Immanuel Kant e a fraude do INSS: dignidade humana exaurida
Em abril deste ano, a Polícia Federal (PF) e a Controladoria-Geral da União (CGU) deflagraram a “Operação sem desconto”, na qual ficou evidenciado esquema de fraude envolvendo o Instituto Nacional de Seguridade Social (INSS) e associações previdenciárias, em que vitimou milhares de aposentados e pensionistas por meio de descontos ilegais em seus benefícios.
Nessa operação, 11 (onze) entidades foram alvo de medidas judiciais, sendo apreendidos carros de luxo avaliados em milhões de reais, objetos de valor, além de vultosas quantias em espécie, inclusive dinheiro estrangeiro, na casa dos envolvidos.
Estima-se que foram desviados R$ 6,3 bilhões de reais entre os anos de 2019 e 2024. De acordo com as investigações, o INSS realizava deduções nas folhas de pagamento de seus aposentados e pensionistas, correspondentes ao valor mensal da filiação, repassando-as para associações ou sindicatos conveniados. Segundo relatório da CGU, quase a totalidade dessas filiações – cerca de 97,6% – era irregular ou ilegal, realizadas sem a ciência ou o consentimento dos beneficiários, os quais tiveram documentos ou assinaturas falsificados para assegurar suas vinculações.
Essas entidades, por si sós, não são suficientes para levar adiante todo esse esquema bilionário. As investigações apontam que servidores e políticos estejam envolvidos, em razão da facilitação ou mesmo do encobrimento das fraudes. Até o ano de 2024, o órgão acumulava mais de 130 mil reclamações formais acerca de descontos ilegais, contudo, medidas contundentes para coibi-los somente ocorreram após a eclosão da operação policial, como, por exemplo, suspensão dos descontos e respectivos repasses.
Instituições que, em tese, seriam criadas para representar e defender os direitos e interesses dos seus filiados – aposentados e pensionistas, pessoas em sua maioria vulneráveis – antagonizaram o propósito de sua existência para, de modo vil e repugnante, alcançarem interesses próprios, egoísticos e criminais.
Trazendo à baila os ensinamentos do filósofo alemão Immanuel Kant (1724-1804), convém rememorar a ideia do imperativo categórico, que norteou toda a formação do conceito de dignidade humana, o qual constitui um dos fundamentos da República Federativa do Brasil, disposto no art. 1º, III, da Constituição de 1988.
Kant define o imperativo categórico como lei moral suprema e sua formulação central é descrita na seguinte frase: “Age apenas segundo uma máxima tal que possas ao mesmo tempo querer que ela se torne uma lei universal”. Em outras palavras, Kant estava dizendo que, se uma determinada ação pode ser universalizada, repetida por qualquer pessoa de modo a não causar malefícios aos outros, essa ação é moral e deve ser perquirida. Do contrário, se uma ação, ao ser universalizada, promove prejuízos, depreende-se que ela seja imoral e, por conseguinte, não deve ser reproduzida.
Outra formulação do imperativo categórico encontra-se na seguinte frase: “Age de tal maneira que uses a humanidade, tanto na tua pessoa como na de qualquer outro, sempre ao mesmo tempo como um fim, e nunca simplesmente como um meio.” Essa é a ideia intrinsicamente ligada ao conceito de dignidade humana. Para Kant, o ser humano possui valor absoluto, sendo um fim em si mesmo. Portanto, não cabe ser instrumentalizado ou utilizado como meio para se atingir qualquer fim.
A terceira e última formulação do imperativo categórico é baseada no reino dos fins: “Age segundo máximas de um membro legislador universal em um possível reino dos fins.” De maneira hipotética, Kant idealiza um mundo ideal onde cada ser humano, sendo racional, seria capaz de criar leis morais universais, tornando-se legisladores e súditos ao mesmo tempo desse reino.
Após essa breve síntese do imperativo categórico de Kant, vocês conseguem identificar o que fizeram com os aposentados e pensionistas, vítimas da fraude do INSS? A resposta é simples: foram tratados como meios. Exauriram a dignidade humana dessas vítimas, que tiveram suas vidas instrumentalizadas, vilipendiadas, para que criminosos alcançassem seus fins escusos.
Ainda em Kant, abstrai-se de sua deontologia a proposição do dever-ser. Trata-se da ética baseada no dever moral, em que pessoas deveriam agir moralmente pelo simples fato de ser um dever, guiadas por princípios racionais, universais, que refletem o bem comum, sem quaisquer interesses, expectativas ou resultados.
Diante dos argumentos apresentados, percebe-se que Kant está morto. Sim, as instituições declararam o óbito de suas ideias. Servidores, políticos, associações e sindicatos têm tratado a administração pública como se fosse uma propriedade particular. Não há interesse público, não há bem comum, mas apenas esquecimento. Esquecimento dos princípios constitucionais da legalidade, moralidade pública, probidade administrativa, boa fé. Amnésia com aquilo que é do outro e poderia ser “nosso”; afã e disposição em reter àquilo que não lhes pertence. A ação desses criminosos se “universalizou” no interior do INSS. Mas, ao universalizar o que é imoral, ao contrário de alcançar o “reino dos fins”, ergueu-se o reino dos maus.
Este texto reflete única e exclusivamente a opinião do(a) autor(a) e não representa a visão do Instituto Não Aceito Corrupção (Inac). Esta série é uma parceria entre o Blog do Fausto Macedo e o Instituto Não Aceito Corrupção. Os artigos têm publicação periódica