O laboratório que achou R$ 16,8 bi do crime e descobriu uma fortuna de André do Rap e dos corruptos
Os números são astronômicos. E dão uma pequena dimensão do que é movimentado pelas organizações criminosas no Estado de São Paulo. Um balanço feito pelo Departamento de Inteligência Policial (Dipol), da Polícia Civil, obtido pela coluna mostra que o seu Laboratório de Lavagem de Dinheiro (Lab-LD) identificou R$ 16,806 bilhões de valores suspeitos movimentados em 100.097 contas bancárias examinadas de janeiro de 2024 a maio de 2025.

São casos como o de empresas suspeitas de ligação com o megatraficante internacional André Oliveira Macedo, o André do Rap, foragido desde que foi solto em 2020 pelo ministro Marco Aurélio Mello, do Supremo Tribunal Federal. “Chegou-se ao total de R$ 25.168.000,00 em valores considerados suspeitos”, afirma o documento.
Em outro caso, envolvendo o traficante de drogas João Aparecido Ferraz Neto, o João Cabeludo, o laboratório conseguiu identificar R$ 52 milhões, em bens que a Justiça decretou o perdimento (perda do bem em favor da fazenda pública) há 15 dias. João Cabeludo, que a exemplo de André do Rap estaria escondido na Bolívia, lavaria dinheiro do tráfico com a ajuda de empresários do Vale do Paraíba. O grupo foi alvo de uma operação do Grupo de Atuação Especial de Combate ao Crime Organizado (Gaeco), em 2022.
O Lab-LD do Dipol foi criado em 2009, sendo integrado formalmente na Rede Nacional de Laboratórios em 2014, a Rede-LAB. Recentemente, ele recebeu sete novas máquinas para a extração e análise de dados de acordo com as normas do Ministério da Justiça para a manutenção da cadeia de custódia das provas, a fim de impedir que as defesa aleguem nulidades processuais.

Ali trabalham 30 policiais e um delegado que o coordena. O laboratório é vinculado à Divisão de Inteligência do Dipol. “Inicialmente, o objetivo era ir atrás do dinheiro ‘sujo’ oriundo do tráfico de drogas. Hoje, ele trabalha para identificar e analisar o dinheiro sujo originário de qualquer tipo de crime”, afirmou o delegado Francesco Petrarca Ielo Neto, diretor da Divisão de Inteligência. Esse foi o caso da Operação Raio-X, que investigou 370 mil movimentações financeiras de um esquema de desvio de verbas da Saúde.
Em 2024, o Lab-LD foi acionado 170 vezes por delegacias do Estado e fez 126 relatórios sobre 69.727 contas de 1.049 alvos, identificando R$ 9,691 bilhões como valores suspeitos. Só neste ano, ele foi acionado 90 vezes e fez 63 relatórios a respeito de 507 alvos, o que o levou a identificar mais R$ 7,115 bilhões suspeitos em 30.370 contas. Destes, R$ 3,31 bilhões foram verificados em maio em 12.334 contas de 153 alvos
No mesmo período, mas de 1,5 mil celulares apreendidos foram devassados pelas máquinas da divisão em busca de dados sobre movimentações bancárias, fiscais e patrimoniais que serão analisadas por meio de um sistema que estuda, confronta, filtra, calcula e pesquisa tanto em fontes fechadas quanto em fontes abertas de informação.

Sem disparar um único tiro, o Lab-LD provocou mais danos ao crime organizado do que qualquer operação cheia de pés-de-chinelo mortos em supostos confrontos com a polícia. Suas salas do 17.º andar do Palácio da Polícia, na Rua Brigadeiro Tobias, na Luz, no centro de São Paulo, são silenciosas. Os segredos guardados ali em suas máquinas abastecem inquéritos policiais de todo Estado.
O mesmo corredor abrigou nos anos 1990, a Divisão de Investigações sobre Entorpecentes (Dise), em uma época em que para se ter informação, a polícia precisava, sobretudo, de informantes, que muitas vezes estabeleciam uma relação muitas vezes opaca. Não era por outra razão, que a lanchonete na esquina da Brigadeiro Tobias com a Avenida Senador Queiroz era conhecida como “Bar do Acerto”.
O delegado Ielo Neto, que chefia o laboratório, conhece muitas histórias da polícia de antigamente e como ela se modernizou. Ele é o último representante de uma dinastia da Polícia Civil paulista. O avô foi o homem que esclareceu o primeiro caso de sequestro registrado na cidade: o do jovem Eduardo Andrea Matarazzo, filho do conde Francisco Matarazzo Júnior, em 1951. Depois, tornou-se, em 1964, delegado-geral. Seu pai dirigiu a Divisão de Homicídios nos anos 1990. Ielo Neto está há 34 anos na polícia.

“Na época do meu avó, o que havia de mais moderno era o polígrafo (detector de mentiras). E ele foi fazer um curso para usar a máquina”, contou Ielo Neto. Ao 52 anos, ele está entusiasmado com as novas sete máquinas que recebeu: elas podem extrair dados de telefones celulares, computadores, HDs e outros dispositivos de tal forma que polícia poderá saber todos os gostos, buscas, conversas, fotos, vídeos e passeios feitos pelos donos dos aparelhos.
O mundo digital se transformou no maior “informante” que a polícia dispõe atualmente. Assim como no passado, um investigador bem informado devia conhecer toda a vizinhança do bairro onde atuava, hoje ele deve dominar a tecnologia que permite em horas identificar endereços para buscas, autores de crimes e, principalmente, o caminho do dinheiro obtido pelas organizações criminosas. Foi assim que a polícia chegou na semana passada aos assassinos do engenheiro Francisco Paulo de Sebe Filippo, morto em sua casa no Jardim paulista, na zona sul paulistana.
Trata-se, porém, de um caminho de mãos dupla: as máfias também podem usar a mesma tecnologia para vigiar a polícia. Em 2024, a Procuradoria Nacional Antimáfia e Antiterrorismo da Itália prendeu um hacker que havia invadido o sistema de comunicação da Justiça, obtendo acesso a comunicações dos procuradores e juízes, o que lhe permitiu saber dados sigilosos e até inserir mandados de prisão no sistema, algo semelhante ao que fizeram aqui a deputada federal Carla Zambelli e o hacker Walter Delgatti Neto, condenados a dez anos de prisão.

A descoberta levou o procurador antimáfia de Napoli, Nicola Gratteri, conforme esta coluna mostrou, a um comentário sarcástico ao saber que o hacker havia se irritado por não ter encontrado nada em sua caixa de mensagens. “E por que não encontrou? porque eu não uso o sistema do ministério da Justiça. A rede da administração pública é como os aquedutos italianos onde 47% da água se perde.”
No Brasil, criminosos monitoram comunicações da polícia há muito tempo. E a corrupção permite que alguns tenham acesso a informações sobre operações, como Marco Roberto de Almeida, o Tuta, que escapou de ser preso ao ser avisado por policiais militares das Rondas Ostensivas Tobias de Aguiar (Rota) de que seria alvo da Operação Sharks, em 2020. O preço da “ajuda” policial teria sido R$ 500 mil. Tuta só seria capturado recentemente na Bolívia.
Para evitar que o crime aqui faça como na Itália, o Dipol mantém uma Divisão de Contrainteligência. Mas ela poderá pouca coisa se a Corregedoria da Polícia Civil não apertar o cerco aos policiais corruptos antes que eles possam destruir investigações, como o que ficou demonstrado com a delação do empresário Antônio Vinícius Lopes Gritzbach.

O conteúdo das proposta de delação e dos anexos entregues por Gritzbach aos promotores vazou em julho de 2024 pelas mãos de um hacker, que se identificava como Tacitus. Ele enviou e-mails para diversas autoridades, como promotores de Justiça e e diretores da Polícia Civil, e também para policiais envolvidos nas denúncias, ameaçando fazer revelações.
Cinco meses depois, o delator foi assassinado por PMs a mando do Primeiro Comando da Capital (PCC), em Guarulhos. Até agora, ninguém foi responsabilizado pelo vazamento dos dados da delação, o que pode ter contribuído para a decisão do PCC de eliminar a testemunha incômoda.
Em dezembro, a Polícia Federal batizou com o nome de Tacitus a operação que levou para a cadeia os policiais acusados de corrupção no caso Gritzbach. Na mesma época, o hacker, que se dizia um traficante do PCC roubado pelos policiais, parou de contatar as autoridades e jornalistas. São casos assim que estão por trás do último desabafo de Gratteri: “Temos de voltar ao papel?” É que a tecnologia que proporciona à polícia o Lab-LD é a mesma que ameaça os seus segredos.