João Brasileiro
Meu avô segurava a inflação com fita crepe.
Na parede da barbearia, papéis colados marcavam o preço de cabelo e barba. Escritos à mão, letra dele e pronto, estava comunicado. Os anos passavam, os prefeitos mudavam, a feira subia, mas ali, no quadrinho dos preços, tudo igual. Ele dizia que quem muda os próprios valores demais, perde a freguesia, a confiança. E confiança é coisa séria.
A barbearia tinha uma cadeira giratória, um espelho largo sobre uma banqueta verde-clara, a navalha reluzente, o cheiro de loção pós-barba e o rádio baixinho sempre tocando Goiá. “Não deixo meu sertão por nada…” – ele cantarolava, quase como quem reza. Os clientes chegavam, tiravam o boné, contavam da vida. E ele ouvia, aparava, ajeitava – com tempo e trato.
No lado do calendário na parede, no canto oposto ao do preço-fixado-com-fita-crepe, ele colava minhas conquistas da escola. Primeiro, uma medalha de redação da 5ª série, depois uma honra ao mérito das Olimpíadas de Matemática. Enfim, a aprovação no vestibular. Como é possível? No mesmo mural que congelava os preços, havia avanço na educação. Sem sonhar que Amartya Sen dedicaria sua vida justamente à investigação desse paradoxo na economia global, aquela era, para ele, uma forma sutil de me ensinar que o espaço também era meu, que eu podia pertencer às rodas de gente grande.
Dos 8 aos 16 anos, sempre que podia, eu me escorava naquele sofá de napa vermelha escura e ia afundando, ouvindo tudo. Inclusive o silêncio. Ele me tratava como parte presente. E quando eu tinha perguntas, dizia imediatamente: “Responde pra menina.” Antes, meus pés balançavam sem encostar no chão; depois, a postura já ajeitada anunciava que eu estava sim crescendo. Comecei a ter muitas perguntas sobre os porquês e uma vez levei uma apostila de História para a barbearia pela primeira vez. A partir dali, nos intervalos absolutos de avô e neta, passamos a ler juntos a Grécia, o Egito e, principalmente, o Brasil.
“Colore pro vovô as palavras boas…” – ele me pediu – apenas uma vez. Era a vista meio cansada, mas não admitia. Passei então a grifar a apostila inteira com marca-texto amarelo, porque eu queria que ele lesse a história completa. Amarelo ainda é minha cor preferida. Aprendi ali, que ignorar pedaços do passado é ignorar a realidade, e isso compromete.
Aprendi também que gerações diferentes convocando seus pensamentos sobre uma história remota é tão lindo quanto necessário.
Meu avô lia devagar e em voz alta sobre aquele passado que era muito mais antigo que ele. Se revoltava com os descaminhos, se emocionava com as mostras de esperança. Em época de eleição, votava com gosto. Com convicção. Dizia que era o dia em que todo mundo valia igual. Se criticava, era sem barulho. Superava alguma descrença sem desistir da política. Contava ainda que, antes de voltar pra Minas Gerais, do alto de Luziânia, à cavalo, viu o chapadão onde seria construída Brasília. “Era só um risco no chão… mas já brilhava”.
Na barbearia, se o cliente não tinha o dinheiro, podia pagar com fruta, com queijo, com ovos, com um “fica com Deus” ou com a palavra de que pagaria depois. Mas ninguém saía dali sem se sentir digno. “Vai com Deus também”.
Meu avô, que nunca disse a palavra “equidade”, dava mais tempo a quem chegava mais aflito. Nunca bradou sobre “eficiência”, mas suas mãos mexiam com precisão, sem desperdiçar o tempo de ninguém e nem desviar do ritmo de trabalho. Nunca descreveu a “justiça social”, mas acolhia cada cliente-amigo como chegava — e tratava que sairiam todos sempre mais felizes e cuidados.
Sem saber, fazia o que Frederickson escrevera: colocava a pessoa no centro do serviço. Sem saber, confirmava Simon: a boa decisão pública nunca é só técnica, é situada. Sem saber, vivia o que Zappellini explicou: governar é adaptar ao território, à escuta, à pluralidade.
Hoje, quando me perguntam por que acredito tanto no Estado com E maiúsculo, por que estudo seus mecanismos e insisto em falar do Brasil com esperança, logo penso no meu avô — um ser político que nunca pisou num gabinete. Que não era escolado, mas sabia que sabia muita coisa, e que não sabia de tantas outras também. Não fazia relatórios nem preenchia formulários, e por isso não escolhia qual pessoa iria ouvir, então ouvia sempre. Não tinha interesses, era apenas um interessado, sobretudo, pela agridoce vida real.
E por falar em real, o nome da barbearia do meu avô era Salão Rex. “Rex”, em latim, é “Rei”. E ali, naquele seu legítimo território conquistado, sinto sim que ele governou. Não tinha gravata, mas um considerado respeito. Não criava regras, mas aclamava por mais juízo. Não prometia, mas resolvia.
Deveríamos, quem sabe, trocar os cacoetes de burocracia por uma cadeira que gira 360°, a distância fria pelo acalorado cara-a-cara, a pressa pela mão que, no tempo certo, interrompe o corte; trocar a ordenação de causas perdidas por uma loção macia que se adapta ao contorno do rosto de cada um.
João era o nome do meu avô. João, que rima com a nossa Constituição. Mas todo mundo o conhecia como João Barbeiro, um comum e raro joão-brasileiro. Cientificamente? Penso que o Estado pode aprender muito com a política das barbearias.
Crônica escrita sob a supervisão do professor Josiel Lopes Valadares no âmbito do Programa de Pós-Graduação em Administração Pública da Universidade Federal de Viçosa (PPGADM/UFV)
Este texto reflete única e exclusivamente a opinião do(a) autor(a) e não representa a visão do Instituto Não Aceito Corrupção (Inac). Esta série é uma parceria entre o Blog do Fausto Macedo e o Instituto Não Aceito Corrupção. Os artigos têm publicação periódica