29 de junho de 2025
Politica

O equilíbrio necessário: ‘ADPF das favelas’ e a defesa da vida

A Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) 635, conhecida popularmente como a “ADPF das Favelas”, tem sido alvo de intensos debates e, não raro, de interpretações equivocadas que distorcem seu propósito fundamental. Longe de representar uma proibição indiscriminada das operações policiais nas comunidades do Rio de Janeiro, a decisão do Supremo Tribunal Federal (STF) buscou, em sua essência, estabelecer um marco de responsabilidade e respeito à vida, especialmente a de inocentes, frequentemente apanhados no fogo cruzado de uma violência endêmica. É crucial desmistificar a narrativa de que o STF teria manietado as forças de segurança, quando, na verdade, impôs condições para que a atuação estatal se paute pela inteligência, planejamento e, acima de tudo, pela preservação da dignidade humana.

A intervenção do STF não surgiu em um vácuo, mas como resposta a um histórico preocupante de letalidade policial e violações de direitos humanos em operações realizadas em áreas densamente povoadas. Relatos de execuções sumárias, invasões de domicílio sem mandado e a trágica perda de vidas inocentes, incluindo crianças e adolescentes, tornaram-se dolorosamente comuns, evidenciando a urgência de um controle externo mais rigoroso sobre a condução dessas ações. Ignorar esse contexto é fechar os olhos para o sofrimento de comunidades inteiras, que vivem sob o constante temor não apenas da criminalidade, mas também da truculência de quem deveria protegê-las.

O cerne da ADPF 635 não é a interdição da presença policial, mas a exigência de critérios para sua atuação. Durante o período mais crítico da pandemia de COVID-19, a suspensão de operações, salvo em casos de absoluta excepcionalidade, visou proteger populações já vulnerabilizadas pela crise sanitária. Posteriormente, a decisão evoluiu para impor requisitos permanentes: as operações devem ser comunicadas previamente ao Ministério Público, justificadas em sua necessidade e conduzidas com o mínimo de impacto sobre a rotina e a segurança dos moradores. Medidas como a instalação de câmeras nos uniformes policiais e em viaturas também foram contempladas, buscando aumentar a transparência e coibir abusos.

Infelizmente, uma leitura superficial ou mal-intencionada da decisão propagou a ideia de que o STF teria “proibido” a polícia de trabalhar. Tal afirmação não apenas é factualmente incorreta, como também desvia o foco do debate principal: a necessidade de uma polícia que atue com eficácia, sim, mas dentro dos limites da lei e com respeito aos direitos fundamentais. A verdadeira segurança pública não se constrói sobre o medo e a arbitrariedade, mas sobre a confiança e a legitimidade das instituições. As exigências impostas pelo STF são, nesse sentido, ferramentas para qualificar a ação policial, tornando-a mais estratégica e menos dependente da força bruta indiscriminada.

O objetivo primordial da ADPF 635 é, portanto, a proteção de vidas inocentes. As comunidades não podem ser tratadas como campos de batalha onde “danos colaterais” são aceitáveis. Dados do Instituto de Segurança Pública do Rio de Janeiro (ISP-RJ) revelam que 78% das vítimas fatais eram residentes locais sem qualquer envolvimento com o crime. Cada vida perdida, cada criança traumatizada, cada família enlutada por uma operação mal planejada ou executada de forma abusiva representa uma falha do Estado em seu dever mais básico de garantir a segurança de todos os seus cidadãos, sem distinção. As medidas do STF buscam precisamente reduzir a probabilidade desses trágicos eventos, forçando uma reflexão mais profunda sobre os métodos empregados.

Ao exigir planejamento, justificativa e comunicação, o Supremo incentiva que as operações policiais sejam fruto de investigação e inteligência, e não meras reações impulsivas ou demonstrações de força. Uma ação bem fundamentada, com alvos claros e estratégias para minimizar riscos à população civil, tende a ser não apenas mais segura, mas também mais eficiente no combate ao crime organizado. A ideia não é impedir o confronto quando necessário, mas garantir que ele seja o último recurso, e não a regra.

É inegável que a implementação plena e eficaz das diretrizes da ADPF 635 enfrenta desafios, desde resistências corporativas até a necessidade de investimentos em treinamento e tecnologia. Contudo, esses obstáculos não invalidam a correção e a urgência da medida. A adaptação a um modelo de policiamento mais técnico e garantista é um imperativo civilizatório, que beneficia não apenas as comunidades diretamente afetadas, mas a sociedade como um todo, ao fortalecer o Estado de Direito.

A fiscalização contínua por parte do Ministério Público e da sociedade civil organizada é essencial para assegurar que as determinações do STF sejam cumpridas e que eventuais desvios sejam prontamente corrigidos e punidos. A transparência e a accountability são pilares para a construção de uma relação mais saudável e produtiva entre a polícia e a população, especialmente em áreas historicamente marcadas pela desconfiança e pelo conflito.

Ademais, é preciso reconhecer que a complexidade da segurança pública no Rio de Janeiro não se resolve apenas com intervenções pontuais, mas demanda políticas públicas abrangentes que ataquem as causas estruturais da violência. No entanto, enquanto essas soluções mais amplas não se concretizam, garantir que as ações do Estado não agravem o sofrimento das populações mais vulneráveis é um passo inadiável e fundamental.

Em conclusão, a ADPF 635 não representa um entrave à segurança pública, mas um avanço civilizatório. Ao condicionar as operações policiais ao respeito pela vida e aos direitos humanos, o STF não proibiu a polícia de agir, mas a convocou a agir melhor, com mais inteligência, responsabilidade e humanidade. Trata-se de um esforço para que o monopólio da força estatal seja exercido em favor da proteção de todos, especialmente dos inocentes, cujas vidas não podem ser consideradas secundárias na complexa equação da segurança pública.

 

 

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