Juízes sem rosto? Não admitiremos!
O Tribunal de Justiça de Santa Catarina (TJSC) implantou, através da Resolução TJ n. 7, de 7 de maio de 2025, a Vara Estadual de Organizações Criminosas em Florianópolis. Não se trata de ‘mais’ uma vara especializada, como dezenas de outras existentes no país surgidas após a Recomendação 03/2006 do CNJ, tanto na esfera estadual como federal, e cuja polêmica criação já foi avalizada pelo STF. Também não é apenas o julgamento colegiado previsto na Lei 12.694/2012, que permite que os crimes praticados por organizações criminosas sejam julgados por um colegiado cujas decisões serão publicadas ‘sem referência a voto divergente’. Portanto, não se diga que nada de novo se criou ou que essa figura já existe. Não é verdade. O TJSC foi muito além: criou a figura do juiz anônimo, sem rosto, sem voz e sem assinatura. Um juiz inconstitucional.
A segurança dos juízes é uma preocupação fundada e legítima, mas que deve ser tratada na dimensão institucional, com logística e inteligência, a exemplo do que é feito nos principais tribunais do país, mas não assim, ferindo de morte o juiz natural e o devido processo. Sem falar no evidente paradoxo: e quem atuou antes, os delegados e servidores da polícia, também serão anonimizados? Não. E depois do julgamento, quem vai decidir sobre os recursos tomados pela Vara anonimizada? Desembargadores e Ministros (do STJ e do STF) com nome, rosto e voz, que decidirão em sessões públicas de julgamento.
E se o crime de organização criminosa for conexo com um crime doloso contra a vida? Considerando que o júri exerce vis atractiva, tudo será julgado pelo tribunal do júri. E os jurados serão anonimizados também? Não, eles terão rosto, voz e nome. Então o jurado leigo, que não goza de nenhuma proteção institucional, também não terá qualquer proteção especial quando deste julgamento. Então o argumento da segurança é seletivo?
A Resolução estabelece, entre outros, que:
- a 1ª A Vara Criminal da Região Metropolitana de Florianópolis, fica transformada em Vara Estadual de Organizações Criminosas, composta por 5 juízes de direito titulares e com sede na comarca da Capital e jurisdição em todo o Estado de Santa Catarina;
- que terão competência para processar e julgar ilícitos praticados por organizações criminosas e os respectivos conexos, excetuados os processos de competência do Tribunal do Júri e dos juizados especiais criminais e de violência doméstica e familiar contra a mulher;
- terão competência para atuar na fase de investigação criminal, decidindo sobre todos os incidentes que o CPP atribui ao Juiz das Garantias;
- os procedimentos e processos em tramitação nesta Vara serão caracterizados pela impessoalidade, com a anonimização dos atos praticados por magistrados e servidores nos documentos e nos registros disponíveis para consulta no sistema informatizado, constando no campo “assinatura” dos documentos produzidos nos autos digitais apenas “Vara Estadual de Organizações Criminosas”, sem informação a respeito do magistrado ou do servidor que atuou no feito, ressalvado o disposto no inciso V do § 1º do art. 8º da resolução;
- as audiências serão exclusivamente online e, com um “sistema desenvolvido pela Microsoft, haverá distorção facial e do som da voz do magistrado ao presidir uma audiência, para que não seja possível identificar se é homem ou mulher e as características pessoais”[i].
Ao deslocar um processo de qualquer cidade do Estado de SC para a capital, é violada a garantia do juiz natural na perspectiva da competência em razão do lugar. Ainda que o STF já tenha – no passado – admitido essa prática, segue sendo censurável. Continuaremos resistindo porque é uma clara manipulação da competência, agravada pelo fato de que tal modificação se deu com processos em curso, tanto que a Vara catarinense já nasce “com um acervo inicial 2.087 processos, sendo 1.841 em andamento e 246 suspensos” (informações do TJSC em site oficial[ii]).
Esses 5 juízes serão anonimizados “para a segurança e tranquilidade dos magistrados, toda decisão judicial e todo trabalho de secretaria serão anônimos na unidade do crime organizado. Para isso, foi criado um sistema no Teams, desenvolvido pela Microsoft, pelo qual haverá distorção facial e do som da voz do magistrado ao presidir uma audiência, para que não seja possível identificar se é homem ou mulher e as características pessoais. Além de impedir a identificação de juízes e juízas pela imagem e pelo som, a nova tecnologia desenvolvida fará o reconhecimento facial de testemunhas.”
Um desses 5 juízes será o ‘coordenador’, cabendo-lhe atender as partes e seus procuradores, membros do MP, defensoria e autoridades policiais. Também será ele quem irá assinar mandados de prisão e assinar expedientes ‘em que, apenas por exigência legal, não seja possível a assinatura colegiada’.
Desses 5 magistrados, apenas 3 formam o ‘Colegiado’. Para aumentar o ‘anonimato’, foi criado um sistema de sorteio eletrônico, em que os 5 magistrados serão distribuídos em 5 colegiados, formados por 3 juízes cada. Mas em nenhum momento se saberá quem são.
A Resolução invoca genericamente a Lei 12. 694/2012, que prevê que as decisões do colegiado serão publicadas sem qualquer referência a voto divergente de qualquer membro. Mas existe uma diferença crucial entre aquilo que a Lei 12.694/2012 estabelece e o que legislou o TJSC: a lei federal determina que as decisões do colegiado serão ‘firmadas, sem exceção, por todos os seus integrantes’, apenas não haverá referência a voto divergente. Não existe colegiado anônimo. Portanto, a Resolução do TJSC vai muito além de qualquer limite legal, constitucional ou convencional: cria juízes sem rosto e sem assinatura, pois suas decisões serão protegidas pela ‘anonimização dos atos praticados por magistrados e servidores nos documentos e nos registros disponíveis para consulta no sistema informatizado, constando no campo “assinatura” dos documentos produzidos nos autos digitais apenas “Vara Estadual de Organizações Criminosas”, sem informação a respeito do magistrado ou do servidor que atuou no feito’[iii].
E tudo isso através de uma simples e precária ‘Resolução’ do TJSC, como se fosse uma mera organização judiciária interna, quando na verdade se está diante de uma norma processual que viola diretamente a CF e a CIDH. Existe ainda um vicio de fonte, pois somente lei ordinária federal poderia legislar sobre competência penal, isso se não fosse de conteúdo inconstitucional, como no caso.
Como é que se alega suspeição, impedimentos ou qualquer situação que afete a imparcialidade dos julgadores anônimos? Como poderá haver o controle da presença de alguma das situações do art. 252 a 254 do CPP?
E nas audiências, com rostos e vozes distorcidas, qual a garantia de que realmente se está diante de um magistrado e competente? E qual ou quais dos juízes do Colegiado irão participar? A garantia da identidade física do juiz (art. 399, § 2º do CPP) será controlada como?
Não há respostas válidas, pois a resolução fulmina os fundamentos mais caros do devido processo penal constitucional.
Outro aspecto importante: a Resolução do TJSC ignora completamente a existência da figura do Juiz das Garantias. O modelo de duplo juiz estabelecido pelo art. 3º-B exige que se saiba quem é o juiz que atuou na fase pré-processual e que ele seja distinto do juiz do processo. O ‘juiz sem rosto’ do TJSC impede esse controle, mas vai além: a resolução determina expressamente no seu art. 4º que os juízes da Vara Estadual de Organizações Criminosas decidam sobre a prisão em flagrante, prisão preventiva, prisão temporária, medidas cautelares e assecuratórias, quebra de sigilo de dados e/ou telefônicos, enfim, atos típicos da investigação a cargo do Juiz das Garantias. E, depois, durante a instrução, o processo e julgamento caberá aos mesmos magistrados desta Vara especial.
Poderia se argumentar, ainda que a Resolução não diga: mas já que é um órgão colegiado, o juiz que atuou na investigação não irá participar do processo e julgamento. Mas e o controle se dará como, já que não se sabe ‘quem’ é o juiz? Não se sabe que foi o juiz (ou juízes?) que atuou na investigação e tampouco aquele que irá sentenciar.
Essas questões evidenciam que a Resolução do TJSC viola, no mínimo:
- art. 5º, IV da CF, que veda o anonimato;
- art. 5º, XIV da CF, que veda o direito de acesso a informação necessária para o exercício profissional;
- art. 5º, XXXVII da CF, porque cria um tribunal de exceção, com clara manipulação da competência territorial, do sistema ‘duplo juiz’ (juiz das garantias distinto do juiz do processo) e da garantia da imparcialidade;
- art. 5º, incisos LIII, LIV e LV da CF, pois fulmina o devido processo penal e a garantia do juiz natural;
- art 5º, LX da CF, na medida em que restringe a publicidade de atos processuais sem motivo legítimo, mas mero interesse institucional remediável por outras vias;
- art. 93, IX da CF, porque viola sem justa causa a regra da publicidade dos atos do poder judiciário.
Na dimensão da Corte Interamericana de Direitos Humanos, é importante recordar que a figura do ‘juiz sem rosto’ (clara inspiração do modelo catarinense) já foi objeto de intenso debate e de, ao menos, duas decisões paradigmáticas que afirmaram a sua inconvencionalidade: Caso Pollo Rivera e outros contra Peru (sentença de 21 de outubro de 2016) e anteriormente no Caso Castillo Petruzzi e outros contra Peru (sentença de 30 de maio de 1999).
A jurisprudência da Corte é de rechaço as práticas similares àquelas adotadas pelo TJSC, por manifesta violação da garantia de ser julgado por um tribunal competente, independente e imparcial, que é a base de todas as demais garantias do devido processo. Não se considera ‘juiz natural’ o processamento por um juiz sem rosto e sem informações que garantam o controle de sua imparcialidade e ausência de motivos que o tornem suspeito ou impedido.
Também recordemos que o ‘juiz sem rosto’ do sistema colombiano – Decreto 2790/1990 – se mostrou ineficaz ao pretendido fim de segurança dos juízes, tendo sido declarado inconstitucional no início dos anos 2000. Não resolveu o problema, apenas aumentou o custo da corrupção envolvendo funcionários públicos que forneciam as informações para o crime organizado[iv]. No México a autoritária figura criada por López Obrador tem despertado severas críticas por parte da ONU, pois “aunque es necesario proteger a las personas juzgadoras, no se debe vulnerar el derecho a un juicio justo ante un tribunal independiente e imparcial”.[v] No Peru o ditador Alberto Fujimori também implantou o modelo a título de combate ao ‘terrorismo’, tendo sido posteriormente abandonado dada a violação do direito ao devido processo. Foi causa de condenações deste país na Corte Interamericana de DH. O Comitê de DH da ONU enfatiza que o sistema de “jueces sin rostro suelen adolecer no solo del problema de que el acusado desconoce la identidad y la condición de los jueces, sino también de otras irregularidades como la exclusión del público, o incluso del acusado o sus representantes, de las actuaciones”[vi].
Ademais, comparando com a legislação estabelecida em outros estados brasileiros, percebe-se que a Resolução do TJSC inova (inconstitucionalmente) a forma e o modelo da unidade judicial responsável por julgar os delitos praticados por organização criminosa. Os modelos adotados em Alagoas (Lei nº 6.806/2007), Bahia (Lei nº 13.375/2015) e Ceará (Lei nº 16.505/2018), entre outros, demonstram que é plenamente possível compatibilizar a necessidade de uma vara especializada em delitos de organização criminosa com o respeito à Constituição. Em nenhum estado se optou pela supressão da identidade do julgador, pela distorção de sua imagem e voz, tampouco pela eliminação de qualquer forma de controle sobre a imparcialidade judicial.
O que se verifica nesses casos é a criação de estruturas especializadas com juízos colegiados, dotadas de segurança reforçada e procedimentos adequados, mas sempre dentro dos marcos constitucionais. A Resolução do TJSC, ao inovar para além dos limites legais e constitucionais, abandona esse parâmetro e adota um modelo inédito e absolutamente incompatível com a Constituição Federal.
Não podemos pactuar com tamanha ilegalidade e tão grave retrocesso civilizatório. A garantia da segurança dos juízes é um valor fundamental em democracia, mas não é rasgando a Constituição que se irá dar conta dessa demanda. Tampouco podemos admitir um tribunal de exceção que viole os pilares mais sagrados do devido processo penal. A advocacia e a sociedade não podem tolerar tamanho retrocesso civilizatório.
A Associação Brasileira dos Advogados Criminalistas acompanha com preocupação essa inovação e reafirma que não compactua com a imposição de medidas flagrantemente inconstitucionais sob qualquer pretexto. A segurança dos magistrados é, sem dúvida, um valor relevante em um regime democrático, mas jamais poderá justificar o atropelo da CF e das garantias fundamentais do cidadão. Nesse contexto, a Abracrim adotará as providências jurídicas cabíveis para questionar a validade dessa resolução e assegurar a preservação do Estado Democrático de Direito, com absoluto respeito ao devido processo legal, à ampla defesa e ao juiz natural. Seguiremos atentos, firmes na trincheira da legalidade, ao lado da advocacia criminal brasileira na defesa intransigente das normas constitucionais e dos direitos fundamentais e, parafraseando o saudoso advogado criminalista Raymundo Asfóra, mesmo que já não tivéssemos mais esperanças, ainda assim, haveríamos de lutar pelas vossas!
[i] https://www.tjsc.jus.br/web/imprensa/-/tjsc-instala-vara-estadual-de-organizacoes-criminosas-e-divulga-mapa-por-regiao#:~:text=A%20Vara%20Estadual%20de%20Organiza%C3%A7%C3%B5es%20Criminosas%20ter%C3%A1%20compet%C3%AAncia%20sobre%20todo,e%20do%20Juizado%20Especial%20Criminal.
[ii] https://www.tjsc.jus.br/web/imprensa/-/tjsc-instala-vara-estadual-de-organizacoes-criminosas-e-divulga-mapa-por-regiao#:~:text=A%20Vara%20Estadual%20de%20Organiza%C3%A7%C3%B5es%20Criminosas%20ter%C3%A1%20compet%C3%AAncia%20sobre%20todo,e%20do%20Juizado%20Especial%20Criminal.
[iii] https://www.tjsc.jus.br/web/imprensa/-/tjsc-instala-vara-estadual-de-organizacoes-criminosas-e-divulga-mapa-por-regiao#:~:text=A%20Vara%20Estadual%20de%20Organiza%C3%A7%C3%B5es%20Criminosas%20ter%C3%A1%20compet%C3%AAncia%20sobre%20todo,e%20do%20Juizado%20Especial%20Criminal.
[iv] ROSA, A. M. DA; CONOLLY, R. Democracia e juiz sem rosto: problemas da lei nº 12.694/2012. Libertas: Revista de Pesquisa em Direito, v. 1, n. 1, 31 dez. 2014.
[v] https://cnnespanol.cnn.com/2024/09/13/que-son-jueces-sin-rostro-figuras-polemica-reforma-judicial-orix
[vi] https://cnnespanol.cnn.com/2024/09/13/que-son-jueces-sin-rostro-figuras-polemica-reforma-judicial-orix