Promotor vê ‘vastidão da sonegação’ e liga fraude fiscal a lavagem de dinheiro de facções do crime
A força-tarefa que caça sonegadores em São Paulo recuperou R$ 4 bilhões para os cofres públicos a partir de uma sequência de operações realizadas em 2024 contra ‘fraudes fiscais estruturadas’ patrocinadas por 232 empresas e 90 grupos econômicos. “Infelizmente, a vastidão em situações de sonegação é enorme no Estado de São Paulo”, atesta o promotor Luiz Henrique Dal Poz, que integra o Grupo de Atuação Especial de Combate ao Crime Organizado (Gaeco) e é um dos representantes do Ministério Público estadual no comitê que mira a grande sonegação.
Dal Poz, um veterano da Promotoria, revela sua preocupação com o avanço de facções do crime no ambiente da sonegação. “Há casos em que a fraude fiscal tem conexão com lavagem de dinheiro por parte de organizações criminosas.”
O promotor destaca que ‘as facções criminosas estão voltadas à lavagem de dinheiro fruto dos ilícitos’.
“Boa parte dessa lavagem, estruturada nessas organizações criminosas, vem carregada de um expediente de sonegação enorme. Falamos em bilhões e bilhões que deixam de ser repassados ao erário.”
O grupo que espreita sonegadores é uma força-tarefa permanente. Ele é formado pelo Ministério Público, Secretaria da Fazenda e Procuradoria-Geral do Estado. Sua meta é rastrear e buscar dinheiro sonegado.
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Em que medida os crimes de sonegação fiscal, de fraude fiscal estruturada, configuram crime antecedentes para lavagem de dinheiro? É sempre esse o ‘modus operandi’, ou não necessariamente?
No nosso segmento de atuação, sim. Temos percebido que as facções criminosas, inclusive, estão voltadas à lavagem de dinheiro fruto dos ilícitos. E boa parte dessa lavagem, estruturada nessa organização criminosa, vem carregada de um expediente de sonegação enorme. Falamos em bilhões e bilhões que deixam de ser repassados ao erário.
O balanço das ações de 2024 indica a recuperação de valores bilionários?
O Comitê recuperou R$ 4 bilhões em tributos a partir de uma atuação contra as fraudes fiscais estruturadas, visando 232 empresas e 90 grupos econômicos. Em 2025, já ocorreram novas operações. Infelizmente, a vastidão em situações de sonegação é enorme no Estado de São Paulo. Os números são muito significativos. O valor de R$ 4 bilhões é sem a inserção de benefícios de negociação. Aqueles com a inclusão desses benefícios chegam a R$ 2,3 bilhões. Nós atuamos numa vastidão de segmentos, e essa é a essência do comitê: tentar abranger o maior número de segmentos possível não só em relação à recuperação de ativos, mas também para um efeito didático em relação à sonegação fiscal.
Qual é a estratégia?
Queremos coibir a concorrência desleal que a sonegação acarreta. As empresas sonegadoras podem praticar um preço melhor e, por consequência, lesam aquelas em conformidade fiscal. Em 2024, atuamos com 232 empresas e em torno de 90 grupos econômicos. Isso tudo num montante de investigação, de negociações e aferições de maneira geral, na casa de R$ 24 bilhões. Vamos continuar agindo. Este ano já desencadeamos novas operações decorrentes de procedimentos nascidos em 2024.
Como opera o comitê?
É como se fosse uma força-tarefa permanente. Cada instituição preserva suas atribuições. A Fazenda, com fiscalização, acompanhamento, imposição de regime diferenciados, aquelas situações que exigem essas providências da Fazenda no sentido de coibir e recuperar ativos para o Estado. A Procuradoria-Geral do Estado visando a uma questão recuperatória, patrimonial. E o Ministério Público focado mais na questão repressiva sobre o delito de sonegação fiscal e outros que mais frequentemente permeiam a prática, como associação criminosa e lavagem de dinheiro. O detalhe é que, apesar de preservadas as atribuições, não há nenhuma inovação de postura institucional, mas sim um facilitador na atuação conjunta. Ou seja, aquela demanda que exigiria interlocuções entre as instituições é hoje posta numa mesma mesa, no mesmo conjunto de reflexão e, principalmente, numa mesma tomada de decisões, com a mesma definição de estratégias.
Isso torna mais célere o cerco à sonegação?
Eu poderia fazer um paralelo, sem grande precisão, dizendo que um caso que demoraria um ou dois anos do começo até seu desfecho, fosse uma ação cível da Procuradoria, uma providência da Secretaria da Fazenda, ou ações ou providências penais do Ministério Público, no âmbito do Comitê de Recuperação de Ativos não passaria de seis meses. Esse espírito de cooperação, essa horizontalidade, propicia grande eficiência e um resultado maior ainda.
Os srs. miram setores da economia ou empresas? Onde a sonegação ganha força?
Não existe um segmento a ser enfrentado. O que analisamos é o que acontece entre os segmentos com base nas curvas numéricas, no que o sistema fazendário nos apresenta. É muito comum fazermos análises muito mais profundas para tomarmos providências em relação a cada caso. Há num primeiro momento a questão da valoração, pois o montante é crucial para a sobrevivência do Estado e a prestação dos serviços essenciais à sociedade. Mas também são feitas análises, com a observação de curvas de inadimplência e do que está ocorrendo com determinado segmento.
O comitê age em cooperação com órgãos federais?
Os membros do comitê são natos, mas a própria resolução que o criou já prevê a possibilidade, ou a necessidade, eu diria, da atuação de várias instituições, tanto do município como do Estado e das federais. Para um viés operacional, sempre contamos com a eficiência das Polícias Civil e Militar. Com certa frequência, aquele expediente de sonegação envolve tributação estadual, municipal e federal. É quando há convergência de medidas, de estratégias, envolvendo as procuradorias do Município e do Estado, a da Fazenda Nacional, a Receita Federal.
Qual o grau de sofisticação técnica da sonegação? Os grupos econômicos recorrem a contadores, por exemplo?
São dois momentos bem distintos. O primeiro é a fraude na sonegação. E aí, sim, entram os experts da contabilidade, o mundo empresarial se movimenta para tentar iludir o Fisco. Mais comum agora é a fraude em relação ao destino desse numerário. As pessoas se valem de empresas não operacionais, ou operadas pelo que chamamos de interposta pessoa, o laranja. Aí sim, a fraude vem na ocultação patrimonial, naquela determinada empresa forjada para simplesmente dever tributo. Então, ela escancara uma dívida milionária, às vezes literalmente bilionária, e essa dívida é posta para ser cobrada pelo Estado, que não consegue localizar nada. Por quê? Pela fraude mais sofisticada, a de ocultação patrimonial. Ela envolve outras empresas e laranjas que se incumbem de pulverizar esse dinheiro. Isso dificulta a nossa apuração.
Essa artimanha pode incluir empresas constituídas fora do país?
Com certeza.
E como a Promotoria consegue ligar as pontas para buscar esse patrimônio e garantir o recolhimento do tributo?
É um trabalho de inteligência, de cruzamento de dados e de extrema cooperação. Daí a importância da parceria com outras instituições. Se o crime evolui, procuramos sistemas e plataformas para nos auxiliar. O próprio Ministério Público está buscando novos métodos de investigação, novos sistemas, interagindo com a inteligência artificial e plataformas voltadas a dar ainda mais velocidade e dinâmica nessa recuperação.
O sistema tributário é criticado por sua complexidade. Os empresários dizem ter custos para estar em dia com o recolhimento de impostos. Qual a sua avaliação?
É verdade. Especificamente, por exemplo, em relação ao ICMS, existe uma multiplicidade de regulamentos que oscilam de Estado para Estado, e isso pode gerar uma eventual confusão. Mas dá para afirmar com uma certa segurança que não é esse o fato gerador da sonegação fiscal. Quem sonega tem absoluta consciência e voluntariedade do que está fazendo. Do lado fiscal cível, a Procuradoria se incumbe. Na parte criminal, temos o cuidado de analisar levando em conta um eventual acidente de leitura em relação ao manuseio desse imposto. Até pode acontecer de alguém ser responsabilizado por conta da complexidade do lançamento, mas nós, operadores do Direito, identificamos isso facilmente. Um equívoco contábil é muito diferente daquela contumácia, daquele dolo intenso, daquela coisa sistêmica. Também visualizamos com muita facilidade a fraude que leva à sonegação.
Qual a destinação dos bilhões recuperados?
Vão para o custeio das atividades essenciais do Estado. É ele quem vai gerir esses recursos recuperados. Nós fazemos estudos para mostrar o dano causado pela sonegação. Me refiro à segurança pública, saúde, educação, à atividade do Estado de modo geral. A sobrevivência do Estado depende da questão tributária. Na medida em que o Estado é lesado, há um comprometimento dessa prestação de serviço. E não adianta fazer aquela confusão dizendo que o Estado não dá uma destinação adequada, aí é outra questão. É um tema que passa por escolha eleitoral, por responsabilização por improbidade administrativa, por assuntos de gestão. Agora, que o Estado precisa da arrecadação para continuar prestando serviços essenciais, isso é indiscutível.
Na hipótese de um cidadão se deparar com um caso que possa configurar sonegação fiscal, ele pode procurar o comitê? Qual o caminho que deve seguir?
Ele pode procurar qualquer uma das instituições que compõem o comitê, via os canais de comunicação que estão abertos para manifestação.
Há espaço para composições?
É importante dizer que, para o contribuinte e para o próprio sonegador, a presença do comitê é muito interessante. Às vezes, ele se vê numa situação, causada pela própria conduta, de responder às providências tomadas pelas instituições que formam o comitê e, às vezes, há até uma colidência de medidas que precisamos calibrar, mas todas absolutamente pertinentes. O crime deve ser apurado e responsabilizado, o patrimônio deve ser recuperado e as medidas para evitar essa atividade empresarial devem ser tomadas. Quando o sonegador se depara, na mesa de negociação, com integrantes da força-tarefa, consegue perceber a consequência dessas providências e até a possibilidade de uma composição. Por isso, esses valores significativos, não obtidos no passado, vêm surgindo como fruto da segurança percebida pelo sonegador. Ele se orienta juridicamente com sua assessoria técnica e é encaminhado para essa composição, que vale muito a pena.