Mensalão faz 20 anos com orçamento secreto turbinado pelo Congresso no terceiro governo Lula
De repente, 20 anos. O escândalo do mensalão completa duas décadas neste mês e, ao que parece, tudo mudou para ficar como está. Não sem motivo: a engrenagem da crise que quase dizimou o PT e provocou um terremoto político no primeiro mandato do presidente Luiz Inácio Lula da Silva ganhou ares de legalidade no Congresso.
Antes, quem comandava o jogo da barganha era o Palácio do Planalto. Desde que foi instituído o orçamento secreto, porém, o Legislativo não depende mais do governo. Nem o loteamento de ministérios exerce o fascínio de outrora.
“Pode-se dizer que o substituto do mensalão, atualmente, é esse esquema das emendas parlamentares”, afirma o cientista político Aldo Fornazieri, professor da Fundação Escola de Sociologia e Política de São Paulo. “O Executivo virou refém do Legislativo. Trata-se de um esquema muito mais amplo, que envolve uma quantidade incomparavelmente maior de recursos”, destaca ele.
Entre 2005 e 2006, a CPMI dos Correios concluiu que o desvio para mensalão foi de R$ 1,3 bilhão. Neste ano, deputados e senadores conseguiram capturar R$ 50 bilhões do Orçamento para suas emendas. E delas não querem abrir mão nem mesmo para salvar o País de um “shutdown” da máquina pública.
Nem todo esse valor, é claro, percorre o caminho da corrupção. Mas, de acordo com investigações da Polícia Federal, há um duto bem largo por onde o dinheiro escapa.
Embora o Supremo Tribunal Federal (STF) tenha barrado o orçamento secreto – prática criada no governo de Jair Bolsonaro, como revelou o Estadão em maio de 2021 –, o Congresso conseguiu subterfúgios. Não só driblou a proibição como aperfeiçoou o modelo.
Atualmente, existe até corretor de emendas e meia centena de inquéritos já foi aberta pela Polícia Federal para investigar a fraude, que está infiltrada em prefeituras. Relator das ações no STF que tratam desse desvio de recursos, o ministro Flávio Dino diz que o imbróglio das emendas vai muito além daquilo que se vê de feio.
“Hoje, um parlamentar acumula três grandes fontes de produção de votos: fundo partidário, fundo eleitoral e emendas”, observou ele nesta terça-feira, 3, ao participar de um encontro organizado pela revista piauí, em Brasília.
Dino não quis, porém, dizer quantos bilhões desviados constam das diligências sob sua relatoria. “São tão numerosos quanto as estrelas no céu e as areias nas praias. Incontáveis”, filosofou. “Isso foi Deus dizendo para Abraão”, prosseguiu, rindo.
Antes nos bastidores, os principais personagens do escândalo que abalou o primeiro mandato de Lula estão agora de volta aos holofotes da política. Ex-ministro da Casa Civil, José Dirceu (PT) concorrerá a deputado federal, em 2026. Até hoje ele sustenta que o mensalão foi uma “farsa”.
Dirceu admite o “caixa dois” para abastecer campanhas eleitorais, mas não a compra de apoio, com pagamentos mensais a parlamentares, para garantir a governabilidade.
“Queriam me tirar da vida política pela minha experiência e porque eu era importante para o governo. Eu podia entrar na linha sucessória do presidente Lula”, argumentou o ex-ministro.
A Polícia Federal identificou, recentemente, que Dirceu era um dos alvos secretos do plano Punhal Verde e Amarelo, preparado pelo general Mário Fernandes para executar autoridades na trama golpista.
As investigações revelaram que Lula, o vice Geraldo Alckmin e o ministro do STF Alexandre de Moraes encabeçavam a lista dos que deveriam ser assassinados.
Lula era tratado nas mensagens obtidas pela PF como “Jeca”; Alckmin, “Joca”; e Moraes recebeu a alcunha de “Professora”. Como militares avaliavam que Dirceu exercia forte influência sobre Lula, ele também entrou na lista com o codinome “Juca”.
Juca, aliás, é o apelido de José Luís Oliveira Lima, criminalista que defendeu Dirceu na crise do mensalão. Agora, Oliveira Lima é advogado do general Braga Netto, réu no processo da tentativa de golpe.

Aldo Rebelo, que era titular da Coordenação Política em 2005, diz até hoje nunca ter ouvido falar em mensalão enquanto foi ministro e líder do governo Lula. No dia 23 de maio, Rebelo surpreendeu a esquerda ao aparecer como testemunha do ex-comandante da Marinha Almir Garnier, outro réu do chamado “núcleo militar” que estava por trás dos atos golpistas do 8 de Janeiro de 2023.
Vinte anos atrás, o ex-ministro também foi testemunha de defesa, mas de José Dirceu. No auge do escândalo, Rebelo chegou a visitar o ex-presidente Fernando Henrique Cardoso, em São Paulo. Queria saber se o PSDB – à época um partido importante – iria atuar pelo impeachment de Lula. FHC lhe respondeu que não. Avisou que a oposição queria ver o governo sangrar e Lula derrotado, mas nas urnas.
Rebelo não vê incoerência nesses dois momentos de sua vida política. “Não há contradição. Ambos (Dirceu e Garnier) foram submetidos a julgamento sem amplo direito de defesa”, disse ele à coluna.
Por 40 anos, Aldo Rebelo integrou as fileiras do PC do B. Atualmente, está no MDB, coordena o projeto “O Brasil precisa pensar o Brasil” – que será lançado em setembro pelo partido – e se movimenta de olho na sucessão de Lula, em 2026. Ex-ministro da Defesa e ex-presidente da Câmara, ele tem apoio de um grupo de militares para a empreitada rumo ao Planalto.
Ao tergiversar sobre a última flor do Lácio, inculta e bela, para defender Garnier – que pôs as tropas “à disposição” do ex-presidente –, Rebelo travou um embate verbal com Alexandre de Moraes. Foi ameaçado de prisão por desacato quando disse que não admitia “censura”.
A palavra de triste memória na ditadura militar é hoje usada com outra conotação por aliados de Bolsonaro para alvejar o STF.
Do mensalão até hoje, muita coisa mudou para tudo ficar como está. Mas pelo menos Roberto Jefferson, o delator, vive agora com tornozeleira eletrônica. E, para o bem de nossos ouvidos, parou de cantar ópera.