12 de julho de 2025
Politica

Não sabe ler e é acadêmico

Os discursos acadêmicos são peças oratórias singularíssimas. A regra sempre foi um cuidadoso preparo na elaboração, os protestos de falsa modéstia a afirmar não possuir credenciais para ocupar uma Cadeira ao lado dos outros imortais e depois o capricho a percorrer a obra dos antecessores.

Só que a praxe pode ser modificada, a partir da criatividade do empossando. Quem se dispuser a ler todos os discursos de posse das Academias mais disputadas, encontrará excelentes exemplares de oratória original.

Outra peça de interesse é o discurso de recepção. Um acadêmico, geralmente o mais próximo ao novo “imortal”, se encarrega de saudá-lo em nome da Instituição.

Ao receber Lauro Müller na Academia Brasileira de Letras, o Conde Afonso Celso fez menção à carta maliciosa em que D’Alembert, a 19 de abril de 1761, narrou a Voltaire como tinham sido as duas últimas posses na Academia Francesa, inspiração da nossa:

– “Recebemos hoje” – escreveu D’Alembert, no tom ferino apreciado pelo destinatário – “o Bispo de Limoges, que não sabe ler, e Batteux, que não sabe escrever”.

Foi uma revelação chocante, muito diferente do tom encomiástico das orações acadêmicas. O que Afonso Celso queria evidenciar, era uma nova afinidade da neófita Academia Brasileira, com a tradicional e consolidada Academia Francesa, criada pelo Cardeal Richelieu no século XVII. É que a Casa de Machado de Assis também tinha um dos integrantes do qual se podia afirmar, como do Bispo de Limoges, que não sabia ler.

Mas como não sabia ler?

Afonso Celso se propôs a esclarecer:

– “Claro está que não se trata de analfabetismo, ausência completa de letras. Hesitaria em assacar tamanho aleive à consciência do mais acirrado inimigo da Academia, ou a do mais ardente, prematuro e confesso candidato a um lugar no seu grêmio acolhedor. Na Academia Brasileira há atualmente alguém que não sabe ler, talvez em condições idênticas a Monsenhor Coestlosquet, pastor espiritual de Limoges. É um caso de alexia, privação ou perturbação acidental da faculdade de ler, conservando-se as sensações visuais. A vítima desta afecção, também denominada mais pedantemente de amnésia visual verbal, vê caracteres gráficos e desconhece-os; embaraça-se, titubeia ao decifrá-los, sobretudo, como agora, ante grande e preclaro auditório”.

E a seguir, no silêncio que a revelação causou e no ambiente de curiosidade que se espalhara pelo salão, o orador revelou quem era esse Acadêmico que não sabia ler: o próprio Afonso Celso.

Daí não ter lido, como é usual, o discurso de saudação a Lauro Müller. Em vez de lê-lo, afastou-se do protocolo vigente e disse-o de memória.

Era uma figura interessante o Conde Afonso Celso. Era sempre alvo de visitas e pedidos de pretensos candidatos à Academia Brasileira de Letras. Embora não houvesse vagas, que só abrem com a morte de um “imortal”, interessados impacientes fizessem a romaria aos acadêmicos, não apenas insinuando, mas até reclamando um compromisso de voto, assim que uma defecção viesse a surgir, mediante o indesejável – para quase todos – comparecimento da ceifadeira.

O Conde Afonso Celso era polido. Recebia a todos com a gentileza e cavalheirismo de seu feitio. Quando o visitante, quebrando a cerimônia, revelava o propósito de sua visita, respondia calmamente:

– “Não posso empenhar a minha palavra, tal como deseja o meu caro amigo. Primeiro, porque o voto é secreto; segundo, porque não há vaga”.

E depois de uma pausa, a sorrir:

– “Terceiro, porque a futura vaga pode ser a minha, o que me poria na condição de não poder cumprir com a minha palavra, coisa a que jamais faltei em toda a minha vida”.

Paulo Bomfim, o último Príncipe dos Poetas Brasileiros, decano da Academia Paulista de Letras, por sua bondade, era também alvo desses postulantes. A um deles, que lhe pediu “uma colher de chá”, não hesitou. Apanhou uma colher da sala de convívio fraterno dos imortais paulistas e entregou ao pedinte: – “Pois aqui a tem!”.

Razão tinha Mestre Miguel Reale: – “Somos 40 e nos ignoram; somos 39 e nos bajulam…”.

É imprevisível e indecifrável o caminho a se trilhar, quando se quer atingir a glória acadêmica. A dos “imortais” que não têm onde cair mortos, como dizia a inefável Lygia Fagundes Telles.

 

 

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