, ao passo que os textos legais adotados por outros, apesar de exibirem conteúdo similar, não alcançam a mesma legitimação. Enquanto leis estaduais que estatuem isenção provisória de tarifas em face da pandemia foram declaradas constitucionais, o diploma que define regime semelhante para enchentes de grandes proporções acaba por se submeter a entendimento diverso.
Tal variação promove peculiar desenho institucional. Vislumbra-se, no final das contas, cenário em que determinados Estados são dotados de maior autonomia que outros. As competências legislativas acabam assumindo diferentes significados a cada caso, ainda que as leis editadas apresentem regime normativo equivalente[3].
Não é sem razão que agentes políticos de diferentes níveis de governo, como se viu, seguem propondo regular a matéria. Apostam na ausência de critérios uniformes. Buscam os legisladores estaduais, sobretudo, valer-se das brechas que legitimaram outros diplomas e usufruir da compreensão mais alargada sobre consumo que predominou em determinados julgados. No fundo, almejam alcançar o mesmo patamar de autonomia já outorgada — de forma implícita e seletiva — a outros Estados-membros.
[1] MACHADO, Antônio Pedro; MENEGARI, Marcos Paulo de Oliveira. Legislação estadual sobre suspensão do fornecimento de energia elétrica editada em face da COVID-19: competências e critérios de distinção na jurisprudência do STF. Estado federal em tempos de pandemia: reflexões a partir da jurisprudência do STF. São Paulo: Dia a dia forense, 2022, p. 485.
[2] Ver, a propósito, ALMEIDA, Fernanda Dias Menezes de. Competências na Constituição de 1988. São Paulo: Atlas, 2007, 4ª ed., pp. 93-94; também FERREIRA FILHO, Manoel Gonçalves. Aspectos do direito constitucional contemporâneo. São Paulo: Saraiva, 2003, p. 181.
[3] DARGÉL, Anelise Domingues Schuler. A jurisprudência do STF em tempos de pandemia e a interpretação das competências legislativas: a questão da constitucionalidade das leis estaduais sobre descontos em mensalidades escolares e suspensão dos serviços de energia elétrica. Estado federal em tempos de pandemia: reflexões a partir da jurisprudência do STF. São Paulo: Dia a dia forense, 2022, p. 499.