As (ainda) insuficientes estratégias de inclusão de gênero na política
A tramitação do PLP 112/21, que visa unificar a legislação eleitoral brasileira, de forma a sistematizá-la e trazer-lhe coerência, apresenta diversos pontos de preocupação a demandarem intensa concentração e combatividade da sociedade civil.
Não obstante os potenciais ganhos da iniciativa, e os inúmeros pontos positivos consagrados na proposta, há aspectos bastante preocupantes, a colocarem em risco a própria democracia.
Neste ensaio, trataremos brevemente do tratamento não efetivamente inclusivo da participação política de indivíduos do gênero feminino.
Importante consignar, de saída, a existência – inegável, não obstante a insólita negação de alguns – de diversos grupos de pessoas que se inserem no conceito de ‘mulher’: aqueles indivíduos que nasceram com a referida designação biológica; as travestis; as transexuais e as transgêneras.
O artigo 884, §1º do projeto, que conceitua violência política contra mulheres, lança mão da expressão restritiva “por razão de sexo” – a qual pode, ao invés de trazer proteção efetiva e reconhecimento jurídico da condição de vulnerabilidade desse grupo, excluir uma parte dele.
Nesse sentido, imprescindível a sua substituição por “em razão de gênero”, mais abrangente, alcançando todos os referidos grupos, e de forma a aprimorar o texto atualmente vigente da Lei 14.192/21, que trata da prevenção, repressão e combate à violência política contra a mulher, e garantir a sua participação em debates eleitorais proporcionalmente ao número de candidatas às eleições proporcionais.
O Tribunal Superior Eleitoral, ainda em 2018, manifestou-se pela conveniência de tal substituição, ao reconhecer, no âmbito da consulta 0604054-58.2017.6.00.0000, que o termo “sexo” utilizado no artigo 10, §3º da Lei 9.504/97 (que estabelece um mínimo de 30% para candidaturas), refere-se, em verdade, a gênero, alcançando inclusive mulheres travestis e transexuais, ao argumento de que “ a construção do gênero representa fenômeno sociocultural que exige a abordagem multidisciplinar a fim de conformar uma realidade ainda impregnada por preconceitos e estereótipos geralmente de caráter moral e religioso aos valores e garantias constitucionais”.
Outro ponto digno de crítica é ausência de previsão específica quanto aos sujeitos ativos do crime de violência política contra a mulher, no sentido de incluir expressamente as pessoas jurídicas/instituições (inclusive partidos políticos): não é incomum que figurem eles na posição de autores, dependendo a sua responsabilização, porém, de expressa previsão legal.
Fundamental, da mesma forma, previsão de especial valor a ser outorgado à palavra da vítima, tendo em vista a natureza muitas vezes subterrânea, escusa e dissimulada da violência.
O aspecto mais alarmante consagrado no texto, porém, guarda relação com o (absolutamente insuficiente) percentual de vagas reservadas às mulheres nas eleições proporcionais: o artigo 729, III (remunerado para 709, IV) condicionava a regularidade dos partidos, dentre outros aspectos, à demonstração de ao menos 30% de candidaturas femininas.
O artigo 200, §1º (181, na versão do SF) determina o mínimo de 30% e máximo de 70% para candidaturas de cada gênero, e foi objeto de proposta de alteração pelo relator da CCJ do Senado, que veda, caso de não preenchido esse percentual mínimo, sua ocupação por pessoas do gênero masculino, devendo ficar ‘vagas’, com afastamento de qualquer penalidade (ainda que reconhecida fraude).
A proposta, em última análise, põe fim a cota de 30% de candidaturas femininas, ao argumento de que “cota obrigatória de candidaturas nas eleições proporcionais tem acarretado situações notoriamente desarrazoadas” …
A senadora Eliziane Gama propôs a emenda 102, determinante da reserva, mais que de candidaturas, de 30% das cadeiras nas Casas Legislativas para mulheres.
Foi ‘adaptada’ pelo relator, e consagrada no artigo 145, §1º do substitutivo, que garante 20% das cadeiras pelo prazo de 20 anos, com a extinção, porém, do mínimo de candidaturas femininas: “Como estamos pondo fim à exigência de percentual mínimo de candidaturas de cada sexo, a medida ora proposta constitui punição às legendas que não se comprometerem não apenas a registrar, mas também a promover e financiar adequadamente as respectivas candidaturas femininas às eleições proporcionais”.[1]
Nesse particular, a realidade se impõe como referência obrigatória, inafastável: considerado o Congresso Nacional no período de 2019 a 2023, apenas 13 dos 81 senadores eram mulheres, e 87 dos 513 deputados – o equivalente a percentuais de 16,05 e 19,69, respectivamente[2].
A irrelevante representatividade desse grupo – que, conforme o Censo de 2022, compõe 51,5% da população brasileira -, evidencia a necessidade de medidas inclusivas mais arrojadas, corajosas e efetivas.
Para tanto, defendemos, com Freidenberg[3], a reserva de percentual de 50% dos assentos legislativos às mulheres, a ser paulatina e escalonadamente conquistado, como forma de superação de barreiras historicamente cultivadas e ainda culturalmente arraigadas, com vistas a alcançar efetiva igualdade material:
“Ainda quando o direito a votar e ser votada está constitucionalmente reconhecido e exista algum avanço na dimensão formal da representação política, as mulheres não competem nas mesmas condições que os homens. A avaliação da representação formal sugere que o desenho ideal é aquele que conta com: paridade vertical (50%) no registro de candidaturas nas eleições gerais para todos os cargos, paridade horizontal – para distritos uninominais – e paridade transversal, exigindo-se que se insiram mulheres na cabeças das listas.” (2022, p. 37)
Ainda que não se chegue – por enquanto – a esse almejado patamar, imperioso que o atualmente vigente, de 30%, seja regiamente observado, sem qualquer espaço para relativizações ou anistias retroativas – como desafortunadamente tem-se visto no nosso país.
[1] Disponível em https://www.anpr.org.br/images/2025/03/DOC-SF259815017478-20250326_assinado.pdf
[2] INTER-PARLIAMENTARY UNION. Women in national parliaments: Situation as of 1st June 2022. Disponível em: https://data.ipu.org/women-averages?month=6&year=2022.
[3] FREIDENBERG, Flávia. La Construcción de Democracias Paritarias: reglas de juego, actores críticos, y resultados (in)esperados. Universidad Nacional Autónoma de México. Instituto de Investigaciones Jurídicas. Instituto Nacional Electoral. 2022. Disponível em https://archivos.juridicas.unam.mx/www/bjv/libros/15/7158/4.pdf. Tradução da autora.
Este texto reflete única e exclusivamente a opinião do(a) autor(a) e não representa a visão do Instituto Não Aceito Corrupção (Inac). Esta série é uma parceria entre o Blog do Fausto Macedo e o Instituto Não Aceito Corrupção. Os artigos têm publicação periódica