Leia diálogos de policial condenado por extorsão com desembargador da venda de sentenças
A Polícia Federal recuperou uma sequência de diálogos via WhatsApp do desembargador Ivo de Almeida, do Tribunal de Justiça de São Paulo, que indicam seu empenho em atender a pedidos – fora dos autos – de um ex-policial, o ‘Ervilha’, condenado por crime de extorsão a receptadores de cargas roubadas. Por meio dos dados que solicitou ao magistrado, Marcos André de Almeida, ex-investigador da Polícia Civil paulista, tentou interferir em ação penal da qual era réu, segundo a PF. A defesa do magistrado nega ilícitos.
O Estadão busca contato com ‘Ervilha’. O espaço está aberto.

Segundo a PF, o desembargador teria orientado ‘Ervilha’ sobre as ‘melhores estratégias defensivas’, inclusive para convencer um outro desembargador, relator do processo criminal em curso contra ele na ocasião, em 2019.
Os diálogos capturados indicam que Ivo de Almeida também fez consultas à base de dados do Conselho Nacional de Justiça em busca de informações sensíveis que poderiam ser úteis a ‘Ervilha’.
A investigação aponta que o ex-policial solicitou informações sobre a situação prisional de ‘determinados indivíduos’, dentre os quais duas testemunhas de acusação arroladas pelo Ministério Público de São Paulo na ação proposta contra ele e, ainda, de uma vítima.
A suposta prática de advocacia administrativa por parte do desembargador consta dos autos da Operação Churrascada, investigação sobre venda de sentenças na Corte paulista. Ivo de Almeida foi denunciado pela Procuradoria-Geral da República na última quarta, 18, por corrupção passiva, associação criminosa, lavagem de dinheiro e advocacia administrativa.
O criminalista Átila Machado, que defende o desembargador, afirma que ‘não restou provada a venda de sentenças’. Ele classifica a investigação federal de ‘tendenciosa’. (LEIA ABAIXO A ÍNTEGRA DA MANIFESTAÇÃO DO ADVOGADO).
O desembargador está afastado das funções desde junho do ano passado, por ordem do ministro Og Fernandes, relator da Operação Churrascada no Superior Tribunal de Justiça.
“Ivo de Almeida patrocinou indiretamente interesses do então policial civil Marcos André de Almeida, vulgarmente conhecido como ‘Ervilha’, em processos penais nos quais este havia sido acusado de praticar extorsões contra receptadores de cargas roubadas”, afirma a PGR.

Demitido dos quadros da Polícia Civil do Estado de São Paulo, ‘Ervilha’ havia sido denunciado pela prática do crime previsto no artigo 318 do Código Penal, depois de ter exigido a quantia de R$ 500 mil para deixar de prender integrantes de uma quadrilha especializada em roubo de cargas e maquinário pesado.
Segundo a denúncia da PGR, Ivo de Almeida se valeu da qualidade de desembargador do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo e do acesso que possuía às bases de dados dos sistemas da Corte paulista, notadamente dos sistemas de tramitação processual.
A Operação Churrascada indica que pelo menos três vítimas de extorsão de ‘Ervilha’ eram investigadas em procedimentos paralelos conduzidos pela Polícia Federal em Uberlândia, Minas.
Os crimes atribuídos a ‘Ervilha’ foram descobertos e ele foi denunciado pelo Ministério Público de São Paulo. No curso da ação penal, o ex-policial civil procurou o desembargador por diversas vezes, solicitando informações sobre a situação prisional de testemunhas de acusação, réus de ação penal em Minas, e também de uma vítima.
“É evidente que ao buscar informações sobre a vítima de seus crimes e as testemunhas de acusação, o policial civil buscava interferir na regular tramitação de sua ação penal”, afirma a PGR.
Segundo a acusação, considerando que uma eventual ação penal contra as testemunhas que poderiam implicar ‘Ervilha’ tramitaria em Minas, ele não tinha acesso às informações. Por isso, socorreu-se de Ivo de Almeida.
Os diálogos recuperados pela Operação Churrascada se deram em janeiro, fevereiro e setembro de 2019, em setembro de 2021 e em junho de 2022.
“Bom dia, doutor. Como conversamos ontem, por favor verifique por gentileza os mandados de prisões dos réus abaixo (…) O principal é o Francisco. Muito obrigado”, escreveu ‘Ervilha’ em 15 de janeiro de 2019.
Ivo buscou as informações junto às autoridades de Minas. Com a insistência de ‘Ervilha’, o magistrado também consultou as bases de dados do Conselho Nacional de Justiça. “Reitere-se que o objetivo era o de revelar ao réu de uma ação penal informações sobre a vítima e as testemunhas de acusação”, acentua a PGR.
O desembargador recorreu ao CNJ por sugestão do ex-policial. “Será que o senhor não consegue levantar o mandado de prisão preventiva através do CNJ…”
“Não tinha pensado no CNJ”, respondeu Ivo de Almeida, em conversa de 31 de janeiro.
Depois de pesquisar junto ao acervo do Conselho Nacional de Justiça, o desembargador revelou o resultado e disse a ‘Ervilha’ que iria cobrar a ‘captura de MG’, provável referência à Divisão de Capturas da Polícia Civil mineira.
‘CNJ nada consta’, disse o magistrado, em 4 de fevereiro de 2019. ‘Vou dar uma cobrada na captura MG.’
‘Dr vê se consegue aquele mandado e contramandado do Francisco’, insiste ‘Ervilha’.
Os investigadores da Operação Churrascada destacam ‘a informalidade de tratamento do investigador de Polícia Civil, réu em ação penal por concussão, no diálogo com o desembargador’.
Condenado, enfim, o já ex-policial interpôs recurso de apelação e voltou a recorrer ao desembargador que se comprometeu sucessivamente a tratar do assunto com os desembargadores que atuaram no feito.
‘VAMOS VER O QUE ELE ME FALA’
‘É o dr. Lauro Mens de Melo’, informou em 21 de setembro o ex-investigador, em referência ao desembargador da 6.ª Câmara de Direito Criminal do TJ, relator de sua apelação contra a condenação. ‘O senhor tem um bom relacionamento com ele. Vi que parece em seus julgamentos ser justo.’
‘Vamos ver o que ele me fala’, disse Ivo de Almeida.
Próximo ao julgamento de seu recurso, ‘Ervilha’ pergunta ao desembargador se os integrantes da Câmara, de fato, abririam um link do depoimento de uma testemunha junto à Corregedoria da Polícia Civil.
‘EXPLICA PRO DESEMBARGADOR QUE É PROVA NOVA’
“Apareceu lá uma testemunha que não foi ouvida em juízo e falou muito a respeito mostrando que quem tirou ele da cadeia mesmo, aquele acordo informal, foi o Ministério Público”, disse ‘Ervilha’. ‘Nós vamos pôr o link da audiência completa e o link da parte que ele cita bem isso aí. O senhor sabe me dizer se (os desembargadores) chegam a ver as imagens do link tudo mais?’
Ivo recomendou. “Você pode pôr o link, mas eu reproduziria por escrito o trecho, né? Você põe o link que é prá mostrar autenticidade e reproduz o trecho por escrito no ponto principal, tá, ali na petição.”
O desembargador da Churrascada enfatizou. “Você tem que mostrar nessa petição, você tem que explicar pro desembargador que é uma prova nova que não tinha, ela não estava disponível em primeiro grau ainda, quando na primeira instância, quando o processo estava em andamento, tá? Senão ele não considera, entendeu?”
Ivo reafirmou que se encontraria pessoalmente com o desembargador do caso para tentar influenciar o relator. Nessa conversa, eles fazem alusão a algum caso anterior em que outro relator teria sido mais ‘acessível’ para favorecer o ‘time’ de ‘Ervilha’ – provavelmente policiais civis implicados em outras ações penais, segundo a Procuradoria-Geral da República.
Em 30 de setembro, ‘Ervilha’ faz novo contato com o desembargador. ‘Boas. Estou em sessão, mais tarde te chamo’, respondeu Ivo de Almeida. ‘Não esquece de mim, não, doutor’, pediu o ex-policial.
Às 22h37 de 30 de setembro, o desembargador retornou. “Ô Marquinho, tudo bem? Não, esqueço não. Já deixei recado, ele ficou de me ligar, tá? E eu vou estar com ele na semana que vem também, tá bom? E vamos ver o que que ele me fala, porque o outro já estava mais acessível, entendeu?”
O desembargador procurou tranquilizar ‘Ervilha’. “Mas vamos ver o que está acontecendo, vamos tentar, tá bom? Aí te dou uma posição, valeu?”
Ivo de Almeida demonstra que estava mantendo sob monitoramento o recurso de ‘Ervilha’ na Câmara Criminal. ‘Eu não vi entrar nada não do que você falou do novo, heim? Dá uma conferida, vê se já juntaram, tá bom? Um abraço.”
‘VAMO PRO PAU, NÉ DOUTOR’
Segundo a PF, ‘Ervilha’ chegou a mandar cópia de sua apelação a Ivo de Almeida, que se comprometeu a examiná-la e, de fato, sobre ela fez apontamentos.
Com a manutenção de sua condenação, o ex-policial procurou novamente o desembargador, ‘dessa vez para buscar melhor sorte na admissibilidade de recursos especiais e extraordinário’ – perante os tribunais superiores.
Mais uma vez, Ivo de Almeida se comprometeu a influenciar outro magistrado, dessa vez o desembargador-presidente da Seção de Direito Criminal à época. “Falo sim.”
‘Ervilha’ pede ao desembargador que faça uma análise de seu recurso. “Pra gente não ter que subir por Brasília, já faz a apreciação por aí, vê se consegue por aí, doutor.”
E se despede. “E vamo que vamo (…) vamo pro pau, né doutor.” (Eram 10h35 de 14 de junho de 2022)
COM A PALAVRA, O CRIMINALISTA ÁTILA MACHADO, QUE REPRESENTA O DESEMBARGADOR IVO DE ALMEIDA
“A denúncia oferecida pelo Ministério Público Federal é um rematado absurdo. Restou sobejamente provado que nunca houve venda de sentença ou qualquer tipo de favorecimento por decisão judicial proferida pelo desembargador Ivo de Almeida. Inclusive, temos como prova cabal da inexistência de tais condutas o próprio rol de testemunhas que o Ministério Público Federal indicou: ninguém relacionado aos fatos imputados, apenas policiais federais que conduziram uma investigação absolutamente tendenciosa e que nunca presenciaram, até porque nunca existiram tais fatos.
O Conselho de Controle de Atividades Financeiras (COAF) verificou depósitos, em espécie, no montante de R$ 641 mil, refletidos em conta bancária mantida pelo desembargador em conjunto com sua esposa.
Essa movimentação financeira ocorreu no período de fevereiro de 2016 a setembro de 2022, ou seja, ao longo de 79 meses, o que resulta numa movimentação média mensal de R$ 8.113,00, valor absolutamente modesto e proporcional às atividades comerciais desenvolvidas por sua esposa, com a qual é casado há mais de 44 anos e que desde jovem desempenha atividade comercial formal, bem como por dois de seus três filhos.
Tais depósitos em espécie, realizados em regra apenas uma vez ao mês, tinham por objetivo ‘cobrir’ a conta corrente do casal (magistrado e esposa) após o pagamento das faturas mensais dos cartões de crédito do grupo familiar composto por cinco pessoas, a saber: o desembargador, esposa e três filhos, cada qual com seu cartão de crédito, resultando um gasto mensal médio de R$ 1.500,00 para cada cartão de crédito.”