Falta um código de conduta para os ministros do STF
A ausência de um código de conduta para os ministros do Supremo Tribunal Federal (STF) simboliza uma falha na arquitetura institucional do país. Num momento em que discursos sobre valores ESG (ambiental, social e governança) ganham força no setor privado, a credibilidade desses compromissos se desfaz diante da realidade: a impunidade das elites empresariais e políticas, reforçada por decisões da mais alta corte do país. Sentenças condenatórias anuladas com base em filigranas processuais, colaborações premiadas invalidadas e normas de integridade flexibilizadas ao sabor das circunstâncias. Todos esses episódios enviam à sociedade um recado claro: a responsabilização é negociável, desde que se tenha poder e dinheiro. Nesse cenário, o pilar governança, essencial ao ESG, é simbólico.
Muitas empresas operam com relatórios alinhados a padrões internacionais, mas continuam mergulhadas em práticas opacas. O ESG se transforma, assim, num instrumento de gestão reputacional. Não se trata mais de um compromisso das empresas com reformas institucionais. Mais grave ainda é a complacência com os atores que operam nas margens do sistema e sustentam essa engrenagem disfuncional: escritórios de advocacia, empresas de auditoria e consultoria, lobistas e afins. Eles constroem estruturas jurídicas sofisticadas, moldam decisões estratégicas e, frequentemente, asseguram que seus clientes saiam ilesos de escândalos de corrupção, fraudes contábeis e outras ilicitudes. Exigir integridade das empresas, mas ignorar os facilitadores que engraxam as engrenagens da ilegalidade é uma contradição flagrante.
O descompasso entre discurso e prática se estende ao próprio Estado. Órgãos de controle são deliberadamente sucateados e os poucos que ousam denunciar irregularidades, os whistleblowers ou informantes do bem, são punidos ou silenciados. As instituições exibem uma fachada de legitimidade, mas, por trás dela, impera a leniência, o casuísmo e a opacidade decisória, sobretudo no combate à corrupção e aos crimes de colarinho branco.
Nada simboliza melhor esse colapso do que o fato de, até hoje, o Supremo não dispor de Código de Conduta para seus próprios ministros. Enquanto a Suprema Corte dos Estados Unidos adotou, em 2023, um conjunto de cinco cânones éticos para disciplinar a conduta de seus magistrados, o STF ainda se apoia em dispositivos genéricos da Lei Orgânica da Magistratura e no Código de Ética da Magistratura Nacional, elaborada para atender juízes de primeira instância.
A falta de regras claras ficou ainda mais visível em episódios recentes que causaram perplexidade na opinião pública, como a participação de um ministro do Supremo em eventos privativos na Europa, utilizando transporte custeado por empresário com interesses diretos junto ao Estado brasileiro. Tais situações, juridicamente toleradas, comprometem a percepção de imparcialidade da Corte e aprofundam a desconfiança sociedade nas instituições democráticas.
É verdade que a Resolução nº 226/2016 do Conselho Nacional de Justiça (CNJ) permite a participação de magistrados em eventos promovidos por entidades privadas, com despesas custeadas por terceiros. No entanto, a falta de parâmetros objetivos para regular esse tipo de atividade, especialmente no que diz respeito aos ministros do STF, abre margem para conflitos de interesse e contribui para o desgaste da credibilidade do Judiciário como um todo.
A adoção de um Código de Conduta para o STF é uma medida imprescindível. Convenções internacionais anticorrupção, como a Convenção da ONU contra a Corrupção (UNCAC), preveem a necessidade de prevenir conflitos de interesse por meio de normas claras e aplicáveis a todas as esferas de poder, inclusive do pode Judiciário. Um código de conduta, dotado de diretrizes específicas sobre atividades extrajudiciais, transparência patrimonial, relações com atores políticos e econômicos, conflitos de interesses e limites à atuação pública fora do tribunal, seria necessário para alinhar o Brasil às melhores práticas internacionais.
A crescente exposição de disputas envolvendo parentes de ministros da STF que atuam como advogados traz à tona a fragilidade ética na mais alta esfera do Judiciário brasileiro. Num ambiente onde filhos, cônjuges e irmãos de ministros supremamente influentes defendem causas, muitas vezes em lados opostos, e com acesso privilegiado aos tribunais, o risco de tráfico de influência, conflito de interesses e erosão da confiança pública é evidente. A chamada “guerra de famílias togadas” não apenas compromete a imagem da imparcialidade da Justiça, como também reforça a percepção de que o sistema funciona com regras diferentes para quem está bem-posicionado.
Não basta que o Código de Conduta para o STF seja meramente declaratório. É preciso prever mecanismos de controle, inclusive com a possibilidade de supervisão externa, seja por meio do CNJ, de uma comissão independente ou do próprio Senado. Ainda que o CNJ, em tese, possua atribuições para fiscalizar o Judiciário, o próprio Supremo já firmou entendimento de que seus ministros não estão sujeitos a esse controle, evidenciando uma grave falha de accountability. A independência judicial não deve servir como escudo para práticas opacas, mas sim como alicerce para que a conduta dos ministros esteja submetida à transparência, à ética, à integridade e, sobretudo, fora de qualquer suspeita.
Não haverá avanço para a integridade, seja no setor público ou no privado, enquanto as instâncias superiores do Poder Judiciário continuarem a oferecer exemplos de indulgência seletiva, em lugar da prática da ética intransigente. Sem um Supremo que inspire confiança, o discurso ESG será meramente um discurso vazio, desconectado da realidade. E o combate à corrupção seguirá confinado às teorias e às páginas dos livros, longe da realidade e de qualquer consequência punitiva concreta.
Este texto reflete única e exclusivamente a opinião do(a) autor(a) e não representa a visão do Instituto Não Aceito Corrupção (Inac). Esta série é uma parceria entre o Blog do Fausto Macedo e o Instituto Não Aceito Corrupção. Os artigos têm publicação periódica