Estudo mostra como o bolsonarismo opera como um ‘partido digital’ fora das estruturas partidárias
BRASÍLIA — Diferente de outros grupos ideológicos no Brasil, o bolsonarismo funciona como um “partido digital”: uma estrutura organizada e descentralizada, que disputa poder político e eleitoral à margem das instituições e legislações formais.
A tese consta em uma pesquisa conduzida pelo Cebrap (Centro Brasileiro de Análise e Planejamento), CCI (Centro para Imaginação Crítica) e DX (Instituto Democracia em Xeque) que analisou a atuação digital do bolsonarismo e de parlamentares do Partido Liberal (PL).

O estudo destaca que, embora utilize a estrutura do Partido Liberal (PL), o Partido Digital Bolsonarista (PDB) não se confunde com a legenda e opera como uma entidade paralela, com estratégias próprias e até membros que não estão filiados à sigla presidida por Valdemar Costa Neto.
Os pesquisadores analisaram as redes sociais de todos os parlamentares federais do PL, mas com foco em dez deles de dois grupos: parlamentares tradicionais do Centrão (Josimar Maranhãozinho e Antônio Carlos Rodrigues) e os bolsonaristas com forte presença digital (Abilio Brunini, André Fernandes, Bia Kicis, Caroline de Toni, Chris Tonietto, Eduardo Bolsonaro, Gustavo Gayer e Nikolas Ferreira).
A coleta de dados se deu durante cinco semanas em que a bolha da direita esteve engajada em algum assunto de repercussão nacional. Os períodos analisados compreendem a aprovação do projeto de lei que restringe a saída temporária de presos, a mobilização mal-sucedida para o projeto que endurece regras sobre o aborto, a ascensão de Pablo Marçal nas pesquisas para a Prefeitura de São Paulo, o Sete de Setembro e a reta final das eleições municipais.
O estudo classifica o bolsonarismo como um partido a partir das definições de Max Weber e Antonio Gramsci, segundo quem o partido é uma organização voltada para a disputa pelo poder político. O fato de o chamado PDB “não estar democraticamente institucionalizado não é um impeditivo para o considerarmos um partido político”, diz.
Mas, diferente de outras siglas, o bolsonarismo tem um componente digital: “opera por cadeias de lealdade formadas por influenciadores digitais que podem ser mais ou menos próximos do núcleo do partido digital”, explica o estudo.
Os pesquisadores consideram que compreender o “influenciador político digital” dentro do bolsonarismo é peça-chave para observar a mobilização da base na internet e as tensões geradas no sistema político.
Influenciadores políticos podem ser identificados pelas seguintes características: são criadores ou replicadores de conteúdo; envolvem-se em torno de causas que engajam suas bases digitais; fazem mediação entre o mundo político e o cotidiano; traduzem e trazem novos significados de conceitos fundamentais para o campo políticos; e participam de um ecossistema denso e bem articulado. Alguns deles são celebridades, com milhões de seguidores, enquanto outros são donos de perfis menos visíveis, de alto engajamento e baixo orçamento.
Os pesquisadores identificaram particularidades na atuação dos bolsonaristas em relação ao PL. Uma delas é que o grupo bolsonarista apoiou candidatos de diversos partidos nas eleições de 2024, como Republicanos, PRTB e PSD. O próprio ex-presidente Jair Bolsonaro (PL) chegou a publicar um site com todos os candidatos que ele apoiava, e muitos deles filiados a outras legendas que não a sua.
Em segundo lugar, o PL foi o partido com melhor desempenho nas eleições de 2024 em municípios com mais de 200 mil habitantes, onde o bolsonarismo também é mais presente. Os bolsonaristas também têm uma taxa de governismo (isto é, de alinhamento ao governo federal em votações no parlamento) inferior aos correligionários tradicionais.
Além disso, os deputados do bolsonarismo fazem mais publicações nas redes sociais, têm um nível de audiência superior e travam debates acerca de temas diferentes em relação aos colegas do PL.
Ao padrão de críticas ao Supremo Tribunal Federal (STF), especificamente a Alexandre de Moraes, é o que mais unifica os bolsonaristas, e á uma das pautas que mais gera engajamento, “denotando o caráter anti-sistêmico do PDB”, dizem os pesquisadores.
A análise de engajamento médio por publicação identificou um abismo entre o bolsonarismo e os deputados tradicionais do Centrão. Rodrigues e Maranhãozinho tiveram um engajamento médio de 1,3 mil e 5,2 mil interações por publicação. Enquanto isso, Nikolas teve 537,2 mil, Fernandes, 239,2 mil, e Gayer, 213,5 mil.
“O PDB opera com fronteiras porosas, permitindo a entrada e saída constante de atores — o que exige formas alternativas de controle e alinhamento. A emergência de novas lideranças de direita, como Pablo Marçal e, mais recentemente, Gusttavo Lima, evidencia a instabilidade e a possibilidade constantes de deserção da base”, diz o estudo.
“Em vez de estatutos ou programas, o que sustenta o grupo é a lealdade à figura central e a circulação de códigos morais e simbólicos compartilhados. Influencers e parlamentares funcionam como nós de uma rede que conecta o núcleo à militância digital. Quem rompe com essa lógica é excluído do ecossistema. Casos como os de (Carlos Alberto) Santos Cruz, Alexandre Frota e Joice Hasselmann mostram como o sistema pune simbolicamente os dissidentes — com ostracismo, ataques coordenados e perda de visibilidade”.
João Guilherme Bastos dos Santos, diretor de tecnologia e estudos temáticos do Instituto Democracia em Xeque, lembra o fato de Bolsonaro ter passado boa parte de seu mandato (especialmente em 2020 e 2021) sem partido. Enquanto isso, quem disputava a opinião publica, fazia pressão sobre no Congresso e organizava a militância as manifestações eram parlamentares independentes dos partidos a que estavam filiados.
“Os padrões bolsonaristas de ação nas redes sociais não batem necessariamente com o restante do partido. Eles têm uma articulação interna, uma relação parasitária. Eles ‘hackeiam’ o partido para instrumentalizá-lo em prol das finalidades deles”, diz ele.
Questionado sobre o que teria permitido ao bolsonarismo adquirir tal característica digital, Leonardo Martins Barbosa, doutor em ciência política pela Uerj e pesquisador do Cebrap, diz que esse agrupamento político “já nasceu digital”, o que o diferencia de outros partidos tradicionais.
“O bolsonarismo faz um investimento intencional nas redes sociais. Ele age nos ecossistemas digitais, organiza grupos nos serviços de mensagens, coordena suas ações em diferentes mídias, se articula digitalmente com indivíduos e organizações que vão muito além dos contatos restritos à política institucional. Assim, em um contexto de crescimento das redes sociais, ele encontrou um modelo de organização flexível que o permite organizar e mobilizar digitalmente sua base”, afirma Barbosa.
Para ele, outra grande diferença entre o bolsonarismo e a direita tradicional no Brasil é sua capacidade de mobilização de massas. “É a primeira vez na história do país que temos um partido conservador com esse tipo de apelo”, declara.