Um universo paralelo
De Sérgio Jacomino, tinha presente a sua condição de registrador de imóveis bem peculiar. Erudito, entranhado na tecnologia, visionário, formulador de propostas novas para esse território de tamanha importância para a segurança jurídica de um dos direitos fundamentais mais ambicionados: a propriedade imobiliária.
Intuía que sua expertise nessa área reservada ao direito registral poderia conviver com outros interesses e aptidões. Só vim a descobrir que sua vocação se espraiava por infinitos labirintos da imaginação, ao ler “Sonhos de Szarkyon”. É um livro que alia a pequenez física – 112 páginas, em dimensão reduzida – a um acervo imenso de conteúdo.
Fragmentos autobiográficos, memorialística, lirismo, sensualidade, espanto diante da maravilhosa complexidade do viver, tudo cabe nesse universo paralelo ora partilhado com privilegiados leitores.
Jacomino domina a magia do xadrez das palavras. Tem intimidade com as metáforas. Explora a analogia sonora entre verbetes e produz formulações originais. O que sugeriria uma gota de non sense, vai se converter em sedutor convite para perscrutar veredas novas.
O livro começa com “Divagações”, prossegue com “Sonhos” e “Vivências”. O primeiro texto é sobre a morte: “Não há novidade alguma em extinguir-se, não é mesmo?…Novidade se faz entre os vivos, nós outros, que seguimos a dura peregrinação sobre a Terra dos Homens. Proclamamos a dor da perda e nos consolamos. Registramos em pesados livros a súbita sentença da vida: a Morte. Senhora eminente, soberana, pesa o cetro fatal sobre todos nós”.
A ceifadeira volta a surgir em “Vivências”: “Matar-me podes, neste silêncio vazio de estrelas. Como a chama levada pelo vento, deito as cinzas de um frágil sinete, perene signo sob a planta de seus pés. Reduzir-me a pó, poderias. Mais do que isso, não”. Todavia, a morte não é tudo: “Impermanência. De nós restará mais do que pó e cinzas. Belas poesias”.
Ele chega a citar “la loca de la casa”, que era como Santo Agostinho chamava a imaginação. Dessa copiosa fonte jorram haicais: “O trem carrega os homens. Os sonhos tardam nostálgicos. Nos bancos da estação” ou “Evanescente, erras na tarde radiosa; onde erras que não erro?”.
Em “Silêncio”, um exame de consciência: “A pergunta busca reexistir na resposta. Por que temos tantas respostas e escasseiam as perguntas? Não me responda o que não posso perguntar. Nem corresponda com o silêncio. Sejamos desiguais nas angústias. Sem perguntas. Nem respostas”.
O exercício extrajudicial é inspiração: “Fides publica. Ó fé pública, faca imolada. Jazes sem fio, falseada e acabada”.
São Paulo aparece, de forma devaneante, em Santo Amaro: “Capte-o! Vertedouro de águas profundas, consuma-o! o fim de todas as lágrimas é sempre o mar. Amar. Às vezes o encontro amaro. Amar santo. Santo Amaro, amassas e conformas o barro essencial deste jarro santo!”.
O texto “Uma menina cega” é tocante: “Uma menina cega. Sentei-me no assento reservado a idosos. À minha frente, bem à testa, diviso uma linda garota cega, com uma feição impassível, um rosto róseo, tranquilo, de linhas harmoniosas. Olho diretamente para seus olhos e ela começa a piscar. Como um quasar. Desvio os meus, tímido. Fecho-os e fixo o semblante da menina cega. Penso que podemos nos enxergar sob a densa escuridão. Algumas estações adiante, abro os olhos e não a vejo. Saiu tranquila, suave, silenciosamente. Imaginei que me endereçava um sorriso, a menina cega. Sorri em retribuição e segui minha jornada pensando em tudo que se pode ver com os olhos fechados”.
Sergio Jacomino tem os olhos bem abertos para o presente e o futuro do sistema registral imobiliário. Mas também consegue, ao fechá-los, ingressar no mistério fascinante daquele espaço que nos é dado percorrer em pensamento. Livre, sem amarras, aberto a combinações nem sempre autorizadas pelas fortes correntes da convenção, do respeito humano constrangedor, que tolhe a intenção de sermos como realmente somos.
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