Nos últimos 40 anos, Congresso só derrubou 2 decretos presidenciais, como quer fazer com IOF de Lula
Em quase quatro décadas da promulgação da nova Constituição, em 1988, apenas dois decretos presidenciais foram efetivamente derrubados pelo Congresso Nacional. Agora, parlamentares se articulam para tentar sustar, por meio de Projetos de Decreto Legislativo (PDLs), o decreto do governo Lula que elevou a alíquota do Imposto sobre Operações Financeiras (IOF) – tributo que incide sobre operações de crédito, câmbio e investimentos internacionais. Embora esse tipo de reação seja historicamente pouco eficaz, líderes ouvidos pelo Estadão avaliam que, desta vez, há um ambiente político favorável à reversão da medida.
Previstos na Constituição, os PDLs permitem ao Congresso anular atos do governo que extrapolem os limites legais. Já os decretos presidenciais conferem ao presidente a prerrogativa de editar atos com efeitos imediatos, sem necessidade de aprovação prévia do Parlamento. Como possibilitam mudanças sem consulta aos parlamentares, esses decretos frequentemente provocam reações no Legislativo. Nesses casos, a sustação da norma por meio de um PDL representa uma derrota expressiva para o governo, por evidenciar que as duas Casas rechaçaram a medida e impuseram um limite à ação direta do Executivo, uma situação rara e politicamente significativa.

Levantamento feito pelo Estadão, com base em dados do Congresso Nacional, mostra que, desde 1988, o Legislativo aprovou em ambas as Casas apenas dois PDLs que anularam decretos presidenciais. O primeiro foi em 1989, quando parlamentares sustaram um decreto do então presidente José Sarney que extinguia três estatais federais, numa tentativa de conter a inflação. Três anos depois, em 1992, um decreto de Fernando Collor que modificava as regras para o pagamento de precatórios também foi considerado abusivo e anulado por exceder os limites legais impostos ao Executivo. Os precatórios são dívidas judiciais reconhecidas pela Justiça e que devem ser pagas por entes públicos.
Agora, o Congresso volta a acionar esse mecanismo diante da insatisfação provocada pelo decreto do governo Lula que elevou a alíquota do IOF para 3,5%. Até o momento, ao menos 22 PDLs foram protocolados com o objetivo de suspender os efeitos da norma. A movimentação ganhou força após o presidente da Câmara, Hugo Motta (Republicanos-PB), criticar a medida no início da semana, afirmando que “quem gasta mais do que arrecada não é vítima, é autor”, em referência ao governo. Dois dias depois, na quarta-feira, 28, Motta declarou, após reunião com líderes, que Lula precisa entrar nas negociações e que já há votos suficientes nas duas Casas para derrubar o decreto, diante de uma “insatisfação geral” entre os deputados.
A percepção é compartilhada por líderes partidários. Presente no encontro, o deputado Mário Heringer (PDT) diz que já há votos suficientes para aprovar o PDL na Câmara. “Se a votação fosse hoje, o decreto seria derrubado”, afirma.
O líder da Oposição na Câmara, deputado Zucco (PL-RS), que também participou da reunião, aposta na revogação da medida e classifica a decisão do governo como autoritária e tomada sem qualquer diálogo com o Congresso. Para o parlamentar, o decreto representa um “confisco”, adotado sem estudos técnicos e à revelia tanto do Legislativo quanto do Banco Central.
Zucco ainda aponta uma contradição com a reforma tributária aprovada no fim do ano passado, cuja promessa central era a simplificação e a redução da carga de impostos. “Eu espero que a gente consiga, o mais rápido possível, sustar esse projeto, que é um projeto irresponsável e criminoso contra os brasileiros”, afirma.
Por outro lado, uma eventual derrubada do decreto do IOF teria impacto direto sobre as emendas parlamentares. Segundo técnicos do governo, caso o aumento do imposto seja anulado, o Executivo deverá bloquear cerca de R$ 12 bilhões em emendas. Pelas regras do Orçamento, quando o governo precisa cortar despesas para cumprir a meta fiscal, as emendas também entram na conta e podem ser travadas na mesma proporção que outras despesas discricionárias, como o custeio de ministérios e os investimentos em obras públicas.
Como mostrou a Coluna do Estadão, o governo tem usado esse argumento para tentar conter a articulação em torno dos PDLs, sinalizando que a queda do IOF atingiria diretamente os recursos destinados aos redutos eleitorais dos parlamentares.
Apesar do tensionamento entre Legislativo e Executivo, Heringer avalia que o próprio governo deve tentar construir uma alternativa nos próximos dias. “Não vejo aqueles que são maioria e estão defendendo a queda do decreto recuando em dez dias, mas acredito na possibilidade de construção de alguma solução alternativa que não passe por mais um aumento de imposto”, completa.
A estimativa do pedetista leva em conta um acerto entre os chefes dos Poderes, feito em reunião nesta semana com o presidente da Câmara, Hugo Motta, o ministro da Fazenda, Fernando Haddad, e o presidente do Senado, Davi Alcolumbre (União-AP), na qual “ficou combinado” que a equipe econômica terá dez dias para apresentar ao Congresso um “plano alternativo” ao aumento do IOF.
Acuado pela repercussão negativa, o Ministério da Fazenda recuou no mesmo dia do anúncio e revogou dois trechos do decreto: um que previa a cobrança do imposto sobre o envio de dinheiro de fundos de investimento ao exterior, e outro que atingia transferências feitas por pessoas físicas para contas fora do País.
A medida, no entanto, não arrefeceu os ânimos, e a reação chegou à Casa Alta. No Senado, também nesta quinta-feira, Alcolumbre endureceu o discurso durante sessão plenária e acusou o governo de tentar “usurpar as atribuições legislativas” do Congresso ao editar medidas desse tipo sem diálogo prévio.
Para o cientista político Vinícius Alves, do IDP-SP, o uso de termos como “usurpação” indica um endurecimento no discurso e reforça a tentativa do Legislativo de se afirmar como protagonista nas decisões de política econômica. Ele avalia que esta é a primeira vez, desde o início das novas gestões, que os presidentes da Câmara e do Senado se colocam de forma tão clara contra uma iniciativa do governo.
Até então, diz, ambos vinham adotando uma postura na maior parte do tempo alinhada às pautas de interesse do terceiro mandato de Lula. A reação ao decreto do IOF, no entanto, marca uma inflexão nesse padrão de relacionamento entre os Poderes. “Esse tipo de manifestação pública revela uma mudança de postura”, afirma.
Outros atos já foram derrubados por PDLs, mas nenhum com peso de um decreto
Dos poucos PDLs aprovados desde 1988, a maioria teve como alvo portarias editadas por órgãos vinculados à Presidência da República – medidas que criaram obrigações ou impuseram restrições sem aval do Congresso, mas que não carregam o mesmo peso político de um decreto presidencial.
Em 2021, por exemplo, em meio à pandemia, o Congresso suspendeu uma portaria do Ministério da Saúde que impunha limites à liberação de emendas parlamentares destinadas ao combate à Covid-19 no SUS. Outro caso ocorreu em 2020, quando o Congresso anulou uma norma da Secretaria do Tesouro Nacional que alterava os prazos para a publicação de demonstrativos fiscais por Estados e municípios. Já em 2015, foi sustado um ato do Ministério da Agricultura que impunha critérios ambientais mais rígidos ao setor agropecuário.
A ferramenta, contudo, também tem sido usada de forma estratégica para pressionar o Executivo a recuar de determinadas medidas. Em algumas ocasiões, a aprovação de um PDL em apenas uma das Casas foi suficiente para que o governo desistisse da norma, evitando uma derrota formal na outra. Foi o que ocorreu em 2023, quando a Câmara aprovou a derrubada de dois decretos do presidente Lula que alteravam a regulamentação do marco legal do saneamento básico. Para evitar uma derrota no Senado, o governo revogou os decretos e publicou novas regras.
Situação semelhante ocorreu durante o governo Jair Bolsonaro, quando o Senado aprovou um PDL que derrubava o decreto presidencial que flexibilizava regras para posse e porte de armas. Antes que a Câmara analisasse o projeto, Bolsonaro revogou os decretos questionados e editou novas normas sobre o tema, o que levou ao arquivamento do PDL.
Diante desse histórico, o desfecho do embate atual em torno do IOF pode ter impactos políticos relevantes, explica Alves. Ele avalia que a forma como o governo lida com essa “bola dividida” poderá não apenas aprofundar o desgaste na relação entre Executivo e Legislativo, como também gerar custos diretos para o presidente Lula e para o ministro Fernando Haddad, sobretudo em um contexto de antecipação do debate sobre as eleições de 2026. “Em caso de derrota, será mais um grande sinal de alerta para Lula”, completa.