15 de agosto de 2025
Politica

Justiça legisla quando decreta o fim da concorrência meritória nos colégios militares

No Brasil, todos sabem: entrar em Colégio Militar não é nada fácil. O exame de admissão é rigoroso, a competitividade é alta e a realidade militar é inseparável de uma lógica que exige e premia os méritos individuais.

Há 136 anos era assim.

O primeiro Colégio Militar do Brasil, destinado aos órfãos de militares tombados nos campos de batalha da Guerra do Paraguai e aos alunos de civis mediante exame de admissão, foi instituído por Decreto Imperial de Dom Pedro II, após sugestão do Conselheiro Thomaz Coelho. Hoje é o tradicional Colégio Militar do Rio de Janeiro.

Era. No início deste ano, a Juíza Maria Rúbia Andrade Matos, da 10ª Vara Cível Federal de São Paulo, julgou procedente uma ação civil pública ajuizada pelo Ministério Público Federal contra a União, determinando que, nos processos seletivos do Sistema Colégio Militar do Brasil fossem reservadas vagas a candidatos autodeclarados pretos, pardos, indígenas (30%) e egressos de escolas públicas (mínimo 50%), além da reserva já existente para pessoas com deficiência (5%).

O primeiro fundamento adotado pela sentença foi a Lei 12.711/2012, que, porém, é de todo inaplicável aos Colégios Militares, por se referir apenas às universidades federais e instituições federais de ensino técnico de nível médio vinculadas ao Ministério da Educação e determina a reserva de no mínimo 50% das vagas para estudantes que cursaram integralmente o ensino fundamental em escolas públicas.

O Sistema Colégio Militar do Brasil não é vinculado ao Ministério da Educação, mas ao Ministério da Defesa, desde o Império. Além disso, a própria Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional estabelece que o ensino militar é regulado por lei específica: a Lei 9.786/1999, que, já em seu art. 1º, diz que “o Sistema de Ensino do Exército [tem] características próprias”. Por fim, o processo seletivo também é para o ensino fundamental, logo, como aferir se o estudante cursou o ensino fundamental em escola pública?

Outro fundamento empregado pela sentença foi a Lei 12.990/2014, que, porém, determinava a reserva de 20% das vagas em concursos públicos da administração federal. Essa lei era ainda mais claramente inaplicável aos Colégios Militares, como se vê com facilidade: vaga em colégio e cargo público são coisas bem diferentes.

Essa lei foi revogada no último dia 4 de junho pela lei 15.142/25 que aumentou para 30% a reserva de vagas em concurso público.

Ou seja: a sentença aplicou leis inaplicáveis e deixou de aplicar lei aplicável. Isso significa que a decisão não só contrariou a lei, como “legislou”. Não se trata de política de cotas estabelecida democraticamente pelo Congresso, mas de ativismo judicial engendrado por decisão cuja fundamentação é contra legem.

Como disse o jurista Thomé Sabbag Neto, decisões desse tipo “distorcem a natureza e a finalidade precípuas da função jurisdicional, de modo a violar o princípio democrático e o da separação harmoniosa dos Poderes, gerando o que muito bem poderia ser chamado já de uma disfunção jurisdicional: um projeto de transformação jurídica, política e constitucional a ser operada pelo engajamento militante dos Tribunais (…)”.

Aliás, a sentença desprezou não só a lei, como também a jurisprudência do Supremo Tribunal Federal, que, na ADIN 5.082/2018, distinguiu o sistema federal de ensino do ensino militar de níveis básico e superior. Do voto do ministro Edson Fachin, relator, extrai-se o seguinte trecho: os “Colégios Militares (…) possuem peculiaridades aptas a diferenciá-los dos estabelecimentos oficiais de ensino e qualificá-los como instituições educacionais sui generis, por razões éticas, fiscais, legais e institucionais”.

O relator também reconheceu o caráter constitucionalmente meritocrático dos Colégios Militares, ao afirmar ser facultativo o “ingresso ao Sistema de Ensino do Exército, segundo critérios meritocráticos” referindo-se aos “candidatos que detenham méritos acadêmicos em certame público” para ingresso em “uma das instituições de excelência educacional no Brasil”, além da necessidade de “submissão e aprovação em processo seletivo de natureza meritocrática”.

Aliás, o absurdo da sentença não está apenas em sua fundamentação, mas também – e sobretudo – nas suas consequências. Um exemplo demonstrará isso bem.

A prevalecer esse entendimento antijurídico, das 25 vagas de ensino fundamental que o Colégio Militar de Curitiba costuma destinar ao concurso de admissão, apenas 4 serão destinadas à ampla concorrência: 21 vagas serão utilizadas para cumprir a sentença (e, com isso, descumprir a lei).

Além disso, a nota de corte será 5,0, patamar muito inferior ao grau de exigência meritocrática que há nos Colégios Militares. No último concurso, por exemplo, o último candidato aprovado obteve nota 8,0; do 27º ao 104º colocados, as notas foram iguais ou maiores que 7,0; e apenas um candidato tirou nota 5,0, ficando em 204º lugar.

Por hipótese, se a lista dos 22 candidatos com reserva de vagas se limitar à nota de corte, 200 outros candidatos com notas maiores serão preteridos. Isso não é política de cotas definida pelo Congresso Nacional, isso é legislar judicialmente a entrada pela porta dos fundos em concurso de admissão essencial e historicamente meritório.

Há ainda outro aspecto a evidenciar o absurdo da sentença: a instituição dessa política de cotas é, além de tudo, desnecessária. Ora, o ingresso em instituição militar não é condição indispensável para a fruição do direito fundamental à educação. Todo aquele que não for aprovado em Colégio Militar poderá se socorrer do ensino regular, até porque essa é uma garantia constitucional (art. 208, § 1º, da Constituição).

O Supremo nos ensinou que os sistemas de ensino – oficial e militar do Exército brasileiro – previstos na Constituição, convivem harmonicamente e de forma independente e “os colégios militares…não integram o sistema da rede pública de ensino” e “não se atendo ou não preferindo cursar os colégios militares, estará garantido à criança o direito à educação no sistema, portanto, a vaga será assegurada e devidamente paga pelos cofres públicos” em instituição regular de ensino.

Por fim, há uma circunstância relevante, lembrada pelo ministro Ricardo Lewandowski, em seu voto: por não estarem inseridas na rede pública de ensino, as escolas militares não participam do orçamento da educação, sendo mantidas por verbas próprias do orçamento das Forças Armadas.

Conclusão: estabelecer, na base da canetada, política de cotas em Colégios Militares não tem outro objetivo senão o de extinguir – ou minimizar a um nível irrisório – a concorrência meritória nos concursos de admissão, num dos últimos ambientes que ainda não haviam sido invadidos pelo culto à mediocridade e pela imposição de um igualitarismo artificial.

Que nossas autoridades, especialmente o Congresso Nacional, possam estar atentas a isso e busquem modificar esse estado de coisas. Por ora, aos pais e mães dos candidatos sobrarão ações judiciais individuais a fim de barrar o absurdo criado.

 

 

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