15 de julho de 2025
Politica

Para-choque

Introdução

No asfalto das rodovias brasileiras, deslizam não apenas caminhões, mas também expressões que carregam a alma popular do nosso amado Brasil. As frases de para-choque são verdadeiras cápsulas de sabedoria e poesia popular sobre rodas, refletindo o Brasil heterogêneo, com lições de vida ou toques de humor algumas vezes eivados de pitadas de irreverência, insolência, lascívia que podem até transgredir o conceito do politicamente correto.

É bem verdade que essas expressões estão progressivamente caindo em desuso, por uma série de razões. Há três ou quatro décadas, porém, eram presença marcante nas traseiras e dianteiras de caminhões, compondo uma estética singular das estradas brasileiras, contendo frases leves, filosóficas ou irreverentes que revelavam uma classe trabalhadora que pensa, ama, sofre…, mas que também ri, zomba e provoca. Formavam o que se pode chamar de uma literatura de para-choque: ora poesia marginal, ora conselhos de vida, ora piadas transgressoras que arrancavam sorrisos até mesmo de almas mais pudicas. Embora hoje sejam raras, essas frases ainda guardam seu valor como expressão autêntica da cultura popular que brotou do asfalto.

São manifestações culturais espontâneas, microcrônicas em movimento. Neste artigo, celebro essa tradição criativa e espirituosa que circulava em cada curva do país. Na boleia do Brasil, levavam e ainda levam não apenas cargas, mas a alma de um povo. Vamos pegar carona nessa estrada literária?

A voz popular do asfalto

A sabedoria popular é como um rio que atravessa gerações e, portanto, se modifica, levando consigo lições, crenças, valores e formas de ver o mundo. Nascem do cotidiano e se expressam em ditados, chistes, fé, cordéis e, claro, até em para-choques de caminhões, carretas e treminhões. E como não lembrar da malícia velada na frase: “Ela espera ver aquele caminhão voltando… de para-choque duro” — trecho de uma música da banda Blitz, sucesso nos anos 80 do século passado, que muitos caminhoneiros cantavam com orgulho.

Também ecoam nas estradas as canções que retratam a solidão e os desafios desses heróis do volante, nas vozes de Roberto Carlos, Sérgio Reis, Chitãozinho & Xororó, Renato Teixeira e tantos outros que deram alma ao asfalto. Com esse tom reflexivo e valorizador da cultura popular, reproduzo abaixo algumas dessas frases em dois grupos. Parte delas anotei apaixonadamente, nas andanças por esse Brasilzão, em uma caderneta no console do meu carro.

1) Frases convencionais

Este primeiro grupo reúne frases que seguem o protocolo social contemporâneo, refletindo valores amplamente aceitos e que buscam ressonância imediata com o senso comum, enquanto evitam polêmicas e prezam pela neutralidade:

“Melhor chegar atrasado nesta vida do que adiantado na outra.”

“Construímos muros demais e pontes de menos.”

“A mulher que é flor, o caminhão leva com cuidado.”

“Seja paciente no volante para não ser paciente no hospital.”

“O tempo cura tudo, menos a velhice.”

“Não sou dono do mundo, mas sou filho do dono.”

“No tempo de Lampião, ninguém cantava Maria Bonita.”

“Antigamente eu dava um boi por uma briga, hoje brigo por um bife.”

“Coração de pobre não bate: apanha.”

2) Frases criativas e divertidas, com provocações sutis

O bom humor é quase regra no repertório dos para-choques, e muitas frases nos levam ao riso desbragado, até por sua irreverência, tensionando valores dominantes, sem chegar à hostilidade explícita:

“Se trabalho enricasse, burro andava de relógio de ouro.”

“Conheça a vida selvagem: tenha filhos!”

“Faça um político trabalhar: não o reeleja!”

“Parar de fumar é fácil. Já parei mais de 20 vezes.”

“Certos políticos, assim como as fraldas, devem ser trocados constantemente. Sempre pelo mesmo motivo.”

“Se és capaz de sorrir quando tudo deu errado, é porque já descobriste em quem pôr a culpa.”

“Visitas sempre dão prazer: na chegada ou na saída.”

“Tudo o que é bom na vida é ilegal, imoral ou engorda.”

“Do cigarro para o fumante: hoje você me acende, amanhã eu te apago.”

3) Frases que desafiam o politicamente correto

Nem todo humor sobre rodas é inocente. Muitas vezes, carregam uma dose maior de irreverência, pois provocam, afrontam e até incomodam.

Muitas desafiam abertamente os códigos do politicamente correto, rompendo com filtros sociais historicamente construídos. Embora façam parte do imaginário das estradas, podem gerar desconforto ou rejeição ao retratarem visões datadas sobre gênero, classe, sexualidade e outros marcadores sociais. Ainda que seu objetivo muitas vezes seja apenas o riso, é importante lembrar que toda linguagem carrega marcas do tempo em que foi criada.

Como qualquer expressão de um patrimônio cultural vivo, essas frases também precisam ser lidas com consciência crítica — algumas envelhecem mal e exigem um novo olhar, que não as perpetue de forma acrítica, mas que as reinterprete à luz de valores mais inclusivos e respeitosos.

Por esses motivos, optou-se por não reproduzir diretamente tais frases. Em vez de reforçar estereótipos ou discursos excludentes, a proposta aqui é convidar à reflexão sobre o impacto das palavras e sobre como o humor também pode (e deve) evoluir com a sociedade.

Conclusão

A graça, os gracejos e as boas tiradas são terapêuticos, um genuíno reflexo da cultura popular brasileira que vai de conselhos sábios a transgressões bem-humoradas, da fé à crítica social. Ao percorrermos as estradas do Brasil, essas pequenas pérolas de sabedoria nos lembram da criatividade e do espírito resiliente do nosso povo, uma expressão autêntica (e até simplória) de uma classe cuja força pode tanto levar progresso quanto parar o país.

É um mosaico, um caleidoscópio da alma de um povo que sofre, reza, ama, ri… e às vezes, transgride, em linha com o que bem retrata Ambrose G. Bierce: “Em cada coração humano há um tigre, um porco e um rouxinol.” É nesse equilíbrio entre fúria, instinto e poesia que viviam as estradas, nas quais os para-choques seguem contando histórias dos nossos heróis caminhoneiros.

 

 

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *