15 de agosto de 2025
Politica

Defensoria de SP quer criar cargos e garantir brecha para aumentar compensação por acúmulo de função

A Defensoria Pública do Estado de São Paulo (DPESP) apresentou um projeto de lei que abre brecha para que defensores públicos recebam mais compensações por acúmulo de função. Segundo especialistas ouvidos pelo Estadão, a mudança segue a lógica adotada pelo Judiciário e o Ministério Público, que utilizam o pagamento de penduricalhos para burlar o teto salarial do funcionalismo público. O texto da DPESP cria ainda 300 cargos no órgão, ao custo total de R$ 305 milhões até 2027 (leia mais abaixo).

Em nota, a Defensoria declarou que a alteração na regra da compensação é uma “adequação técnica dos termos” e que não há “qualquer alteração de atividade, função ou remuneração na mudança”. O projeto de lei complementar 20/2025 foi enviado para a Assembleia Legislativa de São Paulo (Alesp) no dia 10 de junho.

Sala da Defensoria Pública do Estado de São Paulo na Alesp
Sala da Defensoria Pública do Estado de São Paulo na Alesp

Atualmente, a compensação por acúmulo de função é devida aos defensores que “acumulam integralmente as atribuições de outro cargo”. Isso acontece quando o defensor público-geral, chefe da entidade, os indica para substituir um colega que está afastado “em virtude de férias, licenças ou outras formas de afastamento”.

O texto enviado para a Alesp substitui a exigência de acúmulo integral de outro cargo pela expressão “acumular funções” e retira o trecho que especifica que a compensação é devida em caso de acúmulo de função porque outro defensor tirou férias, licença ou se afastou. “O Defensor Público que acumular funções, sem prejuízo de suas atribuições ordinárias, fará jus à compensação”, diz a nova redação do parágrafo.

Rafael Viegas, professor da FGV e pesquisador da Escola Nacional de Administração Pública (Enap), afirma que a nova redação amplia significativamente o escopo da compensação. “Ao eliminar critérios objetivos e verificáveis, passa a permitir a concessão da compensação mesmo em casos de acúmulo parcial, episódico ou pouco mensurável, abrindo margem para interpretações amplas e discricionárias”, disse ele ao Estadão.

O especialista chama atenção para um outro ponto da lei: a decisão sobre a concessão da gratificação cabe ao defensor público-geral após ouvir o Conselho Superior, mas sem necessariamente seguir a orientação do órgão.

“Isso confere à cúpula administrativa o poder de distribuir compensações financeiras sem necessidade de deliberação colegiada efetiva, o que enfraquece mecanismos de controle institucional e favorece o uso político ou corporativo da autonomia”, declarou Viegas.

Para ele, o fato da compensação ser concedida pelo defensor público-geral após ouvir o Conselho Superior, mas sem necessariamente seguir a orientação do órgão, institucionaliza na prática uma espécie de “penduricalho funcional” para burlar o teto salarial do funcionalismo público. “Há forte semelhança ao que já ocorre no Ministério Público e na magistratura”, disse o professor da FGV.

Cristiana Fortini, presidente do Instituto Brasileiro de Direito Administrativo e professora da UFMG, concorda que a alteração proposta aumenta as hipóteses em que a compensação será paga. Ela afirma que o novo texto permitirá que o defensor público receba a compensação mesmo quando não esteja substituindo um colega.

Fortini apresenta o exemplo hipotético de um defensor que, além do trabalho inerente ao cargo, seja responsável por coordenar um dos núcleos especializados da Defensoria.

“Esse coordenador acumula outra função, sem ser retirado da função de defensor. Por que alguém que não faz essa coordenadoria ganharia a mesma coisa do que o coordenador? Se ele está fazendo alguma coisa adicional, está ok”, disse ela.

Em um primeiro momento, a DPESP rebateu a avaliação de que há brecha para que o escopo da compensação seja expandido. “A alteração apenas troca a palavra ‘cargo’ por ‘funções’. Isso se dá para a adequação técnica dos termos. Defensores/as Públicos/as acumulam funções e não cargos – que continuam sendo ocupados pelos seus respectivos titulares, mesmo em hipóteses de afastamentos temporários. Sendo assim, não há qualquer alteração de atividade, função ou remuneração”, disse o órgão.

O Estadão insistiu que a troca da palavra “cargo” por “funções” não é a única mudança proposta e voltou a questionar se a nova redação não daria margem para a concessão da gratificação em mais casos. “Não, pois essas são as hipóteses legais de afastamento, previstas no artigo 134 da LC 988/2006”, respondeu a Defensoria.

O artigo citado elenca uma série de ocasiões em que os defensores públicos têm direito a se afastar do cargo, como férias e licenças para tratamento de saúde, casamento, luto e maternidade, entre outras.

Compensação é indenizatória e não vale para teto salarial

O valor exato da compensação por acúmulo de função pode variar. A legislação diz que a regra é a mesma de uma outra compensação recebida por defensores que trabalham aos finais de semana e feriados. Essa segunda não pode ultrapassar R$ 1.060 por dia trabalhado — o dinheiro é pago quando a folga pelo trabalho extra é negada.

No Portal de Transparência, o pagamento das duas compensações são somados. Em março, último mês disponível, foram R$ 3,6 milhões pagos a 470 defensores públicos, uma média de R$ 7,7 mil. Ao menos 21 deles receberam mais de R$ 20 mil. Em dois casos, o Estadão identificou que as compensações chegaram a R$ 43,5 mil e R$ 42,5 mil. Somadas aos salários brutos de, esses dois defensores receberam respectivamente R$ 70,7 mil e R$ 71,5 mil apenas em março.

O teto do funcionalismo público é R$ 46,3 mil, salário de ministro do Supremo Tribunal Federal (STF). As compensações, no entanto, são verbas indenizatórias e não entram no cálculo. O projeto da Defensoria Pública reajusta em 6% os salários dos defensores — o chefe da instituição passará a receber R$ 34,1 mil.

“A fadinha da indenização realiza todos os desejos, desaparece com todas as barreiras”, disse o economista e colunista do Estadão, Pedro Fernando Nery, que avalia que a prática de transformar remuneração em indenização vem sendo amplamente utilizado nos últimos anos e representa uma burla não só ao teto e imposto de renda, mas à Lei de Responsabilidade Fiscal (LRF).

“A LRF era o limite para o orçamento não ser todo engolido pelos agentes públicos. Não é mais. A tendência é o orçamento ser distribuído internamente como uma participação nos lucros”, declarou ele.

Projeto cria 340 cargos ao custo de R$ 300 milhões

O projeto de lei enviado para a Alesp cria ainda 340 cargos: 140 de defensor público, escalonados até 2027; 100 de oficial e 60 de agentes de Defensoria Pública; e 40 cargos técnicos de diretor, assessor e assistente.

O impacto econômico-financeiro de todo o projeto é calculado em R$ 36,9 milhões neste ano, R$ 99 milhões em 2026 e R$ 169 milhões em 2027, totalizando R$ 305 milhões.

A DPESP justificou a necessidade da expansão afirmando que atualmente está presente em apenas 15% das 326 comarcas de São Paulo e que a última criação de cargos de defensor público no Estado foi em 2014. “Com esta expansão, a Defensoria Pública alcançará mais de 6,7 milhões de pessoas com renda de até três salários-mínimos no Estado de São Paulo”, disse o órgão.

O projeto de lei complementar não começou a tramitar nas comissões da Alesp e até o momento apenas o deputado estadual Carlos Giannazi (PSOL) apresentou uma proposta de emenda.

O psolista afirma que é favorável à criação dos novos cargos, mas quer a retirada de artigos que ele classifica como “jabuti”. Trata-se da criação de um novo órgão interno, chamado Grupo de Assessoramento de Demandas Estruturais, que segundo o deputado pode representar uma interferência nos núcleos especializados do órgão.

“Esses núcleos têm independência e entram com ações coletivas contra o Estado em várias áreas, como habitação, educação e violência policial. A nossa preocupação, e não estou dizendo que essa defensora-geral fará isso, é a brecha para que um defensor autoritário pró-governo controle o núcleo e inviabilize os trabalhos em relação às críticas e cobranças ao governo estadual”, afirmou Giannazi.

 

 

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