Situações ou leis complicadas?
Uma ação de paternidade em que o suposto pai mora do lado de lá do Atlântico. Pensão alimentícia que ficou pendente e o pai não reside mais no país estando em lugar incerto e não sabido. Um divórcio entre um brasileiro residente aqui e uma francesa que já retornou para o Sul da França; uma guarda de filhos em disputa, sendo a mãe brasileira e o pai inglês, cada um vivendo em seus países. Situações complicadas! Muita gente atesta: quando ações envolvem a justiça brasileira e a de outros países, a morosidade dos trâmites dos documentos desanima e muitas vezes pode até impossibilitar uma solução.
Mas quem já passou por isso, ou está nesse momento em situação similar, tem motivos para se animar. O Brasil tornou-se o 58º membro da Convenção de Haia sobre a Obtenção de Provas. Com esse nome pomposo, o benefício tem de ser real, e é: o acordo facilita a obtenção de provas no exterior em processos judiciais das áreas civil e comercial, agilizando as resoluções.
Para entender do que se trata, vale voltar no tempo. Haia é uma cidade da Holanda, país com forte tradição de neutralidade política. Assim, não por acaso sediou as duas famosas Convenções de Haia, as de 1899 e 1907, ambas sobre Resolução Pacífica de Controvérsias Internacionais. É verdade que depois delas aconteceram duas estrondosas guerras mundiais, mas o legado de intenções pacíficas vicejou.
Por exemplo, no ano de 1993, a Convenção relativa à Proteção das Crianças e Cooperação em matéria de Adoção Internacional foi concebida e suas regras passaram a vigorar no Brasil em 1995. Outra, sobre os Aspectos Civis do Sequestro Internacional de Crianças, que passou a valer no Brasil a partir do decreto 3.413, de 14 de abril de 2000, prevê as medidas judiciais necessárias para a restituição ao país de residência habitual, as crianças – ou menores – ilicitamente transferidas para o território brasileiro. Todas essas convenções gravitam em torno da Conferência de Direito Internacional Privado de Haia, uma organização intergovernamental cuja missão estatutária é dirimir diferenças existentes entre os sistemas jurídicos dos países.
Já a Convenção de Haia sobre a Obtenção de Provas é datada de 1970, mas continua atual e extremamente útil, pois a internet e as viagens facilitadas fazem com que, cada vez mais, pessoas do mundo inteiro se conheçam e estabeleçam laços, sejam afetivos, familiares ou profissionais.
Para um processo que exija provas estrangeiras caminhar, o juiz que acompanha o caso recorre ao Ministério da Justiça. Ele o faz por meio de carta rogatória, um instrumento que é utilizado para requisitar procedimentos a outro juiz de atos que devam ser levados a efeito em território estrangeiro. A depender do país envolvido e do âmbito ao qual pertença o processo – se civil ou trabalhista – o trâmite pode ser facilitado por algum acordo bilateral, ou seja, um acordo pré existente entre os países das partes envolvidas. Mas se não há esse acordo, o pedido de provas segue para o Ministério das Relações Exteriores, bate na porta do Itamaraty e só depois da burocracia diplomática é que chegará às autoridades estrangeiras o tal pedido. Todo esse vai e vem de documentação pode durar até 12 meses e, a depender da complexidade da ação, as provas podem até ser negadas, sob a alegação de falta do tal acordo bilateral. O que essa convenção faz é justamente eliminar essas tantas etapas, padronizando os procedimentos.
Obviamente, que as facilidades não são apenas dos brasileiros em relação aos outros países, mas também o contrário. Um exemplo da aplicação da convenção de Haia relativa a questões de sequestros de crianças foi o entendimento recente do Superior Tribunal de Justiça (STJ), em julgamento no qual a mãe evitava o retorno da filha à Itália. Vamos ao caso:
A criança nasceu no Rio de Janeiro, filha de mãe brasileira e pai italiano, portanto, tinha dupla cidadania. Moravam em Palermo, onde os pais, já separados, tinham a guarda compartilhada. Os três vieram ao Brasil a passeio e, uma vez aqui, a mãe comunicou sua decisão de ficar no Brasil com a criança.
O pai voltou à Palermo e, de lá, em três meses fez chegar processo administrativo às autoridades brasileiras. Aqui, a União propôs ação ordinária de busca e apreensão para que a criança fosse entregue a um representante do estado italiano e voltasse ao lar – designado nos termos jurídicos como “local de residência habitual” –, em Palermo, com o pai. A ação está baseada no artigo 12 da Convenção de Haia sobre os aspectos civis do sequestro internacional, que determina que “quando uma criança tiver sido ilicitamente transferida ou retida e tenha decorrido um período de menos de um ano entre a data da transferência ou da retenção indevidas e a data do início do processo perante a autoridade judicial ou administrativa do Estado Contratante onde a criança se encontrar (no caso, o Brasil), a autoridade respectiva deverá ordenar o retorno imediato da criança”.
Para evitar a volta do filho à Itália, a mãe interpôs recurso especial, alegando que a criança estava bem adaptada à família materna e desejava prová-lo por meio de perícia técnica. O juiz, entretanto, apontou o fato de o pai ter agido dentro do limite de tempo estabelecido pela Convenção de Haia, no artigo 12 citado acima, e julgou por sua entrega às autoridades italianas.
A mãe, então, recorreu ao Superior Tribunal de Justiça (STJ), e em seu recurso lembrou que a jurisprudência do tribunal tem a tradição de trabalhar sob a seguinte premissa: “quando ficar provado que a criança já está integrada em seu novo meio, a autoridade judicial ou administrativa não determinará seu retorno”. Mas não foi bem sucedida. Os ministros da Segunda Turma do STJ sentenciaram que “cabe ao país de residência habitual da criança com dupla nacionalidade decidir sua guarda”.
O ministro Humberto Martins, relator no processo, afirmou o seguinte:
“O escopo da convenção não é debater o direito de guarda da criança, o que caberá ao juízo natural do estado de sua residência habitual. O escopo da convenção é assegurar, dentro do possível, o retorno da criança ao país de residência habitual, para que sua guarda seja regularmente julgada”.
Fica bastante evidente que um parâmetro seguro e chancelado por um organismo internacional tem um peso jurídico extraordinário. Embora não seja o caso aqui, vale lembrar que convenções internacionais e acordos entre países podem, por exemplo, lidar com situações nas quais culturas e tradições religiosas locais, muitas vezes divergentes e até arbitrárias em relação às noções contemporâneas de bem estar e segurança, tentam se sobrepor às leis. Além disso, num mundo que se autodenomina sem fronteiras, é bastante animador perceber que os laços não são apenas em bytes ou dólares!