30 de junho de 2025
Politica

Aldo Rebelo x Moraes: a testemunha responde da forma que entender

Diante da pequena discussão existente o político de esquerda e ex-ministro dos governos Lula e Dilma, Aldo Rebelo, e um ministro do Supremo Tribunal Federal, durante a oitiva do primeiro como testemunha, sinto-me na obrigação de esclarecer do que se trata o crime de desacato, cuja prisão foi ameaçada pelo DD Magistrado.

Desacato é crime previsto no artigo 331 do Código Penal, que tem a seguinte definição típica:

“Desacatar funcionário público no exercício da função ou em razão dela: Pena. Detenção, de seis meses a dois anos, ou multa”.

Primeira observação que faço é que se trata de delito de pequeno potencial ofensivo, de competência do Juizado Especial Criminal, passível de conciliação entre os envolvidos, transação penal e, promovida a ação, suspensão condicional do processo, que, mesmo advindo condenação, dificilmente haverá prisão, exceto se se tratar de indivíduo reincidente específico.

Não é qualquer discussão entre o autor e o funcionário público que ensejará a adequação típica, haja vista a norma tutelar o prestígio dos agentes do Poder Público no exercício da função pública ou em razão dela.

Assim, para que ocorra o crime, o prestígio dos agentes do Poder Público, que exercem seus ofícios ou em razão deles, deve ser ferido. Por isso, não é qualquer palavra ou frase, ou mesmo discussão entre os envolvidos, que caracterizará o delito, mas algo que tenha o potencial de menoscabar ou aviltar o funcionário público, que, no exercício de suas funções, representa o Estado, que deve sempre ser respeitado.

O delito pode ser cometido por qualquer pessoa, inclusive por funcionário público e advogado.

Embora haja entendimento de que o funcionário público não pode ser autor deste delito, porque o desacato está inserido no capítulo que trata dos crimes praticados por particular contra a administração em geral, entendemos que é perfeitamente possível. Isso porque o funcionário público que desacata outro funcionário público, superior hierárquico ou não, despe-se dessa qualidade e equipara-se ao particular. Portanto, pode ser ele autor de desacato.

Com o advento do art. 133 da Constituição Federal, que colocou o advogado como essencial ao funcionamento da Justiça, tornando-o inviolável por suas manifestações e atos no exercício da profissão, nos termos da lei, pretendeu-se dar um alcance maior à norma, o que não é possível. Isso porque esses atos e manifestações devem ser feitos nos termos da lei, ou seja, de acordo com essa norma permissiva, que já era existente e aplicável (CP, art. 142, I).

O Estatuto da Ordem dos Advogados do Brasil (Lei 8.906/1994), em seu art. 7º, § 2º, instituiu semelhante dispositivo, dizendo que

O advogado tem imunidade profissional, não constituindo injúria, difamação ou desacato puníveis qualquer manifestação de sua parte, no exercício de sua atividade, em juízo ou fora dele, sem prejuízo das sanções disciplinares perante a OAB, pelos excessos que cometer.

Por esse dispositivo, a imunidade é extensível a atos judiciais fora do juízo, desde que no exercício de suas atividades profissionais de advogado. No que é pertinente à inclusão do crime de desacato, o Supremo Tribunal Federal tornou-a sem efeito, declarando sua inconstitucionalidade (1). No mais, a interpretação continua sendo a mesma, ou seja, haverá a imunidade desde que a ofensa seja feita nos termos do art. 142, I, do CP, uma vez que a indenidade não pretende acobertar abusos, tanto que a disposição constitucional a permite nos termos da lei.

A ação típica é desacatar, que significa desprestigiar, menoscabar o funcionário público que desempenha suas atribuições legais ou em razão delas. No primeiro caso, a vítima está desempenhando suas funções, seja qual for o local; no segundo, ela não está exercendo ato de ofício, mas a ofensa se dá em razão do exercício de sua função.

É crime de forma livre, podendo ser cometido por qualquer modo (gestos, gritos, palavras, agressão física que demonstre a intenção de desprestigiar o funcionário etc.). Pode, portanto, ser integrado pela calúnia, difamação ou injúria, que ficam absorvidas pelo desacato por ser crime meio.

É indispensável que o delito seja praticado na presença da vítima ou que essa possa perceber ou ouvir as ofensas, estando no local ou próximo a ele. Caso contrário, o delito será contra a honra (calúnia, difamação ou injúria) cometida contra funcionário público em razão de suas funções (CP, art. 141, II). Assim, o desacato não pode ser cometido pelo telefone, por meio de cartas etc.

E no caso de a ofensa ser proferida em videoconferência? Nesta hipótese, malgrado ofensor e vítima estejam à distância, como foi lançada à face do funcionário público, mesmo que virtualmente, equivale à feita pessoalmente, configurando o crime de desacato. Podemos citar como exemplo a ofensa endereçada a Juiz de Direito que preside audiência realizada por meio de videoconferência.

Não há previsão legal para retratação ou exceção da verdade. Sendo o desacato integrado por calúnia ou difamação, mesmo verdadeiro o fato imputado, não pode ser lançado à face do funcionário público que exerce sua função ou em razão dela.

Pouco importa, também, se o desacato não foi praticado na presença de outras pessoas, vez que a publicidade não é elemento do tipo.

Há forte corrente doutrinária e jurisprudencial no sentido de que o desacato exige o elemento subjetivo do tipo consubstanciado na especial intenção de desprestigiar ou desrespeitar o funcionário público que está no exercício da função ou em razão dela. Entretanto, não entendemos dessa forma, porque o verbo desacatar já implica necessariamente no menoscabo ou desprezo para com o funcionário público, tendo por finalidade o desprestígio da função pública. Assim, para nós, o elemento subjetivo do tipo (dolo específico) é desnecessário, uma vez que a intenção de desprestigiar ou menoscabar o funcionário público que desempenha suas funções ou em razão delas já integra a própria definição de desacato. Salientamos, porém, que o erro quanto à condição de funcionário público exclui o dolo e o desacato, podendo o sujeito responder por crime contra a honra, por ameaça, por lesões corporais etc.

Trata-se de crime doloso e formal, sendo que não se exige ânimo calmo e refletido, que não é elemento do tipo. Além do que, o art. 28, I, do CP, deixa claro que a emoção ou a paixão não excluem a imputabilidade penal. Porém, há opiniões entendendo que o desacato exige ânimo calmo e refletido, haja vista a necessidade do elemento subjetivo do tipo (especial finalidade de desprestigiar o funcionário público), que é incompatível com o estado de ira.

Da mesma forma, a embriaguez voluntária ou culposa não afasta o dolo e o delito (CP, art. 28, II), embora existam opiniões em contrário. Se assim não se entender, basta que o sujeito se embriague e ofenda o funcionário público para não ser punido pelo crime de desacato.

Muito embora tenham sido proferidas algumas decisões, inclusive do Superior Tribunal de Justiça, no sentido da inconstitucionalidade do crime de desacato por violar o direito à liberdade de expressão e do pensamento (2), não entendemos dessa forma. A figura do desacato se mostra compatível com o Estado Democrático de Direito, não sendo, portanto, inconstitucional. O funcionário público, que representa o Estado, tem de ser protegido quando do exercício de sua função ou em razão dela. Não é a sua pessoa física que é agredida, mas o próprio Estado, representado por seus agentes. O bem jurídico protegido é o prestígio dos agentes do poder público e não a pessoa do funcionário. Preserva-se, com isso, a importância do cargo e da função pública contra condutas desproporcionais, que ultrapassam os limites da liberdade de expressão e do pensamento. Não é qualquer manifestação do pensamento ou de expressão que caracterizará o desacato, mas condutas que extrapolem esses direitos, que, como todos os demais, não são absolutos (3).

A consumação ocorre com o insulto. Por ser crime formal, não se faz necessário que o funcionário tenha se sentido ofendido ou desprestigiado, desde que a conduta seja apta a tanto.

Não é possível a tentativa por ser crime unissubsistente e só poder ser cometido na presença do funcionário. Há quem defenda ser possível a tentativa quando, por exemplo, o sujeito tenta agredir ou lançar excrementos contra a vítima, que não é atingida. Entretanto, nesses casos, o crime estará consumado, pois a lei tem em mira a punição da atitude do autor, que pode constituir em simples gesto, que já é suficiente para violar a objetividade jurídica, que é o prestígio da administração pública.

Absorve infrações mais leves, como a contravenção penal das vias de fato, os crimes de ameaça e de lesões corporais leves etc. Se houver lesões corporais graves ou homicídio, ocorrerá concurso formal imperfeito e as penas serão somadas.

A pergunta que fica é a seguinte: teria havido o crime de desacato quando Aldo Rebelo respondeu às perguntas em sua oitiva em razão do enfoque das respostas?

Lembro que a testemunha responde às indagações da forma como entender e como os fatos ocorreram para não incorrer no crime de falso testemunho previsto no artigo 342 do Código Penal. Ocorrendo pequena altercação entre a testemunha e o magistrado, que não ultrapasse o limite da razoabilidade, pode até haver falta de educação, arrogância, petulância, mas não desacato, que exige o menoscabo ou o desprezo para com o agente público que age no exercício de suas funções ou em razão delas. Por isso, normalmente, as palavras ou frases proferidas caracterizariam crime contra a honra (calúnia, difamação ou injúria) se fossem dirigidas a um particular e, portanto, o ânimo de narrar um fato, de criticar ou de se defender, do mesmo modo que não caracterizam crime contra a honra, não importam adequação típica do crime de desacato.

Enfim, que cada um chegue à sua conclusão de acordo com o que por mim foi exposto de forma técnica, como consta do meu manual de direito penal.

1) Cf. ADI 1.127, Rel. Min. Marco Aurélio, j. em 17.05.2006, m.v.

2) STJ: Recurso Especial nº 1.640.084/SP, 5ª Turma, rel. Min. Ribeiro Dantas, v.u., j. 15.12.2016.

3) STF: HC 141949/DF, 2ª Turma, Rel. Min. Gilmar Mendes, m.v., j. 13.03.2018. STJ: HC 379269/MS, Relator para Acórdão Min. Antônio Saldanha Palheiro, 3ª Seção, m.v., j. 24.05.2017.

 

 

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *