A prisão do MC e a alegada captação do funk pelas associações do crime
Introdução:
A guerra cultural no Brasil tem provocado efeitos diretos e indiretos sobre o debate social, especialmente em temas sensíveis como a segurança pública ou, como defendem os mais modernos, segurança multidimensional. Em um cenário de polarização ideológica, duas visões antagônicas disputam espaço: uma defende o endurecimento penal, o fortalecimento das forças de segurança e a repressão ao crime, outra, aposta em políticas sociais, educação e ressocialização como estratégias centrais. Essa disputa, longe de se restringir ao campo teórico, influencia a formulação de políticas públicas e impacta diretamente o cotidiano da população, sobretudo a parcela mais vulnerável.
O caso recente da prisão de um polêmico MC no Rio de Janeiro incendiou de vez este conflito de visões[1], muito embora tenha ele, no momento da sua detenção, optado espontaneamente por “(…) declarar afinidade com a “ideologia” da facção (…)”[2] Comando Vermelho. Este episódio retrata nitidamente a complexidade do “imprinting” e suas severas consequências na formação cultural, especialmente da juventude.
O Imprinting e a formação ideológica:
Afinal de contas o que é “imprinting”? Trata-se de processo desenvolvido, originalmente pelo etólogo Konrad Lorenz no campo da biologia e se presta a retratar a fixação precoce de padrões comportamentais, especialmente durante fases críticas do desenvolvimento. Esse conceito foi posteriormente apropriado por áreas como a psicologia social e a pedagogia, que passaram a associá-lo à formação de crenças, valores e visões de mundo desde a infância.
Importante pontuar, aqui, o seguinte: quando esse processo ocorre desvirtuadamente, gera-se corrupção na formação cultural, de sorte a consolidar visões equivocadas sobre temas como violência, autoridade, justiça e cidadania. Assim, práticas ou crenças maléficas acabam naturalizadas e perpetuam ciclos de desigualdade, criminalização seletiva e legitimação de discursos de ódio e/ou exceção.
No contexto da guerra cultural, o “imprinting” tem sido empregado, especialmente no Brasil, como mecanismo de formação ideológica — moldando, desde cedo, a forma como crianças, adolescentes e aqueles recém ingressados na fase adulta identificam a figura do Estado, especialmente dos seus agentes, sempre cantados em prosas e versos energizados por discursos de ódio, de violência gratuita e de preconceitos.
Discurso de ódio é, inegavelmente, uma violência verbal. Segundo Daniel Sarmento, se caracteriza quando verificadas “manifestações de ódio, desprezo ou intolerância contra determinados grupos, motivadas por preconceitos”. Assim, quando letras musicais sugerem atos de violência contra integrantes de facções rivais e/ou agentes públicos, dois grupos distintos dos seus propagadores, toleram graves atos contra a humanidade, pois segundo “a Organização das Nações Unidas, direitos humanos são ‘direitos inerentes a todos os seres humanos, independentemente de raça, sexo, nacionalidade, etnia, idioma, religião ou qualquer outra condição’, incluindo ‘o direito à vida e à liberdade, à liberdade de opinião e de expressão, o direito ao trabalho e à educação, entre e muitos outros e todos merecem estes direitos, sem discriminação”. E nem se ouse ponderar sobre liberdade de expressão, pois esta encontra limites, já que inexistem direitos absolutos, nas leis e outras garantias constitucionais. “Ou seja, ter falas racistas, homofóbicas e similares, utilizando do argumento de liberdade de expressão, além de ser um ato nada empático e respeitoso, é configurado como crime, por ferir vários direitos fundamentais assegurados em nossa atual Constituição.”[3]
A verdade é que em um país de séria democracia, inspirado pelo princípio constitucional da isonomia (art. 5º caput da CRFB/88[4]), discursos de ódio são sempre repudiáveis e merecem severa punição pela sua capacidade de projeção em um mundo globalizado, onde a magnitude de atos sedutores voltados à instigação à violência devem ser imediatamente cessados e as vozes propaladoras caladas. Veja-se, por exemplo, recente decisão judicial onde foram derrubados vídeos exaltando a violência policial. Nestes, “agentes deram entrevistas com conteúdos considerados como ‘disseminação de discursos de ódio’” e, por tal motivo a “(…) magistrada (viu) as declarações como desproporcionais ‘ao ideal informativo‘.[5] Correta a decisão, a nosso sentir!
Infelizmente tais reflexos estão ocorrendo com grande frequência em ambientes periféricos, dominados pelo crime e, também, em setores elitizados da sociedade, onde o consumo de discursos ideológicos refinados, porém distantes da realidade concreta, se proliferam de maneira fugaz.
Reflexos nas comunidades vulneráveis:
Nas regiões mais afetadas pela criminalidade, a exposição constante à violência vem gerando a naturalização do crime e a desconfiança crônica do Estado. Crianças e adolescentes criados nesse ambiente tendem a desenvolver uma percepção invertida sobre autoridade e justiça. Mário Sérgio Duarte (2011) denomina esse fenômeno como “ideologia de facção”, uma narrativa legitimadora do domínio de grupos criminosos, travestida de protetorado da comunidade e de resistência à ausência e à repressão do Estado.
Essa percepção é reforçada por produtos culturais, especialmente a música disseminada por certos subgêneros do funk desenvolvidos com o escopo de exaltar o crime como meio de ascensão social, eliminação de rivais e agentes públicos e/ou resistência política[6]. Esta influência cultural de facções é crescente nas periferias urbanas e compromete os esforços de prevenção e ressocialização, reforçando, primordialmente nestas zonas de exclusão de Soberania (blackspots), a intensa participação de Organizações Criminosas nas dinâmicas sociais, ampliando, definitivamente, a segregação de grande parcela dos moradores, que, no final das contas almejams “(…) andar tranquilamente na favela (…)” onde nasceram, nutrindo orgulho e “(…) consciência que o pobre tem seu lugar (…)”, sempre “(…) com fé em Deus (…)”[7].
Na hipótese do “artista” detido cautelarmente, tal debate ganha relevo[8]. Isso porque para além da sua manifesta confirmação de alinhamento à facção Comando Vermelho, há de se apurar os conjecturados fatos sob o enfoque da legalidade. No caso, os cânticos inflamando, só um processo justo dirá, atos hostis contra pessoas ligadas à facções rivais e/ou agentes públicos, em tese podem caracterizar a violação do art. 287 do CP (Apologia ao Crime). Mais: argumenta-se, ainda, possível prática do crime de associação para fins de tráfico (art. 35 da Lei 11.343/06). Neste ponto incidiria, pelo menos ao que parece pelos debates midiáticos, o concurso de agentes previsto no art. 29 do CP, pois, afinal, quem concorre para o crime suporta penas a ele cominadas. Isso porque, em princípio as ações propaladas nas exposições incrementam o fortalecimento da facção Comando Vermelho, inclusive, nos bailes, onde se consomem livremente drogas, fatos denunciados em inúmeros vídeos públicos[9]. Tal facção, não se esqueçam, foi flagrada relacionando-se de forma cavernosa com o grupo terrorista Al Qaeda[10], constatação capaz de criar grave constrangimento mundial para o Brasil.
Intensificando este árido contexto, têm-se ainda parte das elites urbanas e acadêmicas reproduzindo forte imprinting ideológico. Essa elite costuma atuar com forte presença em espaços como universidades, ONGs, mídia e instituições culturais. Ainda que muitas dessas iniciativas tenham objetivos legítimos, sua visão sobre segurança pública, por vezes carece de equilíbrio entre garantismo jurídico integral e realidade social, o que contribui para a manutenção de uma narrativa polarizada e pouco eficiente.
A ascendência da mídia e das redes sociais:
Ainda neste universo, presta grande desserviço ao amadurecimento social parcela da mídia tradicional e das redes sociais. Empenhados em promover o reforço do imprinting ideológico, esse ecossistema digital brasileiro favorece a criação de bolhas informacionais onde usuários incautos e pessoas mal preparadas consomem, majoritariamente, teores deturpados e formadores de crenças prévias. Tal manobra finda por dificultar o diálogo e o pensamento crítico isento, porque se solidifica a partir da construção de uma narrativa, verdadeiro processo insidioso, desenvolvido paulatinamente onde o indivíduo é bombardeado com informações tendenciosas.
Essa engenharia social alcança o jovem do ensino médio que em três décadas será Juiz, Promotor de Justiça, Defensor, Advogado, Delegado, além de um universo de outras profissões onde a responsabilidade exige isenção. A mãe cuja filha frequenta bailes funk e, até mesmo alunos de mestrados e doutorados. Estes, igualmente, figuram dentre os alvos desta lavagem cerebral.
Esses formadores de opiniões e fomentadores de decisões sofrem o mesmo processo de influência psicológica. O efeito é bombástico, pois não se trata, aqui, de manipulação das massas. Vai além: trata-se de verdadeira programação da cognição de contingentes populacionais significativos, integrantes valorosos de uma sociedade.
Pontue-se: cognição é a capacidade de transformar informação em conhecimento. Toda informação disponibilizada para o público passará por um processo cognitivo e levará invariavelmente as mesmas conclusões e estas serão sempre preconceituosas, pois o imprinting programa o cérebro a partir dos primórdios educacionais, com frases de efeito deturpadoras do Estado e de seus Agentes. (Ex: polícia é truculenta e opressora, o Estado é preconceituoso etc.)
Essa dinâmica também se aplica à segurança pública: enquanto parte da população enxerga as forças policiais como instrumentos de opressão, outra parcela as vê como salvadoras da ordem. Ambas são alimentadas por narrativas midiáticas e políticas voltadas a mobilização ideológica, não a construção de soluções práticas e efetivas. Em suma: promovem dispensável imunização cognitiva voltada tão-somente à superação e/ou neutralização do senso comum.
Processo de reversão:
Para além do embate entre repressão e prevenção, é necessário reconhecer que a segurança pública exige abordagens integradas. Países bem-sucedidos na redução da criminalidade combinaram políticas sociais com ações eficazes de justiça criminal, turbinando seus sistemas. É preciso sair da lógica binária e buscar políticas públicas baseadas em evidências, voltadas à redução das causas estruturais do crime e à contenção imediata da violência. Surge, aqui, aquele conceito de segurança multidimensional tão bem defendido por Alessandro Visacro.
Além disso, o enfrentamento ao imprinting ideológico passa pela valorização da educação crítica, da pluralidade de ideias e da formação de cidadãos capazes de interpretar a realidade de forma mais ampla e menos condicionada por discursos prontos.
Conclusão:
Criminalizar o funk, por óbvio, é uma ofensa a liberdade cultura. Um atentado sem precedentes a liberdade de expressão. Verdadeira ofensa a história de um povo. Isso é obvio e intolerável porque se tem a frente um movimento social relevante e de passado recente altamente contagiante e sedutor[11], assim como, por exemplo, se viu no samba, especialmente nas letras dos saudosos Dicró e Bezerra da Silva. Nestes movimentos citados as críticas eram severas, todavia, depuradas e com toque de humor, além de dotadas de invejável refinamento intelectual. Passavam bem distante desta vulgar cooptação em favor de facções criminosas, desta pregação inconsequente de execução de seres humanos rivais, porte indiscriminado de armas de fogo clandestinas e seu emprego, violência contra mulheres etc. Não há, aqui, qualquer aprimoramento, nem tampouco expressão cultural relevante e capaz de disseminar paz, amor e crescimento social. Há, apenas, selvageria e glamourização do crime, a nosso aviso, travestidas de “movimento cultural”, voltadas para disseminação de guerra, ódio, vingança, extermínio de seres humanos e sangue[12]; nada mais!
Há de se entender, em derradeiras linhas, que a guerra cultural é um campo estratégico onde se disputa o imaginário coletivo e a forma como a sociedade interpreta seus problemas. No caso da segurança pública ou multidimensional, o imprinting ideológico é um desfavor e tem dificultado a construção de consensos e a adoção de políticas mais eficazes. Reconhecer essa disputa e seus mecanismos é o primeiro passo para superá-la. Sem isso, continuaremos presos a narrativas que mais dividem do que resolvem.
Referências bibliográficas
- DUARTE, Mário Sérgio O. A guerra: a visão de um comandante. São Paulo: Companhia das Letras, 2011.
- VISACRO, Alessandro. Guerra na Era Informacional. Rio de Janeiro. Contexto. 2018
[1] https://oglobo.globo.com/rio/noticia/2025/05/29/por-que-mc-poze-do-rodo-foi-preso-entenda-acao-da-policia-civil.ghtml#:~:text=MC%20Poze%20do%20Rodo%20foi%20preso%20por%20apologia%20ao%20crime,celulares%20e%20documentos%20foram%20apreendidos.
[2] https://www.cartacapital.com.br/sociedade/mc-poze-do-rodo-vai-para-bangu-3-apos-declarar-ligacao-com-o-comando-vermelho/
[3] Conteúdo resumido de: https://www.politize.com.br/discurso-de-odio-o-que-e/?https://www.politize.com.br/&gad_source=1&gad_campaignid=1988281103&gbraid=0AAAAADgJLRzP8bHcjjKSth21Kl_HtzcNR&gclid=Cj0KCQjw0erBBhDTARIsAKO8iqQWkAdIXRZlD4hKnDfcYH0Ez2LBlvAwUWLFanYzQ9UvmdxHqTNkDdcaAn_LEALw_wcB
[4] Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade (…)”
[5] https://oglobo.globo.com/brasil/noticia/2024/06/19/justica-derruba-videos-que-exaltam-violencia-policial-no-youtube-agressividade-descontrolada.ghtml
[6] https://www.gazetadopovo.com.br/republica/faccoes-criminosas-usam-artistas-do-funk-para-propaganda-recrutar-jovens-para-crime/; https://eomundo.com.br/faccoes-criminosas-usam-artistas-do-funk-para-fazer-propaganda-e-recrutar-jovens-para-o-crime/
[7] Trechos do “Rap da Felicidade”. Canção de Cidinho & Doca de 1995.
[8] https://www.metropoles.com/celebridades/musicas-de-mc-poze-que-fazem-apologia-ao-crime-e-ao-comando-vermelho; https://g1.globo.com/rj/rio-de-janeiro/noticia/2025/05/29/poze-do-rodo-veja-letras-do-mc.ghtml
[9] https://record.r7.com/reporter-record-investigacao/videos/reporter-record-investigacao-flagra-jovens-usando-drogas-em-baile-funk-22012024/; https://noticias.uol.com.br/cotidiano/ultimas-noticias/2019/02/09/baile-funk-e-um-dos-principais-motivos-de-reclamacao-por-policiamento-em-sp.htm
[10] https://g1.globo.com/rj/rio-de-janeiro/noticia/2025/06/03/operador-da-al-qaeda-comando-vermelho.ghtml
[11] https://diariodorio.com/funk-melody-o-ritmo-que-transformou-o-rio-em-pista-de-danca-nos-anos-90/
[12] https://sbtnews.sbt.com.br/noticia/policia/narcocultura-caso-de-poze-do-rodo-reascende-debate-sobre-limites-em-arte-e-apologia-ao-crime