30 de junho de 2025
Politica

Apoiar prisão de humorista é soltar o totalitário que existe dentro de você

Em uma utopia liberal, deveria haver um princípio: “quanto menos proibição, melhor; quanto menos obrigações, melhor”. Seria um dito que revelaria uma certa confiança na humanidade. No sentido de que teríamos autonomia para tomar nossas próprias decisões, fazer nossas próprias escolhas, sem nenhuma autoridade a nos dizer o que é necessário a ser feito, sob pena de graves punições.

O mundo real não funciona assim. Somos o tempo todo confrontados com regras, obrigações, deveres para que a sociedade, em tese, não entre em colapso. No fundo, seguimos as intuições de filósofos como Thomas Hobbes, que ao dizer, na obra Leviatã, que “o homem é o lobo do homem”, ainda no século 17, prescreveu um Estado forte, poderoso e até mesmo violento a nos controlar. Uma espécie de justificativa teórica do totalitarismo iliberal que segue até hoje.

Num avanço que nem o filósofo Thomas Hobbes teria pensado, o direito de “não ser ofendido”, agora dá cadeia. É a jurisprudência dos novos tempos.
Num avanço que nem o filósofo Thomas Hobbes teria pensado, o direito de “não ser ofendido”, agora dá cadeia. É a jurisprudência dos novos tempos.

Os ditos de Hobbes parecem inspirar a juíza que condenou a oito anos de prisão o humorista Leo Lins, por contar piadas obscenas, indesejáveis, que ofendem as minorias e por aí vai. Num avanço que nem Hobbes teria pensado, o direito de “não ser ofendido”, agora dá jaula. É a jurisprudência dos novos tempos. Sem querer causar confusão, mas se hoje a gente pega para ler textos de humor dos anos 80, pós ditadura, como do Planeta Diário, da turma do Casseta & Planeta, vai achar tudo que se faz hoje ingênuo e pacato. Estava tudo lá: “homofobia”, “pobrefobia”, incesto, mas ricos e poderosos também eram sacaneados. A regra do humor era não poupar ninguém: opressores e oprimidos, minorias e maiorias.

Há, além disso, uma enorme distopia de um integrante do judiciário confundir um personagem que diz coisas ignóbeis com um cidadão, por isso, isso, abjeto. Atenção, atores que fazem papel de vilões – cuidado com o que dizem nos palcos ou na tela, porque o grande Leviatã pode te buscar, para o bem da sociedade que não sabe cuidar de si e nem mesmo diferenciar piada de mundo “real”. E, triste constatação, a lei anti-piada que pode levar um humorista para a penitenciária foi apoiada por uma ampla gama de partidos do PSOL ao PL, com a honrosa exceção do NOVO.

Essa onda de proibir no sentido de “aprimorar a sociedade” revela até desconhecimento histórico. Sociedades prosperam no longo prazo quando deixam circular o livre fluxos de ideias. Até porque pensamento é igual arrastão, vem muita coisa imprestável, mas vem também avanço para as nações. Não custa lembrar que ideias hereges e passíveis de pena de morte, como dizer que a “Terra gira em torno do Sol”, se tornaram padrão. Supostas ofensas a “Deus” há alguns séculos eram crimes muito mais graves do que hoje as agressões às minorias – ou, melhor, perturbar os moralistas de plantão, a serviço de causas políticas, que se autointitulam defensores das minorias.

Hoje, num momento em que a onda é vigiar e punir, nada mais atual do que os pensamentos do filósofo John Stuart Mill, do século 19. Ele defendia que o pior que pode acontecer com ideias abjetas é serem confrontadas e destruídas pela sociedade. No argumento. Proibi-las seria sempre uma prova de que, de alguma maneira, somos infantis e não conseguimos confrontar racionalmente nossos próprios demônios. Proibir seria tirar a chance da sociedade de fazer o seu trabalho e provar que ideias execráveis não merecem prosperar. Mas a verdade é que seguimos infantilizados e medrosos em relação às coisas que nos perturbam. Também paradoxalmente, um mundo de ideias livres, mesmo as ofensivas, é melhor até mesmo para as minorias – que tiveram seus direitos tolhidos por tanto tempo. Transparência é sempre o melhor caminho.

A antes que venham com o paradoxo da intolerância, de Karl Popper, para justificar a proibição de ideias perigosas que minam a democracia, em nenhum momento o filósofo austríaco, autor da obra “A sociedade aberta e seus inimigos” (prestem atenção no título), defendia que a solução do problema que apresentou era a censura – uma prática que parece ter voltado a ser rotina entre nós. Sócrates, quatro séculos antes de Cristo, foi condenado à morte por desconfiar da existência dos deuses. Hoje, tanto tempo depois, queremos o fim de quem não coaduna com nossas convicções, de quem nos incomoda. Em pleno 2025, seguimos a confundir pensamento e expressão com ação.

Por último e desimportante: antes de escrever este artigo, o colunista assistiu às piadas de Leo Lins e não achou nenhuma graça. Mas as pessoas têm o direito de rir do que quiserem. Também de se sentir ofendidas – não de transformar a sensação subjetiva em vingança objetiva. Os cidadãos têm o direito até de achar o presidente da República, qualquer que seja ele, de “ladrão”, e assim se expressarem nas ruas, para o desespero das autoridades punitivistas de plantão. Questão de gosto, de personalidade, e de posição política.

 

 

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *