29 de junho de 2025
Politica

Zambelli já admite ser presa e deportada, mas invoca Pizzolato do Mensalão e clama reclusão ‘digna’

De algum lugar da Itália, onde estaria vivendo após Alexandre de Moraes decretar sua prisão e encaminhar seu nome para a difusão vermelha da Interpol – índex dos mais procurados em todo o mundo -, a deputada licenciada Carla Zambelli (PL-SP) distribuiu um documento intitulado ‘Dossiê Técnico de Defesa’, por meio do qual reitera a versão de que é inocente no caso da invasão aos sistemas de Justiça e já trabalha claramente com a hipótese de ser aprisionada e deportada para o Brasil. Ao longo de dez capítulos que compõem o relatório ela procura sensibilizar o governo italiano caso sua extradição seja decretada por Roma, o que ela também já admite, e faz um paralelo com o caso Henrique Pizzolato, ex-diretor de Marketing do Banco do Brasil.

Carla Zambelli em maio, em São Paulo, quando se pronunciou sobre condenação a 10 anos de prisão
Carla Zambelli em maio, em São Paulo, quando se pronunciou sobre condenação a 10 anos de prisão

Como no caso Pizzolato, a defesa de Zambelli busca também que a ela sejam respeitados direitos fundamentais no cárcere a que poderá ser conduzida para cumprimento da pena imposta pelo STF, 10 anos de reclusão pelo suposto hackeamento do Conselho Nacional de Justiça.

Condenado no processo do Mensalão – maior escândalo do primeiro governo Lula (2003-2006) – a 12 anos e 7 meses de prisão por corrupção passiva, peculato e lavagem de dinheiro, Pizzolato fugiu para a Itália em 2013. No ano seguinte o petista foi preso, dando início a uma longa negociação diplomática para sua extradição, autorizada em 2015 depois que o Brasil, via a Procuradoria-Geral da República, atestou ao Conselho de Estado da Itália – última instância administrativa da Justiça do país europeu – a existência aqui de presídios onde direitos fundamentais são acatados.

Quando foi condenada pelo STF, Zambelli afirmou. “Não me tiram da Itália.” Alegou estar protegida de extradição por ser cidadã italiana.

A própria defesa, no entanto, reconhece que tal situação não garante a Zambelli imunidade absoluta, vez que a Constituição Italiana (artigo 26) permite a extradição de nacionais se prevista em tratado internacional – ressalvada a hipótese de crime político.

Nessa linha, o advogado Fábio Pagnozzi, que representa a deputada, aborda ‘nulidades processuais, violações a direitos e garantias fundamentais no curso da ação penal, bem como os aspectos de direito interno e internacional pertinentes. Invoca a Constituição, Código Penal e de Processo Penal, Pacto de San José da Costa Rica, Convenção Europeia de Direitos Humanos, tratado de extradição Brasil-Itália, e relatórios de organismos internacionais sobre o sistema prisional brasileiro.

Fábio Pagnozzi, o defensor de Zambelli, é um advogado destacado. Ele integra a Comissão de Direito e Ética da OAB de São Paulo. “Importante observar que instâncias internacionais já reconheceram formalmente o risco que as prisões brasileiras representam”, ele diz.

Ante a possibilidade de a deputada ser capturada pela Interpol e, afinal, mandada de volta ao Brasil para cumprimento de sua longa pena, uma década confinada, a defesa sustenta que ‘uma preocupação premente, especialmente considerando a possibilidade de execução provisória ou definitiva da pena imposta, diz respeito às condições carcerárias brasileiras e os riscos que elas representam aos direitos humanos básicos de qualquer pessoa custodiada, inclusive da sra. Zambelli’.

“É notório, e amplamente documentado, que o sistema prisional do Brasil enfrenta uma crise humanitária crônica, caracterizada por superlotação, violência endêmica, insalubridade e práticas generalizadas de tortura e maus-tratos”, acentua a defesa, amparada em relatórios nacionais e internacionais. “Convergem em apontar violações sistemáticas nas prisões brasileiras, em claro descompasso com as normas constitucionais e tratados de direitos humanos dos quais o Brasil é signatário’.”

O dossiê Zambelli destaca que no caso do ex-diretor do Banco do Brasil, sentenciado na Ação Penal 470 (Mensalão), a Corte de Apelação de Bolonha, na Itália, em 2014, ‘negou inicialmente a extradição do cidadão ítalo-brasileiro Henrique Pizzolato’.

“Justamente por entender que as condições das cadeias no Brasil eram ‘dramáticas’, alertando que ‘o risco de um detento ser submetido a humilhações, torturas e violências ainda é concreto’ nas penitenciárias brasileiras”, argumenta Fábio Pagnozzi.

O advogado observa que no episódio Pizzolato, os juízes italianos citaram relatórios da Anistia Internacional e da Human Rights Watch ‘corroborando que os abusos contra presos no Brasil são endêmicos e que falta controle efetivo para impedir a violência de facções ou de agentes estatais’.

“Ressaltaram inclusive que compromissos e melhorias pontuais (como a indicação de que Pizzolato poderia ficar em um presídio específico, de melhor condição, como o Complexo da Papuda/DF) não eliminavam o risco concreto de tratamento desumano ou degradante, negando a entrega do extraditando naquele momento”, pontua o advogado.

Para ele, ‘tal fato exemplifica que, aos olhos da comunidade internacional, o Brasil não consegue assegurar padrões mínimos de direitos humanos em seus presídios, gerando desconfiança e barreiras em cooperações jurídicas’. “Embora posteriormente Pizzolato tenha sido efetivamente extraditado após recursos e garantias diplomáticas, aquele precedente evidenciou a gravidade da situação prisional brasileira perante tribunais estrangeiros.”

O dossiê de defesa enfatiza. “No caso de Carla Zambelli, uma eventual ordem de prisão a ser cumprida no Brasil ou via extradição demandaria garantias firmes de que sua integridade física e psíquica será preservada durante o cárcere. Qualquer indicação de que ela possa sofrer violência, ameaças ou privação de condições mínimas poderia ensejar medidas de proteção internacionais. O Brasil, por sua vez, tem o dever legal de adotar todas as providências para assegurar condições dignas a qualquer custodiado sob sua guarda, sob pena de responsabilidade internacional por violação de direitos humanos.”

Fábio Pagnozzi pondera. “Esse dever reforça a necessidade de olhar o presente caso com atenção: a concretização da pena não pode transgredir os limites da humanidade, sob pena de converter a sanção em pena cruel, o que é vedado absoluta e universalmente.”

Para a defesa, ‘a possível submissão de Carla Zambelli ao sistema penitenciário brasileiro acende um alerta de direitos humanos’. “O histórico e a conjuntura do sistema apontam que sua vida, saúde e dignidade podem ser colocadas em risco sério. Tal constatação não busca nenhum privilégio, mas sim a plena observância das regras internacionais de tratamento de presos, incluindo as Regras de Mandela (Regras Mínimas da ONU para o Tratamento de Presos) e as recomendações da Comissão Interamericana de Direitos Humanos sobre pessoas privadas de liberdade.”

“Em face disso, segue o advogado, espera-se que quaisquer decisões futuras relativas à execução da pena ou medidas cautelares considerem estritamente essas garantias, avaliando alternativas à prisão comum, caso necessárias, ou monitoramento por órgãos independentes para assegurar a integridade da custodiante.”

O advogado é taxativo. “A defesa de Zambelli conta com argumentos sólidos para pleitear, perante a Itália, a não entrega da deputada ao Brasil, seja temporária ou definitivamente, até que se garanta um tratamento compatível com a dignidade humana e um processo equânime.”

Ele afasta a tese de que Zambelli estaria em busca de privilégios. “Isso não significa impunidade, mas sim a tutela de direitos básicos. Caso a extradição venha a ser autorizada, será fundamental o acompanhamento por organizações internacionais (como a Human Rights Watch ou a Anistia Internacional) e eventualmente a imposição de condições, como a possibilidade de cumprimento de pena na própria Itália ou a supervisão internacional das condições carcerárias no Brasil durante o encarceramento.”

“No caso de Carla Zambelli, uma eventual ordem de prisão a ser cumprida no Brasil ou via extradição demandaria garantias firmes de que sua integridade física e psíquica será preservada durante o cárcere”, clama a defesa da deputada.

Deputada licenciada Carla Zambelli em vídeo gravado nos Estados Unidos
Deputada licenciada Carla Zambelli em vídeo gravado nos Estados Unidos

Segundo o advogado, ‘qualquer indicação de que ela possa sofrer violência, ameaças ou privação de condições mínimas poderia ensejar medidas de proteção internacionais’.

O relatório diz que ‘o Brasil tem o dever legal de adotar todas as providências para assegurar condições dignas a qualquer custodiado sob sua guarda, sob pena de responsabilidade internacional por violação de direitos humanos’.

“Esse dever reforça a necessidade de olhar o presente caso com atenção: a concretização da pena não pode transgredir os limites da humanidade, sob pena de converter a sanção em pena cruel, o que é vedado absoluta e universalmente.”

“A possível submissão de Carla Zambelli ao sistema penitenciário brasileiro acende um alerta de direitos humanos”, sustenta Fábio Pagnozzi “O histórico e a conjuntura do sistema apontam que sua vida, saúde e dignidade podem ser colocadas em risco sério.”

O Dossiê Técnico de Defesa anota que ‘não se busca nenhum privilégio, mas sim a plena observância das regras internacionais de tratamento de presos, incluindo as Regras de Mandela (Regras Mínimas da ONU para o Tratamento de Presos) e as recomendações da Comissão Interamericana de Direitos Humanos sobre pessoas privadas de liberdade’.

“Espera-se que quaisquer decisões futuras relativas à execução da pena ou medidas cautelares considerem estritamente essas garantias, avaliando alternativas à prisão comum, caso necessárias, ou monitoramento por órgãos independentes para assegurar a integridade da custodiante”, sugere o dossiê de Zambelli.

‘VERSÕES CONTRADITÓRIAS’

O Dossiê Técnico de Defesa de Carla Zambelli inicia com acusações ao ministro Alexandre de Moraes, relator do processo que levou à sua condenação a 10 anos de prisão. O ministro teria violado o princípio do juiz natural ao permanecer à frente da investigação sobre a invasão do sistema de dados do Conselho Nacional de Justiça – trama que teria sido concebida por ela, em parceria com o hacker Walter Delgatti Neto, e da qual o próprio Moraes teria sido vítima via a produção de um decreto forjado de sua prisão.

Dividido em 10 capítulos, o documento que a deputada distribuiu encerra com uma ‘declaração formal de inocência’ de Zambelli. “Nunca ordenou, incentivou, financiou ou participou, direta ou indiretamente, de qualquer invasão a sistemas judiciais ou falsificação de documentos públicos. Jamais sugeriu, desejou ou cogitou um ato criminoso contra o ministro Alexandre de Moraes, nem em sentido figurado, tampouco em instruções reais.”

O advogado afirma que Zambelli foi condenada ‘com base na palavra de um réu confesso que apresentou versões contraditórias, sem credibilidade e sem qualquer corroboração’.

“As investigações não encontraram mensagens, repasses, registros bancários, gravações, comandos técnicos nem qualquer vestígio que a ligasse às ações criminosas”, ressalta o texto. “Foi julgada, processada e condenada por ser quem é: opositora de um sistema que não aceita ser questionado. A ré foi condenada previamente na arena política e midiática, e a sentença judicial apenas coroou esse processo persecutório.”

“Sou inocente”, diz Zambelli. ”E não há nada, absolutamente nada nos autos que diga o contrário.”

Na avaliação do advogado, ‘a ausência de provas, combinada com as violações de direitos processuais, tornam essa condenação juridicamente insustentável e eticamente insuportável’. “A história, as cortes superiores e a comunidade internacional saberão reconhecer isso.”

PERSEGUIÇÃO INSTITUCIONAL

Um capítulo do dossiê é dedicado ao que a defesa chama de ‘fatos pós-condenação e violação contínua de direitos’.

“Mesmo após a condenação (pelo STF), o Estado brasileiro praticou atos contínuos de violação de garantias fundamentais, agravando a perseguição institucional contra Carla Zambelli.”

  • Decretação de prisão preventiva com base em suposta fuga, mesmo após ela sair legalmente do país e com liberdade garantida até então. A prisão foi decretada antes do trânsito em julgado e sem fatos novos, contrariando o art. 312 do CPP e a jurisprudência do STF sobre o tema.
  • Perda automática do mandato parlamentar sem deliberação da Câmara dos Deputados. A Constituição (art. 55, §2º e §3º) exige manifestação da Casa Legislativa nos casos de condenação criminal. A decisão do STF violou o princípio da separação dos Poderes e os direitos políticos da ré e de seus quase 1 milhão de eleitores.
  • Bloqueio de verbas salariais e de gabinete, impedindo o pagamento de servidores e a sobrevivência da equipe parlamentar, sem previsão legal específica para tal sanção patrimonial em caráter antecipado, afrontando o princípio da pessoalidade da pena (CF, art. 5º, XLV).
  • Bloqueio das redes sociais do filho menor e da mãe de Zambelli, como forma de impedir que ela se manifestasse por meio de terceiros. Trata-se de um caso extremo e inédito de censura preventiva por parentesco, incompatível com o art. 5º, IV, IX e XL da CF, com o art. 13 da CADH e com o art. 10 da CEDH.

“Esses atos, somados à condenação, configuram um tratamento excepcional, contrário ao devido processo legal, ao princípio da legalidade e às obrigações internacionais assumidas pelo Brasil no tocante à proteção da dignidade humana e da liberdade de expressão”, protesta Fábio Pagnozzi.

NATUREZA POLÍTICA DO DELITO

A defesa detalha que Carla Zambelli foi condenada por ‘crimes comuns’ -invasão de dispositivo informático e falsidade ideológica – relacionados a atos de hackers contra o CNJ, ‘sem motivação política aparente na definição típica’.

Mas o advogado faz uma ressalva. “Por trás da persecução haveria motivação política, dado o notório posicionamento de Zambelli como opositora de ministros do STF e apoiadora do ex-presidente Bolsonaro.”

“Se conseguir demonstrar, perante a Justiça italiana, que sua condenação foi influenciada por perseguição político-ideológica, por exemplo, apontando seletividade acusatória, excesso de pena ou tratamento diferenciado em razão de suas opiniões, (Zambelli) poderia sustentar que se trata de um ‘delito político’ ou de um processo politicamente motivado. A Constituição italiana proíbe extradição em tais casos, assim como o tratado bilateral deve contemplar cláusula de exceção política. Contudo, o ônus dessa prova recai sobre a defesa, e normalmente os tribunais estrangeiros analisam com cautela esse argumento, requerendo indícios claros de parcialidade ou perseguição.”

No caso Pizzolato, cita a defesa, isso não foi suscitado porque os crimes pelos quais ele foi condenado eram de corrupção. Já no caso de Zambelli, embora os tipos penais sejam comuns, o contexto – confronto com o STF, alegações de lawfare – pode ser explorado para tentar caracterizar uma espécie de ‘perseguição política disfarçada de comum’.

“Em última instância, se prevalecer a impressão de que Zambelli está sendo punida principalmente por suas atividades políticas ou opiniões, a Itália negaria a extradição com base na salvaguarda de crime político.”

LEIA A ÍNTEGRA DO DOSSIÊ TÉCNICO DE DEFESA DE ZAMBELLI

1. Contexto do Caso e Panorama Geral

A Deputada Federal Carla Zambelli (PL-SP) foi condenada pelo Supremo Tribunal Federal (STF) a 10 anos de reclusão em regime fechado pela Primeira Turma da Corte, que a considerou culpada pelos crimes de falsidade ideológica e invasão de dispositivo informático relacionados a uma intrusão nos sistemas do Conselho Nacional de Justiça (CNJ) . O acórdão (Ação Penal 2428/DF) relatado pelo Min. Alexandre de Moraes apontou treze invasões ao sistema do CNJ com inserção de documentos falsos, supostamente em colaboração com o desenvolvedor Walter Delgatti Neto. Zambelli, porém, nega participação nos atos e apresentou recurso contra a sentença, alegando nulidades e cerceamento de defesa, bem como indicando ser alvo de perseguição política por parte do STF . Importa destacar que, mesmo condenada, a deputada manteve sua liberdade durante os recursos, não havendo impedimento legal para que deixasse o país – o que de fato ocorreu no final de maio de 2025, sob pretexto de tratamento de saúde.

Atualmente, Carla Zambelli encontra-se fora do Brasil e portando cidadania italiana, circunstância que insere componentes internacionais ao caso. Em entrevista, Zambelli chegou a afirmar que “não me tiram da Itália”, alegando-se protegida de extradição por ser cidadã italiana. No entanto, conforme será exposto, tal situação não garante imunidade absoluta, visto que a Constituição Italiana (art. 26) permite a extradição de nacionais se prevista em tratado internacional – ressalvada a hipótese de crime político . Diante disso, o presente dossiê técnico analisa, de forma imparcial e fundamentada, os principais pontos de defesa da deputada Carla Zambelli, abordando nulidades processuais, violações a direitos e garantias fundamentais no curso da ação penal, bem como os aspectos de direito interno e internacional pertinentes (Constituição Federal, Código Penal e de Processo Penal, Pacto de San José da Costa Rica, Convenção Europeia de Direitos Humanos, tratado de extradição Brasil-Itália, e relatórios de organismos internacionais sobre o sistema prisional brasileiro).

2. Cerceamento de Defesa e Violação ao Devido Processo Legal

2.1 Negativa de Oitiva de Testemunha Essencial

Desde o início da ação penal, a defesa de Carla Zambelli aponta cerceamento de defesa decorrente da impossibilidade de produzir provas essenciais. Um primeiro aspecto foi a não realização da oitiva de uma testemunha chave, o Sr. Thiago E. M. Santos, arrolado pela acusação mas não encontrado para intimação. A defesa ressaltou que essa testemunha, quando ouvida em etapa anterior, “colocou em xeque as declarações de Walter Delgatti Neto” no tocante à participação de Zambelli, reforçando a tese de que ela não teria aderido à empreitada criminosa . Assim, requereu-se ao STF uma última oportunidade para ouvir tal testemunha, independentemente de intimação judicial, salientando que seu depoimento garantiria o exercício pleno do contraditório e da ampla defesa . Todavia, o Relator indeferiu a produção dessa prova, entendendo não ser imprescindível, e a Primeira Turma do STF afastou a preliminar defensiva de nulidade por cerceamento de defesa nessa questão.

A negativa em ouvir testemunha arrolada – especialmente quando seu depoimento poderia elidir contradições e favorecer o esclarecimento da verdade – afronta o direito de defesa previsto na Constituição Federal, art. 5º, LV (“aos litigantes… são assegurados o contraditório e ampla defesa, com os meios e recursos a ela inerentes”). No caso, a decisão de não ouvir a testemunha, apesar de previamente qualificada como relevante pela própria acusação, restringiu o direito da ré de provar fatos em seu favor. Tal decisão aparenta violar também o art. 8º, 2(e) do Pacto de San José da Costa Rica (Convenção Americana de Direitos Humanos), que garante ao acusado o direito de “produzir prova e de examinar as testemunhas da acusação e da defesa em igualdade de condições”. De igual modo, a Convenção Europeia de Direitos Humanos (CEDH), em seu art. 6º, assegura um julgamento justo, o que inclui a possibilidade de apresentar testemunhas e contrapor as provas da acusação (equality of arms). A jurisprudência internacional reforça esse ponto: por exemplo, a Corte Europeia de Direitos Humanos já enfatizou que deve haver equilíbrio entre acusação e defesa, implicando que o réu tenha plena oportunidade de contrariar as evidências e apresentar suas testemunhas.

2.2 Negativa de Acesso aos Elementos de Prova (Dados Apreendidos)

Ainda mais grave, no entender da defesa, foi a negativa de acesso à íntegra dos materiais probatórios obtidos na investigação, em especial cerca de 700 gigabytes de dados armazenados em nuvem (serviço Mega.io) pertencentes ao corréu Walter Delgatti. Esses arquivos digitais foram apreendidos pela Polícia Federal e, segundo a defesa, teriam sido usados na apuração dos fatos, mas não foram disponibilizados aos advogados de Zambelli durante o processo. A defesa invocou expressamente a Súmula Vinculante nº 14 do STF, que assegura ser “direito do defensor, no interesse do representado, ter acesso amplo aos elementos de prova que, já documentados em procedimento investigatório, digam respeito ao exercício do direito de defesa”. Em petição ao relator, sustentou-se que negar o acesso a esses dados fere a garantia constitucional da ampla defesa e do contraditório, pois “a pertinência do requerimento defensivo (de acesso aos dados) é aferível pela própria garantia constitucional da amplitude de defesa e contraditório”.

De fato, a garantia de defesa abrange o direito de examinar e contraditar todas as provas produzidas. Órgãos internacionais reforçam tal entendimento: o Tribunal Europeu de Direitos Humanos já decidiu que “é uma exigência de lealdade processual que as autoridades de acusação divulguem à defesa todas as provas materiais, tanto as de caráter incriminatório quanto as exculpatórias, que estejam em seu poder”.

No âmbito interno, o Código de Processo Penal (CPP) consagra no artigo 156 que cabe à acusação provar os fatos imputados, e a Súmula 14/STF – de observância obrigatória – visa justamente impedir que provas colhidas sejam sonegadas à defesa.

No presente caso, a defesa reiterou em diversas oportunidades o pedido de acesso pleno ao conteúdo digital apreendido, alertando que a recusa em fornecer os 700GB de dados configuraria nulidade absoluta, por cerceamento do direito de defesa . Em manifestação escrita, os advogados de Zambelli afirmaram textualmente que “negar acesso ao conteúdo dos 700 GB armazenados em serviço de nuvem pertencente ao coacusado constitui nulidade absoluta”, requerendo o “reconhecimento do cerceamento reclamado, determinando vista de todo material digital apreendido à defesa” e a concessão de prazo para seu exame . Também pleitearam, com fundamento no art. 573, §1º do CPP, que a não disponibilização integral do acervo probatório fosse considerada uma “eiva” (vício) capaz de contaminar todo o processo . Vale lembrar que, nos termos do CPP, as nulidades absolutas devem ser declaradas independentemente de demonstração de prejuízo, especialmente quando há afronta a princípios basilares do devido processo legal (art. 564, III, “e”, c/c art. 5º, LV da CF).

A despeito desses argumentos, o STF indeferiu o pedido de acesso aos 700GB, alegando falta de demonstração da pertinência do material com o objeto da ação penal . O Relator destacou que a defesa não comprovou a “imprescindibilidade” daquela prova e registrou que já havia determinado a disponibilização de outras evidências digitais consideradas relevantes – como cópias forenses do conteúdo dos dispositivos apreendidos e das indexações de arquivos realizadas pela perícia oficial . Segundo a decisão, a Polícia Federal forneceu à defesa os dados extraídos de aparelhos e relatórios periciais, tendo a própria defesa confirmado o recebimento de tais elementos e até produzido laudo pericial assistencial particular a partir deles. Com base nisso, o acórdão concluiu não haver demonstração de prejuízo concreto pela falta dos demais arquivos em nuvem, aplicando por analogia o art. 400, §1º do CPP (que faculta ao juiz indeferir diligências consideradas protelatórias ou desnecessárias).

Ainda que o STF tenha entendido inexistir cerceamento, do ponto de vista técnico-jurídico persistem sérias dúvidas quanto à correção dessa decisão. A premissa adotada – de exigir que a defesa prove antecipadamente a relevância de um material a que ela não teve acesso – inverte a lógica do contraditório. Impediu-se a defesa de explorar potenciais provas possivelmente favoráveis à ré, o que agride o princípio da paridade de armas. Na jurisprudência internacional, entende-se que cabe às autoridades disponibilizar os elementos de prova, cabendo à defesa e ao Judiciário então avaliar sua pertinência, sob pena de cerceamento. No caso concreto, não havia justificativa legal para manter sob sigilo um volume tão grande de informações obtidas na investigação, sobretudo após a denúncia e durante a instrução criminal. Mesmo que parte desses dados fosse irrelevante, somente a defesa, com acesso assegurado, poderia identificar eventuais evidências exculpatórias ou capazes de orientar diligências – por exemplo, mensagens ou documentos que corroborassem a versão da acusada. Negar completamente esse acesso implicou tirar da acusada a chance de uma defesa plena.

Convém ressaltar que o Pacto de San José da Costa Rica (art. 8º, 2, alínea c) garante ao réu “o tempo e os meios adequados para a preparação da sua defesa”. No contexto de um processo penal complexo com grande volume de provas digitais, essa garantia se traduz no direito de examinar os arquivos apreendidos e, se necessário, solicitar prazos ou perícias adicionais para análise especializada. Impedir esse exame viola também o direito ao contraditório substancial, pois a defesa não pôde contradizer ou verificar as possíveis provas latentes no material coletado. Ademais, a própria Convenção Europeia de Direitos Humanos (art. 6º, 3, alínea b) consagra o direito a meios adequados de preparação da defesa, o que inclui acesso aos autos e evidências. Dessa forma, a situação relatada – falta de acesso aos 700GB de evidências digitais – configura aparente descumprimento de obrigações internacionais de justiça justa e due process, podendo ser arguida em cortes e organismos de direitos humanos. Inclusive, a defesa de Zambelli já formalizou tal alegação em seu recurso, sustentando que “houve cerceamento de defesa pela falta de acesso a todas as provas produzidas durante a investigação” .

2.3 Ausência de Duplo Grau de Jurisdição

Por fim, cabe apontar um aspecto estrutural do processo que levanta preocupação em termos de garantias: a inexistência de duplo grau de jurisdição penal para a ré. Carla Zambelli, por deter mandato parlamentar à época dos fatos, foi julgada originariamente pelo STF, não havendo previsão de recurso ordinário contra a condenação perante instância superior (a Constituição Federal veda recursos contra acórdãos condenatórios do Supremo, admitindo apenas embargos de declaração ou revisão criminal). Essa situação – um julgamento criminal em instância única – contrasta com o padrão internacional de garantias judiciais, em especial o Pacto de San José, cujo art. 8º, 2, “h” assegura ao condenado o direito de recorrer da sentença a juiz ou tribunal superior. A Corte Interamericana de Direitos Humanos já afirmou que o direito ao recurso é componente essencial do devido processo, concluindo que a ausência de possibilidade de apelação criminal viola a Convenção Americana (vide, p.ex., caso Herrera Ulloa vs. Costa Rica, 2004). Do mesmo modo, o Protocolo nº 7 à CEDH (art. 2º) consagra o direito a um segundo grau de jurisdição em matéria penal.

No caso de Zambelli, embora a legislação brasileira interna atribua foro por prerrogativa de função e os embargos de declaração tenham efeito suspensivo temporário, não há como suprir integralmente a falta de uma revisão por órgão diverso e hierarquicamente superior. Esse déficit de duplo grau pode ser arguido em instâncias internacionais, haja vista o Brasil ser Estado-parte da Convenção Americana. Assim, além dos cerceamentos específicos já mencionados, pesa contra a condenação o fato de ter sido proferida em sede única, sem revisão colegiada ampla, o que por si só desafia os parâmetros convencionais de justiça.

Em síntese, os pontos acima delineiam graves violações ao devido processo legal na Ação Penal 2428: a) cerceamento de defesa pela não realização de prova testemunhal potencialmente decisiva; b) cerceamento de defesa pela negativa de acesso a volumoso acervo probatório digital, contrariando legislação pátria (CF/88, CPP) e súmula vinculante do próprio STF; e c) ausência de direito a recurso efetivo em âmbito criminal. Tais vícios maculam a legitimidade da condenação imposta, configurando nulidades absolutas na forma da lei processual e fortalecendo o pleito defensivo de anulação do julgamento ou, ao menos, sua reforma em favor da ré.

3. Insuficiência de Provas e Princípio da Presunção de Inocência

Para além das nulidades processuais, o caso em tela suscita dúvidas acerca da suficiência e robustez das provas que embasaram a condenação de Carla Zambelli. Pelo princípio do in dubio pro reo (na dúvida, decide-se em favor do réu), corolário da presunção de inocência (art. 5º, LVII, CF), uma condenação criminal somente se legitima se lastreada em prova firme e incontroversa da autoria e materialidade delitivas. No entanto, a defesa sustenta que o Ministério Público não logrou produzir prova cabal da participação dolosa de Zambelli nos crimes apurados. Em suas alegações, a defesa frisou que o órgão acusatório “não cumpriu com seu ônus – artigo 156 do CPP – não produzindo prova cabal, induvidosa e indiscutível de que a acusada seria instigadora […] dos atos praticados pelo coacusado (Walter Delgatti Neto)”. Essa afirmação ilustra a alegada inexistência de elementos probatórios diretos que vinculem Carla Zambelli à invasão dos sistemas do CNJ ou à inserção de documentos falsos no Banco Nacional de Monitoramento de Prisões (BNMP 2.0).

De fato, examinando os autos, observa-se que a acusação contra Zambelli parece apoiar-se sobretudo em declarações do corréu Walter Delgatti e em ilações sobre eventuais comunicações entre eles. Zambelli, por sua vez, sempre negou ter solicitado ou incentivado qualquer ação ilícita por parte de Delgatti. Durante a instrução, a defesa obteve autorização para realizar perícia técnica independente nos dispositivos e registros eletrônicos disponíveis, exatamente para verificar se havia qualquer vestígio digital de que Zambelli teria recebido ou repassado arquivos ilícitos. O resultado dessa análise foi categórico: segundo o assistente técnico da defesa, “pode-se afirmar que não há nenhuma evidência técnica – comprovação – de que Walter tenha enviado o documento inserido no BNMP 2.0 exclusivamente para o e-mail de Carla, nem que ela o tenha repassado para Cappelli” . Ou seja, não se encontrou prova forense de que Carla Zambelli tenha participado do esquema de falsificação de ordens judiciais (como, por exemplo, encaminhando documentos falsos para terceiros).

Essa conclusão pericial enfraquece substancialmente a tese acusatória. Se o próprio exame dos sistemas informáticos e mensagens não detectou nenhum vínculo direto de Zambelli com a conduta ilícita, a condenação parece amparar-se em elementos indiretos ou em testemunhos contestáveis. Ressalte-se que Walter Delgatti Neto confessou envolvimento nas invasões e possuía fortes motivações para negociar uma delação ou atribuir responsabilidade a terceiros em busca de benefícios penais. Sem corroboração independente, acusar exclusivamente com base em palavras do corréu contraria a prudência jurídica, mormente quando o corréu busca redução de pena ou indulgência. Por isso, a defesa protestou pela oitiva da testemunha Thiago E. M. Santos – cujo depoimento anterior inocentaria Zambelli – e insistiu no acesso a todos os dados da nuvem de Delgatti, justamente para tentar demonstrar a ausência de vínculo de sua cliente com os atos criminosos. Ambas as diligências, entretanto, foram frustradas (conforme visto na seção anterior), o que agravou o prejuízo à elucidação da verdade.

No sistema penal brasileiro, a responsabilização por fato típico exige comprovação do dolo ou culpa da agente, e no caso de participação em crime cometido por terceiros (coautoria ou instigação), exige-se prova de um liame subjetivo e material entre o acusado e o autor do delito (art. 29 do Código Penal). Até o momento, não foi revelado nenhum ato concreto praticado por Carla Zambelli que se enquadre na figura de instigação ou cumplicidade nos crimes cibernéticos em questão – não há e-mails, mensagens ou ordens dela para Delgatti, tampouco registros de repasse de documentos ilícitos. Ao contrário, a narrativa defensiva – não contraditada eficientemente – é de que Zambelli teria mantido contato político com Delgatti (como figura envolvida em denúncias da operação Vaza Jato), mas jamais encomendou atos ilícitos. A própria cronologia reconstruída pela defesa demonstra que os contatos entre eles não tiveram relação necessária com a invasão ao CNJ, e que Zambelli não obteve qualquer benefício ou proveito dos documentos falsos inseridos no sistema.

Frise-se que o princípio da presunção de inocência, consagrado também no art. 8º, 2 da Convenção Americana, impõe que o ônus da prova recai integralmente sobre a acusação. Diante de provas incertas ou lacunosas, deve prevalecer a absolvição. A jurisprudência pátria e internacional convergem no sentido de que dúvidas razoáveis sobre a autoria ou participação de um acusado devem beneficiá-lo, não sendo admissível condenação baseada em inferências ou suposições. No caso de Zambelli, as lacunas probatórias são notórias, a ponto de a Procuradoria-Geral da República ter requerido recentemente sua prisão preventiva apenas após ela sair do país, o que sugere que enquanto permanecia no Brasil respondendo ao processo em liberdade, não se via nela uma periculosidade concreta ou risco evidente (prisão preventiva que, aliás, não foi decretada até sua viagem).

Em suma, não há prova penal contundente de que Carla Zambelli concorreu de forma consciente e voluntária para os crimes de invasão de dispositivo ou falsificação de documento público. A condenação contrariou o estado de inocência e o in dubio pro reo, motivo pelo qual a defesa postula sua reforma. Caso os vícios de cerceamento mencionados não sejam suficientes para anular o processo, requer-se alternativamente que, no mérito, prevaleça a absolvição diante da insuficiência de provas e da ausência de demonstração de dolo na conduta da parlamentar.

4. Condições Carcerárias no Brasil e Riscos a Direitos Fundamentais

Uma preocupação premente, especialmente considerando a possibilidade de execução provisória ou definitiva da pena imposta, diz respeito às condições carcerárias brasileiras e os riscos que elas representam aos direitos humanos básicos de qualquer pessoa custodiada, inclusive da sra. Zambelli. É notório, e amplamente documentado, que o sistema prisional do Brasil enfrenta uma crise humanitária crônica, caracterizada por superlotação, violência endêmica, insalubridade e práticas generalizadas de tortura e maus-tratos. Relatórios nacionais e internacionais convergem em apontar violações sistemáticas nas prisões brasileiras, em claro descompasso com as normas constitucionais e tratados de direitos humanos dos quais o Brasil é signatário.

A própria Organização das Nações Unidas (ONU), por meio de seus mecanismos de monitoramento, tem classificado o cárcere brasileiro como “cruel, desumano e degradante”. Em 2016, o Relator Especial da ONU sobre Tortura, Juan Méndez, após missão ao Brasil, denunciou a situação “caótica e violadora” das prisões, afirmando que o país vem sendo “reiteradamente reconhecido como violador de direitos humanos […] pela situação permanente de ameaça à vida e à integridade das pessoas que se encontram nos cárceres brasileiros”, onde “a tortura e maus-tratos são sistemáticos” . O relatório destacou problemas estruturais graves: celas superlotadas (até 300% acima da capacidade), falta de acesso a água potável, saneamento básico e assistência médica, escassez de atividades educacionais ou de ressocialização, e controle dos pavilhões por facções criminosas diante da insuficiência ou conivência de agentes estatais . Situações extremas como massacres de detentos, casos de decapitação em rebeliões (v.g., Complexo de Pedrinhas, no Maranhão) e torturas com choques elétricos, espancamentos e outros métodos atrozes também já foram registradas e comunicadas a organismos internacionais.

O Conselho Nacional de Justiça (CNJ) e diversas organizações não-governamentais (Conectas, Human Rights Watch, Anistia Internacional, Justiça Global, etc.) emitiram relatórios e recomendações que confirmam esse cenário dantesco nos presídios. A situação atinge patamares tão críticos que compromete a segurança não só dos presos, mas dos próprios agentes penitenciários e da sociedade em geral (pela proliferação do crime organizado intramuros). Trata-se, em suma, de uma realidade que afronta princípios básicos da dignidade da pessoa humana, violando o art. 5º, XLIX da Constituição Federal (“é assegurado aos presos o respeito à integridade física e moral”) e o art. 5º, III (“ninguém será submetido a tortura nem a tratamento desumano ou degradante”).

No plano internacional, essas condições carcerárias configuram violação de tratados de direitos humanos subscritos pelo Brasil, em particular o Pacto de San José (art. 5º) – que garante que toda pessoa privada de liberdade seja tratada com o respeito devido à dignidade inerente ao ser humano – e a Convenção contra a Tortura da ONU (Decreto 40/1991), cujo art. 2º obriga os Estados a tomar medidas eficazes para prevenir atos de tortura e maus-tratos em qualquer território sob sua jurisdição. A Convenção Europeia de Direitos Humanos (art. 3º), embora não vinculante para o Brasil diretamente, estabelece um parâmetro universal ao proibír a tortura e tratamentos desumanos ou degradantes, um imperativo jus cogens que se espera ser observado por todas as nações civilizadas.

Especialmente relevante no caso presente é o fato de Carla Zambelli ser mãe, mulher e pessoa de notório perfil oposicionista, o que poderia torná-la ainda mais vulnerável dentro do sistema prisional brasileiro. Mulheres em unidades prisionais enfrentam violações específicas (como falta de atendimento a necessidades básicas de higiene feminina e risco de violência sexual). Ademais, considerando a alta exposição política de Zambelli e seu embate público com autoridades do atual governo e do Judiciário, há fundado temor de que ela se torne alvo de retaliações ou tratamento degradante no cárcere, seja por parte de outros detentos ou mesmo de agentes, como forma de punição velada por sua atuação política. Casos de presos célebres que sofrem abuso não são inéditos e requerem vigilância redobrada.

Importante observar que instâncias internacionais já reconheceram formalmente o risco que as prisões brasileiras representam. Em 2014, por exemplo, a Corte de Apelação de Bolonha (Itália) negou inicialmente a extradição do cidadão ítalo-brasileiro Henrique Pizzolato justamente por entender que as condições das cadeias no Brasil eram “dramáticas”, concluindo que “o risco de um detento ser submetido a humilhações, torturas e violências ainda é concreto” nas penitenciárias brasileiras. Na decisão, os juízes italianos citaram relatórios da Anistia Internacional e da Human Rights Watch corroborando que os abusos contra presos no Brasil são endêmicos e que falta controle efetivo para impedir a violência de facções ou de agentes estatais . Ressaltaram inclusive que compromissos e melhorias pontuais (como a indicação de que Pizzolato poderia ficar em um presídio específico, de melhor condição, como o Complexo da Papuda/DF) não eliminavam o risco concreto de tratamento desumano ou degradante, negando a entrega do extraditando naquele momento . Tal fato exemplifica que, aos olhos da comunidade internacional, o Brasil não consegue assegurar padrões mínimos de direitos humanos em seus presídios, gerando desconfiança e barreiras em cooperações jurídicas. Embora posteriormente Pizzolato tenha sido efetivamente extraditado após recursos e garantias diplomáticas, aquele precedente evidenciou a gravidade da situação prisional brasileira perante tribunais estrangeiros.

No caso de Carla Zambelli, uma eventual ordem de prisão a ser cumprida no Brasil ou via extradição demandaria garantias firmes de que sua integridade física e psíquica será preservada durante o cárcere. Qualquer indicação de que ela possa sofrer violência, ameaças ou privação de condições mínimas poderia ensejar medidas de proteção internacionais. O Brasil, por sua vez, tem o dever legal de adotar todas as providências para assegurar condições dignas a qualquer custodiado sob sua guarda, sob pena de responsabilidade internacional por violação de direitos humanos. Esse dever reforça a necessidade de olhar o presente caso com atenção: a concretização da pena não pode transgredir os limites da humanidade, sob pena de converter a sanção em pena cruel, o que é vedado absoluta e universalmente.

Conclui-se, portanto, que a possível submissão de Carla Zambelli ao sistema penitenciário brasileiro acende um alerta de direitos humanos. O histórico e a conjuntura do sistema apontam que sua vida, saúde e dignidade podem ser colocadas em risco sério. Tal constatação não busca nenhum privilégio, mas sim a plena observância das regras internacionais de tratamento de presos, incluindo as Regras de Mandela (Regras Mínimas da ONU para o Tratamento de Presos) e as recomendações da Comissão Interamericana de Direitos Humanos sobre pessoas privadas de liberdade. Em face disso, espera-se que quaisquer decisões futuras relativas à execução da pena ou medidas cautelares considerem estritamente essas garantias, avaliando alternativas à prisão comum, caso necessárias, ou monitoramento por órgãos independentes para assegurar a integridade da custodiante.

5. Aspectos de Direito Internacional e Extradição Brasil–Itália

Dada a dimensão transnacional adquirida pelo caso – com Carla Zambelli atualmente fora do Brasil e de posse de cidadania italiana –, impõe-se analisar os aspectos legais internacionais, em especial no tocante à extradição e à cooperação penal entre Brasil e Itália.

5.1 Possibilidade de Extradição e Limites Legais

Em primeiro lugar, convém esclarecer que a cidadania italiana de Zambelli, embora lhe proporcione proteção diplomática e alguns direitos na Itália, não a torna automaticamente imune à extradição. Diferentemente do Brasil – cuja Constituição (art. 5º, LI) veda em quase todos os casos a extradição de brasileiros natos –, a Constituição Italiana permite extradição de nacionais quando houver previsão em convenções internacionais, exceto se for caso de delito político . Ou seja, a Itália admite entregar seus cidadãos para responder ou cumprir pena em outro país, desde que exista um tratado regulando a matéria e que não se trate de persecução por crime político.

Entre o Brasil e a Itália vigora, desde o fim da década de 1980, um tratado bilateral de extradição (Acordo promulgado pelo Decreto n.º 863/1993), o qual não impede a entrega de nacionais, ficando essa decisão a critério do Estado requerido. Portanto, do ponto de vista jurídico, há fundamento para o Brasil solicitar a extradição de Carla Zambelli caso sua prisão seja decretada com trânsito em julgado da condenação ou mesmo preventivamente (diante de sua saída do país). Inclusive, como mencionado pela Procuradoria-Geral da República, o Brasil poderá também invocar instrumentos multilaterais de cooperação penal, a exemplo da Convenção de Budapeste sobre Crimes Cibernéticos (2001) – da qual a Itália é parte e o Brasil recentemente aderiu – cujo art. 24 facilita a extradição em casos de delitos informáticos . Assim, a princípio, a extradição é legalmente viável e poderia ocorrer, sujeito aos procedimentos e avaliações das autoridades judiciárias italianas competentes.

5.2 Garantias e Obstáculos em Potencial: Crime Político e Direitos Humanos

Ao analisar um pedido de extradição de Carla Zambelli, a Justiça Italiana certamente examinará duas questões centrais: (a) se os fatos configuram crime político ou perseguição de caráter político; e (b) se a entrega da pessoa ao Brasil poderá colocá-la em risco de sofrer pena cruel, tratamento desumano ou outras violações de direitos fundamentais. Esses dois pontos são condições clássicas de denegação de extradição em diversos ordenamentos e tratados, inclusive no acordo Brasil-Itália e na prática jurisprudencial italiana.

(a) Natureza política do delito: Carla Zambelli foi condenada por crimes comuns (invasão de dispositivo informático e falsidade ideológica) relacionados a atos de hackers contra o CNJ, sem motivação política aparente na definição típica. Contudo, a defesa alega que por trás da persecução haveria motivação política, dado o notório posicionamento de Zambelli como opositora de ministros do STF e apoiadora do ex-presidente Bolsonaro. Se conseguir demonstrar, perante a Justiça italiana, que sua condenação foi influenciada por perseguição político-ideológica – por exemplo, apontando seletividade acusatória, excesso de pena ou tratamento diferenciado em razão de suas opiniões –, poderia sustentar que se trata de um “delito político” (ou de um processo politicamente motivado). A Constituição italiana proíbe extradição em tais casos, assim como o tratado bilateral deve contemplar cláusula de exceção política. Contudo, o ônus dessa prova recai sobre a defesa, e normalmente os tribunais estrangeiros analisam com cautela esse argumento, requerendo indícios claros de parcialidade ou perseguição. No caso Pizzolato, por exemplo, isso não foi suscitado porque os crimes eram de corrupção; já no caso de Zambelli, embora os tipos penais sejam comuns, o contexto (confronto com o STF, alegações de lawfare) pode ser explorado para tentar caracterizar uma espécie de “perseguição política disfarçada de comum”. Em última instância, se prevalecer a impressão de que Zambelli está sendo punida principalmente por suas atividades políticas ou opiniões, a Itália negaria a extradição com base na salvaguarda de crime político.

(b) Risco de violação de direitos humanos: Conforme exposto na seção anterior, as condições das prisões brasileiras fornecem um forte argumento de defesa contra a extradição. Autoridades italianas já estabeleceram jurisprudência no sentido de que não extraditarão indivíduos para países onde haja risco real de sofrerem tratamento desumano ou degradante. Esse princípio está alinhado tanto à Constituição italiana quanto às obrigações internacionais da Itália sob a Convenção Europeia de DH (art. 3º) e convenções da ONU. No caso de Zambelli, a defesa poderá apresentar à Justiça italiana relatórios atualizados da ONU, UE e ONGs sobre o sistema prisional brasileiro, demonstrando superlotação, violência e violações de direitos. Conforme citado, a própria Corte de Bolonha registrou que “a condição carcerária do Brasil é dramática” e que “o risco de um detento ser submetido a humilhações, torturas e violências é concreto” – constatação feita em 2014 e que permanece pertinente em 2025, haja vista a não-superação dos problemas estruturais. Além disso, as tentativas do Estado brasileiro de mitigar essa imagem (como prometer custodiar Pizzolato em presídio de melhor condição) não convenceram totalmente os juízes italianos, os quais reiteraram que nenhuma garantia apresentada eliminava o risco de tratamento desumano, negando a extradição naquele momento .

Espera-se que, em eventual processo de extradição de Zambelli, ocorreria um escrutínio semelhante. A Itália poderia requerer garantias diplomáticas formais do Brasil assegurando que Zambelli ficaria detida em instalações adequadas, segregada de presos perigosos, com acesso a cuidados de saúde, etc. Mesmo assim, dado o histórico de descumprimento sistêmico, permaneceria ao judiciário italiano a decisão de confiar (ou não) nessas garantias. Cabe lembrar que no âmbito da União Europeia vigora o princípio da não-entrega (non-refoulement) em caso de sério risco de violação de direitos fundamentais. Esse princípio, originário tanto da Convenção Europeia quanto da Convenção da ONU Contra a Tortura (art. 3º), impõe que nenhum Estado deve extraditar ou deportar uma pessoa para um país onde haja razões substanciais para crer que ela possa sofrer tortura ou outros danos irreparáveis . Trata-se de uma obrigação absoluta em direito internacional dos direitos humanos.

Portanto, a defesa de Zambelli conta com argumentos sólidos para pleitear, perante a Itália, a não entrega da deputada ao Brasil, seja temporária ou definitivamente, até que se garanta um tratamento compatível com a dignidade humana e um processo equânime. Isso não significa impunidade, mas sim a tutela de direitos básicos. Caso a extradição venha a ser autorizada, será fundamental o acompanhamento por organizações internacionais (como a Human Rights Watch ou a Anistia Internacional) e eventualmente a imposição de condições, como a possibilidade de cumprimento de pena na própria Itália ou a supervisão internacional das condições carcerárias no Brasil durante o encarceramento.

5.3 Cooperação Jurídica Internacional e Apelo às Instâncias de Direitos Humanos

Independentemente dos desdobramentos judiciais na Itália, o caso Carla Zambelli já desperta interesse de entidades de direitos humanos e poderá ser submetido a foros internacionais de monitoramento. Existem mecanismos tanto no sistema ONU (como comunicações ao Comitê de Direitos Humanos, Relatoria Especial da ONU para independência judicial ou para direitos de opositores, etc.) quanto no sistema interamericano (petição à Comissão Interamericana de Direitos Humanos – CIDH). A admissibilidade de petições internacionais requer, via de regra, o esgotamento dos recursos internos ou situação de urgência com risco irreparável. No presente caso, considerando que ainda tramitam embargos de declaração no STF, a defesa provavelmente aguardará seu desfecho. Contudo, diante do alegado cerceamento de defesa e da falta de duplo grau de jurisdição, já se configuram fundamentos para suscitar a responsabilidade do Estado brasileiro na violação de dispositivos da Convenção Americana (art. 8º, direito a julgamento justo; art. 25, direito a proteção judicial efetiva). Some-se a isso o contexto pós-eleitoral conturbado e a alegação de perseguição política, e tem-se um caso com contornos que podem atrair medidas cautelares internacionais caso haja iminência de dano grave (por exemplo, ordem de prisão e risco à integridade física).

Importante salientar que não se trata de subtrair Carla Zambelli da aplicação da lei, mas de assegurar que tal aplicação ocorra dentro dos estritos limites da legalidade e dos direitos humanos. O Brasil, ao assumir compromissos internacionais, submeteu-se ao escrutínio externo quanto ao respeito a essas garantias. Assim, um apelo às instâncias internacionais – seja via Justiça italiana no contexto extradicional, seja via órgãos de direitos humanos – é um recurso legítimo da defesa quando há indícios de violação de normas supranacionais. A própria visibilidade do caso na imprensa internacional e em organismos como o Parlamento Europeu (que acompanha a situação política brasileira) pode funcionar como elemento de pressão positiva para que o Estado brasileiro reavalie eventuais excessos e reforce seu compromisso com o Estado de Direito.

7. Violação ao Princípio do Juiz Natural e da Imparcialidade Judicial

Um dos mais graves vícios que comprometem a validade da condenação imposta à Carla Zambelli foi a clara violação ao princípio do juiz natural e da imparcialidade judicial, assegurados no art. 5º, incisos XXXVII e LIII da Constituição Federal, no art. 8.1 do Pacto de San José da Costa Rica (CADH) e no art. 6.1 da Convenção Europeia de Direitos Humanos (CEDH).

No presente caso, o Ministro Alexandre de Moraes, que atuou como relator da Ação Penal 2428/DF, foi também a suposta vítima direta dos principais atos imputados à ré – em especial, a inclusão de um mandado de prisão falso com seu nome como autoridade signatária, e uma alegada tentativa de invasão de seu aparelho celular. Isso por si só compromete sua imparcialidade objetiva e subjetiva, pois ele não poderia, ao mesmo tempo, ser ofendido, investigador, relator e julgador do caso.

O STF já afastou juízes de causas por motivos muito menos diretos. A imparcialidade judicial exige, além da isenção subjetiva, a aparência de neutralidade diante da sociedade. Como decidiu a Corte Europeia de Direitos Humanos no caso Kyprianou v. Chipre (2005), o simples fato de um juiz ter interesse pessoal no desfecho do processo – mesmo que apenas simbólico – já vicia a imparcialidade do julgamento.

No caso de Zambelli, Moraes não apenas conduziu a instrução e indeferiu diligências da defesa (inclusive a oitiva de testemunha que desmentiria Walter Delgatti), como também proferiu o voto condenatório. A ausência de autodeclaração de impedimento feriu de morte o juiz natural, e esse vício é insanável.

8. Fatos Pós-Condenação e Violação Contínua de Direitos

Mesmo após a condenação, o Estado brasileiro praticou atos contínuos de violação de garantias fundamentais, agravando a perseguição institucional contra Carla Zambelli:

  • Decretação de prisão preventiva com base em suposta fuga, mesmo após ela sair legalmente do país e com liberdade garantida até então. A prisão foi decretada antes do trânsito em julgado e sem fatos novos, contrariando o art. 312 do CPP e a jurisprudência do STF sobre o tema.
  • Perda automática do mandato parlamentar sem deliberação da Câmara dos Deputados. A Constituição (art. 55, §2º e §3º) exige manifestação da Casa Legislativa nos casos de condenação criminal. A decisão do STF violou o princípio da separação dos Poderes e os direitos políticos da ré e de seus quase 1 milhão de eleitores.
  • Bloqueio de verbas salariais e de gabinete, impedindo o pagamento de servidores e a sobrevivência da equipe parlamentar, sem previsão legal específica para tal sanção patrimonial em caráter antecipado, afrontando o princípio da pessoalidade da pena (CF, art. 5º, XLV).
  • Bloqueio das redes sociais do filho menor e da mãe de Zambelli, como forma de impedir que ela se manifestasse por meio de terceiros. Trata-se de um caso extremo e inédito de censura preventiva por parentesco, incompatível com o art. 5º, IV, IX e XL da CF, com o art. 13 da CADH e com o art. 10 da CEDH.

Esses atos, somados à condenação, configuram um tratamento excepcional, contrário ao devido processo legal, ao princípio da legalidade e às obrigações internacionais assumidas pelo Brasil no tocante à proteção da dignidade humana e da liberdade de expressão.

9. Contradições nos Depoimentos de Walter Delgatti Neto

A base central da condenação de Carla Zambelli é o depoimento de Walter Delgatti Neto, autointitulado hacker e réu confesso. Contudo, como demonstrado em diversos momentos do processo e na imprensa, Delgatti apresentou múltiplas versões, mutuamente incompatíveis, e nenhuma foi corroborada por prova material.

Essa inconsistência foi reconhecida nos próprios relatórios internos, inclusive em trecho da Polícia Federal que classifica Delgatti como mitômano (mentiroso contumaz). Além disso:

  • Nenhuma das mensagens trocadas com Zambelli sustenta o que Delgatti afirma nos depoimentos posteriores.
  • As perícias técnicas não encontraram evidência de comando, repasse, ordem ou apoio logístico da parte de Zambelli.
  • Delgatti agiu sozinho, com ferramentas e credenciais obtidas anos antes de conhecer a ré.

Em qualquer sistema penal, um único depoimento contraditório, sem qualquer lastro técnico, não pode condenar um réu – ainda mais uma parlamentar, que deveria ser protegida contra arbitrariedades por sua imunidade formal e material.

10. Declaração Formal de Inocência

Carla Zambelli declara, de forma clara e expressa, sua total inocência.

Nunca ordenou, incentivou, financiou ou participou, direta ou indiretamente, de qualquer invasão a sistemas judiciais ou falsificação de documentos públicos. Jamais sugeriu, desejou ou cogitou um ato criminoso contra o ministro Alexandre de Moraes – nem em sentido figurado, tampouco em instruções reais.

Zambelli foi condenada com base na palavra de um réu confesso que apresentou versões contraditórias, sem credibilidade e sem qualquer corroboração. As investigações não encontraram mensagens, repasses, registros bancários, gravações, comandos técnicos nem qualquer vestígio que a ligasse às ações criminosas.

Foi julgada, processada e condenada por ser quem é: opositora de um sistema que não aceita ser questionado. A ré foi condenada previamente na arena política e midiática, e a sentença judicial apenas coroou esse processo persecutório.

Por isso, reafirma:

“Sou inocente. E não há nada – absolutamente nada – nos autos que diga o contrário.”

A ausência de provas, combinada com as violações de direitos processuais, tornam essa condenação juridicamente insustentável e eticamente insuportável. A história, as Cortes superiores e a comunidade internacional saberão reconhecer isso.

 

 

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *