‘Vivemos uma situação anômala em que os monstros costumam andar soltos’, diz Aloysio Nunes
O ex-chanceler Aloysio Nunes Ferreira acompanha com preocupação o cenário político do País. No seu diagnóstico, bate-bocas como os que têm ocorrido entre ministros e parlamentares de oposição podem não apenas interditar o debate como agravar a situação da economia.
“Há uma degradação do ambiente político. Tenho receio de que tudo isso possa desembocar numa paralisia do Congresso”, disse ao Estadão o ex-ministro das Relações Exteriores, hoje chefe da Divisão de Assuntos Estratégicos do escritório da Apex em Bruxelas. “Pode haver um bloqueio em razão do esvaziamento do diálogo. Esse quadro de lacração pode levar a uma crise política e agravar a situação da economia.”
Aloysio discorda dos que encaram com normalidade os ataques dirigidos por deputados e senadores a Fernando Haddad (Fazenda) e Marina Silva (Meio Ambiente), sob o argumento de que isso faz parte do jogo parlamentar. “Não é jogo político. É cafajestada”, rebateu ele. “Se o Congresso não está de acordo com o projeto do governo, tem de propor uma solução. Qual é a saída?”
Na sua avaliação, há uma crise do sistema político, que não se pode mais chamar de presidencialista. “Vivemos uma situação anômala, que ainda não tomou forma. Nesse cenário, os monstros costumam andar soltos”, afirmou o ex-ministro, adaptando uma frase do filósofo Antonio Gramsci.
Leia a entrevista:
Bate-bocas no Congresso entre ministros do governo Lula e parlamentares se tornaram frequentes. Em pouco mais de duas semanas, tanto Fernando Haddad como Marina Silva se retiraram de comissões em que estavam porque não conseguiam nem mesmo expor suas ideias. Como o senhor analisa esse quadro?
Há uma degradação do ambiente político no Congresso. Vimos aquela coisa abominável que fizeram com a ministra Marina e agora esse comportamento absurdo com Haddad. Os parlamentares não vão lá para debater, mas para lacrar nas redes sociais.
Houve quem dissesse que Haddad caiu numa armadilha previsível, uma vez que esses ataques fazem parte do jogo político e, além disso, os deputados Nikolas Ferreira e Carlos Jordy são conhecidos por comportamentos assim.
Isso não é do jogo político. É cafajestada. Vejo com tristeza um cavalheiro como Haddad, que é um homem de diálogo, ser levado ao destempero. Eu, no lugar dele, perderia muito mais as estribeiras. Tudo tem limite. Assistimos a um desvirtuamento do debate político. Fazem perguntas provocativas e não esperam resposta. Com a Marina, então, a coisa descambou para o machismo cafajeste. O Congresso é um lugar sacrossanto, que tem de ser respeitado. Não é lugar para comportamentos ofensivos.
A que o senhor atribui isso?
A eleição de Jair Bolsonaro, em 2018, foi o sintoma desse desvirtuamento da esfera política como local de confrontação de projetos e programas. Infelizmente, isso dá voto. Eu vi que, quando uma influencer esteve na CPI das Bets, recentemente, vários parlamentares foram lá só para aparecer nas redes ao lado dela.

O senhor foi ministro nos governos de Fernando Henrique e Michel Temer, senador e deputado quando havia grandes oradores no Congresso. Por que a qualidade do Legislativo caiu tanto?
Não eram só oradores. Havia embates muito acesos, mas também espaço para a colaboração. Protagonistas de discussões sobre o Código Florestal, por exemplo, tinham horizontes diferentes. Eram Aldo Rebelo, Blairo Maggi, Luiz Henrique, Jorge Viana… Mesmo assim, eles encontravam um terreno comum.
Qual é a consequência dessa interdição do debate?
Tenho receio de que isso possa desembocar numa paralisia do Congresso. Pode haver um bloqueio em razão do esvaziamento do diálogo. Esse quadro pode levar a uma crise política e agravar a situação da economia. Desse jeito, o Congresso não vai conseguir aprovar iniciativas importantes. O risco é não ter debate e não ter também soluções para os problemas do País.
Qual é sua avaliação sobre essa guerra entre governo e oposição por causa do aumento do IOF?
Se o Congresso não está de acordo com o projeto do governo, tem de propor uma solução. Qual é a saída? Não pode uma instituição que hoje tem mais poder do que a Presidência da República simplesmente dizer não. Quais despesas vão ser cortadas? Emendas parlamentares, Zona Franca, vinculações de saúde e educação, desonerações fiscais? Não cabe tudo no mesmo balaio. Se não apontarem o caminho, é molecagem.
O presidente Lula está comendo o pão que o diabo amassou
Aloysio Nunes Ferreira
Partidos que têm ministérios no governo, como o PP e o União Brasil – hoje reunidos numa federação – também ameaçam votar contra o decreto do IOF. Uma reforma ministerial resolveria essa crise?
Há um problema de origem: trazer essas forças para o ministério deveria ter tido como pressuposto um programa de governo, um contrato público entre o presidente Lula e os partidos. Isso não foi feito por causa da situação de emergência em que Lula assumiu. Para fazer frente à forma com que Bolsonaro e seu Posto Ipiranga conduziram o governo, ele teve de jogar todas as fichas na PEC da Transição. O que viria depois não foi pactuado. Faltou dizer “Quem samba, fica; quem não samba, sai”.
A situação atual mostra a crise do presidencialismo?
Mostra a crise do sistema político com a usurpação dos poderes do Executivo pelo Congresso. Não creio que estejamos mais no presidencialismo. Vivemos uma situação anômala, que ainda não tomou forma. Nesse cenário, os monstros costumam andar soltos. O velho não morreu e o novo não nasceu. É uma situação perigosa. O presidente Lula está comendo o pão que o diabo amassou.
O que o senhor acha desse costume de deputados e senadores viverem fazendo ‘selfies’ no plenário e em comissões enquanto as sessões acontecem?
Isso deveria ser proibido. Deveria haver uma mudança no regimento para vedar esse tipo de prática. O sistema político que produziu a Constituição de 1988 era baseado em quatro pilares – PT, PSDB, PMDB e PFL –, mas isso não funciona mais. O PT continua, o PFL e o PSDB acabaram e o MDB está fraturado. Tem ali gente da velha guarda tradicional e outros que acabaram descambando para a extrema direita.
O senhor foi tanto do MDB como do PSDB, partido em que esteve por quase três décadas e só deixou no ano passado, após o anúncio de que o apresentador Datena seria o candidato tucano à Prefeitura. Como vê as atuais fusões de partidos, como a do PSDB com o Podemos?
Vejo com muita satisfação a aglutinação de partidos da direita republicana para escapar da guilhotina da cláusula de barreira. Mas todos eles ainda têm o desafio de se livrar da hipoteca bolsonarista, que acabou se tornando a força hegemônica no campo conservador. Não podem mais prestar vassalagem à pauta antidemocrática.