30 de junho de 2025
Politica

Juízes de outras eras

A função judicial era exercida por pessoas do agrado do governo, à época em que não havia concurso para ingresso à Magistratura. Muitos escritores e poetas exerceram a jurisdição no Brasil, diante da familiaridade com colegas que alçaram voo na política.

Raimundo Correia foi um deles. Foi nomeado Pretor e recebeu de um advogado, a notícia de que a Pretoria era muito rendosa. Em média, não daria menos de um conto e quinhentos mil réis.

Passados alguns meses, Mário de Alencar, filho de José de Alencar e amigo de Raimundo, indaga se a Pretoria realmente dá aquela renda. E Raimundo responde: – “Havia um zero a mais na informação. Em vez de um conto e quinhentos, o que ganho anda por cento e cinquenta mil réis…”.

Mário de Alencar não conteve o espanto:

– “Será possível? Mas todo o mundo afirma que sempre deu muito. E agora, contigo, como é que dá só isso?”

E Raimundo Correia:

– “É que eu cumpro o Regimento de Custas e devolvo às partes, sistematicamente, o que o escrivão cobra a mais nos autos”.

De outra feita, Raimundo Correia, já em segunda instância, teve de julgar uma causa em que seu amigo Medeiros e Albuquerque era vitorioso. Cuidava-se de cobrança indevida de despesas feitas a um estabelecimento comercial, cujo dono se acumpliciara a uma ex-criada que servira à família de Medeiros e Albuquerque, a quem o vendeiro exigia excessivo pagamento por consumo inexistente.

Diariamente, Medeiros e Raimundo se encontravam no mesmo bonde, de regresso à casa. Por mais de uma vez, o poeta-juiz falou ao prosador sobre os processos que estava estudando, como a dar oportunidade a que Medeiros tratasse de seu próprio caso. Mas o contista, conhecendo bem o temperamento do poeta, nada lhe falou.

Passado um tempo, sai a decisão, ainda em favor de Medeiros. E este, ainda assim, se manteve em silêncio.

Irresignada, a parte contrária embarga de declaração. E Medeiros continuou vencedor. Só depois de muito tempo, no bonde, em conversa com o juiz, lhe falou do caso. E tomou conhecimento do drama de consciência por que passara o poeta, ao prolatar suas decisões.

– “O Medeiros tem razão” – dizia o juiz consigo mesmo, no debate da consciência atribulada – “Mas será que ele tem mesmo razão ou eu estou achando isso porque sou amigo dele?”.

Como resultado desses solilóquios, só encontrou uma solução: obrigar Medeiros a falar-lhe sobre o caso. Se isso viesse a acontecer, dar-se-ia por suspeito. Como Medeiros nada lhe dissesse, apesar da insistência com que, nas viagens diárias de bonde, orientara a conversa para os processos que tinha em mãos, viu que não restara outra alternativa, senão exarar a decisão.

Raimundo contou isso a Medeiros, que respondeu:

– “Mas você podia ter-se dado por suspeito, com a simples alegação de que é meu amigo!”.

– “Se eu fizesse isso – replicou Raimundo Correia – alguém poderia supor que você me pedira alguma coisa. E eu não ia pagar com uma incorreção a sua correção!”.

Essa a ética a orientar os caminhos de um magistrado como Raimundo Correia, que não era talentoso somente ao escrever “As Pombas” e “Mal Secreto”, mas um escrupuloso, zeloso e correto magistrado. Movido por aquela ética irrepreensível de que fala o Código de Ética da Magistratura Nacional e, na maior parte das vezes, por todos negligenciada.

Conta-se que, certa feita, ao lhe ser entregue volumoso processo de inventário, dentro encontrou um conto de réis. Indagou ao escrivão o que era e a resposta foi: “São as custas deixadas pela parte”. Raimundo mandou fazer o cálculo de acordo com o Regimento. E devolveu à parte o que sobrava ao montante.

O escrivão estranhou: – “Doutor, a gente recebe o que a parte dá! Eu também recebi a mesma quantia!”.

– “Eu, como juiz, não devo aceitar liberalidades. Cumpra-se o Regimento!”.

Essa conduta não multiplicava o número de amigos. Tanto que, fugindo a novas apresentações, pedia a seus servidores: – “Por favor, não me apresentem mais ninguém!”. E a justificar o pedido: – “Já conheço salafrários demais…”.

 

 

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