Democracia e soberania não se negociam
Gestos valem mais do que mil palavras. A carta do presidente dos Estados Unidos, Donald Trump, para anunciar a imposição de uma tarifa de 50% sobre produtos brasileiros importados por aquele país é ladeada de símbolos.
O primeiro deles diz respeito à forma. Trump optou por deixar o documento público por meio de uma rede social, o que causaria espanto no ambiente diplomático se não estivéssemos diante de um governo que costuma ignorar a institucionalidade.
Mas também há inovações no conteúdo. Embora o Brasil seja mais uma das nações atingidas pelo tarifaço de Trump, o norte-americano usou tom distinto para se dirigir ao presidente do Brasil. Das dezenas de cartas que os EUA têm enviado a diversos países comunicando o aumento de tarifas, a brasileira é a única que trata de política pura, não só da comercial.
A confusão, provavelmente proposital, serve como âncora para que Trump use informação não verídica para tentar fundamentar o injustificável.
Como não existe qualquer fato econômico que explique uma medida tão extrema —assim como bem salientou a Confederação Nacional da Indústria (CNI)—, o presidente dos EUA abriu mão de um dado sabidamente inverídico, ao afirmar que o seu país é vítima de uma “longa e muito injusta” relação comercial com o Brasil.
A realidade de Trump ignora fatos. Os Estados Unidos compram 11% das exportações brasileiras e, ao contrário do que afirma a carta, a balança tem sido amplamente favorável aos americanos, com US$ 410 bilhões de superávit nos últimos 15 anos em comércio e serviços.
No documento, o republicano ainda afirma, sem provas, que a decisão de aumentar a taxa foi tomada “em parte devido aos ataques insidiosos do Brasil contra eleições livres e à violação fundamental da liberdade de expressão dos americanos”.
O pano de fundo desse trecho é conhecido, qual seja a crescente oposição da administração de Donald Trump à regulação das big techs. Para o presidente dos EUA, estabelecer um marco legal para o mundo digital é censura. Sem falar em um olhar colonial sobre o Brasil ao tentar interferir em decisões do Judiciário a partir de pressões de governos estrangeiros e de querer impedir a aproximação do nosso país às demais potências do hemisfério sul, através do BRICS.
Sob o comando de Trump, os EUA têm intensificado o discurso contra legislações como a da União Europeia e as iniciativas da América Latina que propõem maior responsabilidade às plataformas digitais quanto à disseminação de desinformação e à proteção de usuários vulneráveis. As big techs não podem continuar como as senhoras feudais da idade contemporânea, transformando seus usuários em servos a mercê de seus algoritmos e manipulações.
Esses pontos indicam que apesar de proclamar uma ameaça com graves impactos econômicos para os dois países, o norte-americano não está exatamente preocupado com a longeva parceria comercial de 200 anos entre Brasil e Estados Unidos.
Trump, como presidente republicano, deveria conhecer o alerta do ex-presidente dos EUA Ronald Reagan, em 1987, quando comandava a Casa Branca, “tarifas excessivas podem gerar represálias, prejudicar o crescimento global e corroer os alicerces da coexistência econômica”.
“Tarifas altas inevitavelmente levam à retaliação por parte de países estrangeiros e ao desencadeamento de guerras comerciais ferozes. O resultado é cada vez mais tarifas, barreiras comerciais cada vez maiores e cada vez menos concorrência. Então, logo, por causa dos preços artificialmente altos por tarifas que subsidiam a ineficiência e a má gestão, as pessoas param de comprar. Então, o pior acontece: mercados encolhem e entram em colapso; empresas e indústrias fecham; e milhões de pessoas perdem seus empregos”, afirmou Reagen, em um trecho de discurso que tem sido resgatado como crítica às medidas protecionistas do atual governo estadunidense.
Donald Trump, assim como outros líderes da extrema direita, buscam se utilizar do caos como uma forma de governar. É a partir de uma desordem proposital que o seu ideal “America First” sobrevive e consolida, ao menos entre seus apoiadores, a crença de que todas as nações estão reduzidas à condição de subordinadas aos Estados Unidos. Com o Brasil, não é diferente.
A carta enviada por ele ao governo brasileiro revela a tentativa clara de impor ao nosso país o status de uma República de segunda categoria.
A chantagem tarifária configura, portanto, uma afronta à soberania do Estado brasileiro e uma verdadeira violação aos princípios da independência dos Poderes e da não intervenção, pilares fundamentais do Direito Internacional e da ordem constitucional do nosso país.
O Nobel de economia Paul Krugman foi preciso ao dizer que “Trump nem finge haver justificativa econômica”. “Será que ele acredita mesmo que pode usar tarifas para forçar uma nação enorme, que nem é tão dependente do mercado americano, a abandonar a democracia?”, interroga como afirmação.
É inadmissível que algum brasileiro possa apoiar esse golpe contra a nossa soberania, tal qual o oficial militar da Noruega Vidkun Quisling que traiu seus compatriotas em 1940, apoiou os Nazistas e aderiu a Hittler quando da invasão aquele país. Ele chefiou um governo colaboracionista e se tornou símbolo de traição — tanto que o seu sobrenome “Quisling” virou sinônimo de “traidor” em vários idiomas.
A resposta do Brasil deve unir toda a sociedade brasileira – e cada um dos líderes políticos- com a compreensão de que a independência das nossas instituições, a soberania e a democracia brasileiras são inegociáveis.