Resilição automática dos planos de saúde de natureza coletiva
Discute-se a validade ou não da resilição automática, em planos de saúde de natureza coletiva, quando os pacientes estiverem em tratamento contínuo ou internados.
Em se tratando de plano de saúde, são aplicáveis as normas do Código de Defesa do Consumidor.
CLÁUDIA LIMA MARQUES ensina:
“(…) apesar da L. 9656/98, na sua versão atual, nominar os antigos contratos de seguro-saúde como planos privados de assistência à saúde, indiscutível que tanto os antigos contratos de seguro-saúde, os atuais planos de saúde, como os, também comuns, contratos de assistência médica possuem características e sobretudo uma finalidade em comum: o tratamento e a segurança contra os riscos envolvendo a saúde do consumidor e de sua família ou dependentes. Mencione-se, assim, com o eminente Professor e Ministro Carlos Alberto Menezes Direito, que: “Dúvida não pode haver quanto à aplicação do Código do Consumidor sobre os serviços prestados pelas empresas de medicina de grupo, de prestação especializada em seguro-saúde. A forma jurídica que pode revestir esta categoria de serviço ao consumidor, portanto, não desqualifica a incidência do Código do Consumidor. O reconhecimento da aplicação do Código do Consumidor implica subordinar os contratos aos direitos básicos do consumidor, previstos no art. 6º do Código (…)”.
Nos termos da Súmula 608 do Superior Tribunal de Justiça, aplicam-se aos contratos de seguro saúde os ditames do Código de Defesa do Consumidor, com exceção daqueles administrados por entidades de autogestão.
O Código de Defesa do Consumidor, em seu artigo 4º, dispõe que “a Política Nacional das Relações de Consumo tem por objetivo o atendimento das necessidades dos consumidores, o respeito à sua dignidade, saúde e segurança, a proteção de seus interesses econômicos, a melhoria da sua qualidade de vida, bem como a transparência e harmonia das relações de consumo, atendidos os seguintes princípios…I – reconhecimento da vulnerabilidade do consumidor no mercado de consumo…”.
O artigo 6º, inciso VIII do Código de Defesa do Consumidor, constitui direito básico do consumidor à facilitação de sua defesa e essa garantia visa proteger a parte mais fraca da relação de consumo.
A norma é baseada no princípio da vulnerabilidade que é inerente ao consumidor na relação de consumo, razão pela qual é cabível a inversão do ônus da prova.
É cediço, ainda, que os fornecedores devem promover o direito à informação do consumidor (art. 6º, inciso III, do Código de Defesa do Consumidor).
Outrossim, cabe destacar que o artigo 31 do Código de Defesa do Consumidor estatui que “a oferta e a apresentação de produtos ou serviços devem assegurar informações corretas, claras, precisas, extensiva, em língua portuguesa, sobre suas características, qualidade, quantidade, composição, preço, garantia e prazo de validade de origem, entre outros dados”.
Logo, o dever de informar é fonte de obrigações civis, com base na responsabilidade pré-contratual e não um simples controle sobre a enganosidade ou abusividade da informação e traz, assim, como elemento de grande importância para que o consumidor esteja habilitado para conhecer a qualidade do bem ofertado pelos seus próprios meios, exercendo a livre escolha do que lhe é assegurado.
Nessa linha, o consumidor deve ter plena ciência da contratação e eventuais alterações promovidas, assegurando-se proteção às legítimas expectativas da contratação original, sendo vedadas as práticas abusivas, de acordo com o artigo 39 do Código de Defesa do Consumidor[1].
As práticas abusivas são condutas que causam um maior desequilíbrio existente entre o fornecedor e consumidor na relação consumerista e não podem, sob hipótese alguma, ser afastadas pela livre vontade das partes.
Para DANIEL AMORIM ASSUMPÇÃO NEVES e FLÁVIO TARTUCE[2], as práticas abusivas encerradas pelo artigo 39 são assim conceituadas:
“Deve-se entender que constitui prática abusiva qualquer conduta ou ato em contradição com o próprio espírito da lei consumerista. Como bem leciona Ezequiel Morais, “prática abusiva, em termos gerais, é aquela que destoa dos padrões mercadológicos, dos usos e costumes (incs. II e IV, segunda parte, do art. 39 e art. 113 do CC/2002) e da razoável e boa conduta perante o consumidor”. Lembre-se de que, para a esfera consumerista, servem como parâmetros os conceitos que constam do art. 187 do CC/2002: o fim social e econômico, a boa-fé objetiva e os bons costumes, em diálogo das fontes. Há claro intuito de proibição, pelo que enuncia o caput do preceito do CDC, a saber: “É vedado ao fornecedor de produtos ou serviços, dentre outras práticas abusivas”. Na esteira do tópico anterior, a primeira consequência a ser retirada da vedação é a responsabilidade objetiva do fornecedor de produtos ou prestador de serviços. Além disso, deve-se compreender o art. 39 do CDC como em um diálogo de complementaridade em relação ao art. 51 da mesma norma. Deve haver, assim, um diálogo das fontes entre as normas da própria Lei Consumerista. Nesse contexto de conclusão, se uma das situações descritas pelo art. 51 como cláusulas abusivas ocorrer fora do âmbito contratual, presente estará uma prática abusiva. Por outra via, se uma das hipóteses descritas pelo art. 39 do CDC constituir o conteúdo de um contrato, presente uma cláusula abusiva. Em suma, as práticas abusivas também podem gerar a nulidade absoluta do ato correspondente.
Logo, são práticas abusivas as condutas dos fornecedores que desvirtuem os padrões de boa conduta nas relações de consumo, excedendo os limites da boa-fé.
Ademais, estatui o artigo 46 do Código de Defesa do Consumidor que “os contratos que regulam as relações de consumo não obrigarão os consumidores, se não lhes for dada a oportunidade de tomar conhecimento prévio de seu conteúdo, ou se os respectivos instrumentos forem redigidos de modo a dificultar a compreensão de seu sentido e alcance”.
As sociedades empresárias, que desenvolvem atividades de forma habitual e profissional no mercado, como parte do seu negócio – de sua atividade comercial – de forma remunerada, utilizam contrato padrão.
O contrato utilizado para os negócios dos consumidores é o chamado “contrato de adesão”, no qual o papel do adquirente é apenas o de assentir, sem qualquer questionamento, prevalecendo as regras impostas unilateralmente, sem livre pactuação.
Quando as cláusulas limitativas dos contratos não estiverem de acordo com o estabelecido pelo Código de Defesa do Consumidor, não só deverão ser interpretadas em favor do consumidor, mas, também, consideradas nulas de pleno direito por não obedecerem ao determinado pelas normas protetivas do consumidor e, por conseguinte, colocarem o consumidor em desvantagem excessiva.
Não é demais lembrar que o artigo 51, IV, do Código de Defesa do Consumidor[3], determina a nulidade de pleno direito das cláusulas que “estabeleçam obrigações consideradas iníquas, abusivas, que coloquem o consumidor em desvantagem exagerada, ou sejam incompatíveis com a boa-fé ou a equidade”.
E nos termos do artigo do artigo 51, § 1º, I e II, do Código de Defesa do Consumidor, é exagerada a vantagem que ofende os princípios fundamentais do sistema jurídico consumerista e que restringe direitos ou obrigações fundamentais inerentes à natureza do contrato, de tal modo a ameaçar seu objeto ou equilíbrio contratual.
Por essas razões, não convence o argumento de que deve prevalecer a autonomia da vontade e/ou a liberdade contratual simplesmente pelo instrumento celebrado entre as partes autorizar a pura e simples resilição do plano de saúde, restando inaceitável que a cláusula impugnada seja relevada. Se uma cláusula contratual é abusiva, o judiciário, ao ser provocado, deve corrigir as ilegalidades existentes, podendo fazê-lo inclusive de ofício.
A abusividade é evidente, trazendo à margem uma realidade injusta, que tende a afastar por completo a boa-fé objetiva determinada pelo Código de Defesa do Consumidor.
Nesse sentido, ao discorrer sobre o tema, CLÁUDIA LIMA MARQUES[4] ainda nos ensina que:
“Boa-fé significa aqui um nível mínimo e objetivo de cuidados, de respeito e de tratamento leal com a pessoa do parceiro contratual e seus dependentes. Este patamar de lealdade, cooperação, informação e cuidados com o patrimônio e a pessoa do consumidor é imposto por norma legal, tendo em vista a aversão do direito ao abuso e aos atos abusivos praticados pelo contratante mais forte, o fornecedor, com base na liberdade assegurada pelo princípio da autonomia privada”
Daí que estamos diante de transgressão às disposições basilares estabelecidas no diploma consumerista e na legislação sobre os planos e seguros privados de assistência à saúde.
Nem mesmo convence a alegação de risco ao equilíbrio econômico-financeiro do contrato, posto que não há qualquer impedimento à suspensão ou cancelamento quando precedido da devida notificação e no prazo estipulado legalmente. Não há dúvidas, assim, de que a opção pura e simples de resilição unilateral, geraria um desequilíbrio inverso, o que a própria legislação quis evitar, ou seja, a Lei nº 9.656/98.
Nesse sentido, impõe-se a conformação das disposições contratuais abusivas ao ordenamento jurídico, para reestabelecer o equilíbrio entre as partes do negócio, especialmente por envolver direitos básicos como proteção da vida e saúde.
Inclusive, a questão – possibilidade ou não de cancelamento unilateral – já foi enfrentada pelo Superior Tribunal de Justiça, o que deu origem ao recurso repetitivo REsp 1846123/SP, que ensejou a consolidação do seguinte entendimento:
“Tema 1082: A operadora, mesmo após o exercício regular do direito à rescisão unilateral de plano coletivo, deverá assegurar a continuidade dos cuidados assistenciais prescritos a usuário internado ou em pleno tratamento médico garantidor de sua sobrevivência ou de sua incolumidade física, até a efetiva alta, desde que o titular arque integralmente com a contraprestação devida”.
No mesmo sentido, decisão deste Egrégio Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo:
“Seguro saúde. Resilição de contrato coletivo empresarial. Sentença que determinou à ré que mantenha a vigência em relação a um de seus beneficiários, enquanto perdurar o tratamento médico a que submetido, mediante o pagamento devido. Beneficiário diagnosticado com Transtorno do Espectro Autista (CID-10:F84.0), em tratamento médico, o qual não pode ser interrompido. Tema 1082 do STJ. Sentença mantida. Recurso desprovido”[5].
“AGRAVO DE INSTRUMENTO. ATO JUDICIAL IMPUGNADO. CONCESSÃO DE TUTELA PROVISÓRIA ANTECIPADA. SEGURO SAÚDE. Resilição unilateral. Pressupostos legais para antecipação dos efeitos da tutela. Atendimento. Cognição superficial da matéria. Consistência da alegação e potencial periclitância para o direito invocado. Prevalência, neste momento processual, da percepção de que a resilição contratual imotivada vulnera a função social do contrato e submete os beneficiários diretos, neles incluídos pessoa em tratamento médico, a grave quadro de potencial risco irreparável ao patrimônio jurídico (saúde). Sem avançar sobre o substrato da causa, nesse momento interessa formar convicção sumária acerca da consistência jurídica da alegação e do “periculum”. Precedentes desta Câmara assinalando a possibilidade de controle concentrado da cláusula contratual que permita a resilição unilateral. Manutenção da decisão recorrida.
NEGADO PROVIMENTO AO RECURSO”[6]
Na hipótese de resilição, a prestadora de serviço deve ser instada a manter a relação jurídica, enquanto perdurar a necessidade de tratamento contínuo do beneficiário.
Como sabido, o plano de saúde tem por escopo a disponibilização de serviços para a preservação e recuperação da saúde do seu contratante e, para tanto, deve assegurar durante todo o contrato, especialmente em sua execução, adequada prestação e continuidade da assistência médico-hospitalar e laboratorial contratada pelos consumidores.
[1]Artigo 39 do CDC: É vedado ao fornecedor de produtos ou serviços, dentre outras práticas abusivas: III – enviar ou entregar ao consumidor, sem solicitação prévia, qualquer produto, ou fornecer qualquer serviço.
[2]Manual de direito do consumidor: direito material e processual. 3ª edição. Rio de Janeiro: Editora Forense; São Paulo: Método, 2014, p. 276.
[3] “Art. 51. São nulas de pleno direito, entre outras, as cláusulas contratuais relativas ao fornecimento de produtos e serviços que: IV – estabeleçam obrigações consideradas iníquas, abusivas, que coloquem o consumidor em desvantagem exagerada, ou sejam incompatíveis com a boa-fé ou a eqüidade;”
[4]“Expectativas Legítimas dos Consumidores nos Planos e Seguros Privados de Saúde e os Atuais Projetos de Lei”, in Revista de Direito do Consumidor, out/dez. 1996, p.74.
[5]TJSP, Apelação Cível nº 1009935-93.2023.8.26.0114, Comarca: Campinas, 1ª Câmara de Direito Privado, Rel. Des. CLAUDIO GODOY, j. em 18/01/2024.
[6]TJSP, Agravo de Instrumento nº º 2050952-56.2017.8.26.0000, Comarca: São Paulo, 9ª Câmara de Direito Privado, Rel. Des. JOSÉ MARIA CÂMARA JÚNIOR, j. em 18/04/2017.
Este texto reflete a opinião do(a) autor(a). Esta série é uma parceria entre o blog do Fausto Macedo e o Movimento do Ministério Público Democrático (MPD). Os artigos têm publicação periódica