18 de julho de 2025
Politica

As amarras constitucionais do Sistema Nacional de Cultura

A Constituição de 1988 organizou o Brasil a partir da ideia de “federalismo cooperativista”, aquele caracterizado pelo fato de que os entes da federação (União, Estados, Distrito Federal e Municípios) compartilham a elaboração e a execução das leis em várias matérias, sobretudo aquelas atinentes à chamada ordem social, onde se localizam os direitos que se efetivam por meio de prestações públicas, como a saúde, a educação, a previdência e o acesso a uma pluralidade de bens e serviços culturais [1].

Para fazer as leis nos mencionados assuntos, o compartilhamento de poderes é bem simples: a União edita as normas gerais e os demais entes, segundo suas realidades, complementam tal legislação. No que concerne à execução de políticas públicas, as regras constitucionais não são claras, razão pela qual se popularizou a ideia de “sistemas”, por meio dos quais se definem as diferentes responsabilidades de cada tipo de entidade do poder público.

A ideia é tão forte no nosso federalismo cooperativista que a palavra sistema aparece por aproximadamente oitenta vezes na Constituição Federal de 1988, porém, a bem da verdade, com distintos significados, que não podem ser explorados agora, por falta de espaço. Assim, considerando a vastidão da ideia sistêmica, doravante será trabalhado o recorte de como ela aparece no Título VIII, o “Da Ordem Social” (Art. 193 a 232), para que sejam revelados os sistemas nele inseridos, como são constitucionalmente disciplinados e, com isso, compará-los com o sistema nacional de cultura (Art. 216-A).

Aparecem mencionados na referida parte da Constituição, mas sem qualquer disciplinamento nela, o sistema de seguridade social (Art. 195, § 3º), o sistema especial de inclusão previdenciária (Art. 201, § 12), o sistema nacional de ciência, tecnologia e inovação (Art. 219-B) e os sistemas de radiodifusão privado, público e estatal (Art. 223).

No tema da educação, são mencionados, de forma individualizada, os sistemas de ensino federal, distrital, estaduais e municipais (Art. 211), que interagem entre si a partir de atos de “colaboração”. Note-se que a ideia de sistema nacional de educação somente surge em 2009, com a Emenda Constitucional nº 59, igualmente sem qualquer disciplinamento constitucional, uma vez que as metas e objetivos que acrescentou ao Art. 214 dizem respeito ao plano nacional de educação.

Algo semelhante ocorre com o sistema nacional de avaliação da educação básica (Art. 212-A,V, c), acrescido à Constituição pela Emenda Constitucional nº 108, de 2020, simplesmente mencionado na Lei Maior.

O próprio Sistema Único de Saúde, o SUS, tomado como o grande paradigma [2], o máximo de disciplinamento constitucional que tem são três diretrizes no Art. 198 e oito atribuições no Art. 200, ficando a sua parte operacional tratada por normas infraconstitucionais (leis, decretos, portarias etc.).

O Sistema Nacional de Cultura (SNC), constante no Art. 216-A, resultado de acréscimo [3] feito pela Emenda Constitucional nº 71/2012, difere dos seus congêneres por especificar, com uso muito impróprio da palavra, doze “princípios”, ademais, de uma estrutura orgânica de nove complexos elementos, além de se propor a ser um sistema de sistemas, ao fazer referência às “respectivas esferas da federação”, bem como aos “sistemas de financiamento da cultura”, “sistemas de informações e indicadores culturais”, “sistemas setoriais de cultura” e “demais sistemas nacionais ou políticas setoriais de governo”. Em síntese, é um sistema que se propõe totalizante.

Há quem celebre o fato de o SNC ser o único sistema de políticas públicas constitucionalmente detalhado, destacando-se, entre estes, dois grupos de pessoas: os que encontram no Estado a solução para todos os problemas (neste caso, são coerentes com os próprios valores e convicções), além daqueles que, sem ter noção exata da sua própria ideologia, não percebem que uma federação só se justifica se tiver elementos de unidade, como os direitos humanos, e elementos de diversidade, radicados precisamente nas culturas, as quais, precisam de liberdade não apenas para os seus produtos e manifestações, mas igualmente nos seus processos e instituições.

Padronizar esses elementos evoca certa lembrança com o ato instituir uma religião oficial, mesmo que seja a religião civil, criação do positivismo [4], neste caso, do positivismo jurídico.

Se os demais sistemas não têm disciplina constitucional, mesmo os que tratam de assuntos técnicos, lidam com procedimentos padronizados e abrangem quase a unanimidade da população, é porque precisam de adaptações de tempos em tempos. Mais razões para ser juridicamente flexível seria o sistema de cultura, pois ele lida com os elementos responsáveis pela dinâmica e diversidade criadora [5] da vida social, todavia, como visto, o nosso SNC está cheio de amarras constitucionais.

Não fosse isso, a redação final do Art. 216-A é dotada de ambiguidades, normas subliminares e até de janelas hermenêuticas capazes de solucionar o problema principal abordado nesta reflexão; disso tratarei em artigo futuro, mas apenas se houver manifestação de interesse por parte do meu pequeno, mas qualificado grupo de leitores.

Notas[1] CUNHA FILHO, Francisco Humberto. Federalismo Cultural e Sistema Nacional de Cultura: contribuições ao debate. Fortaleza: Edições UFC, 2010

[2] MONTANARI, Ivan. Singular e plural: o processo de institucionalização do Sistema Nacional de Cultura (dissertação de mestrado). São Paulo: USP, 2022, p. 169.

[3] ROCHA, Sophia Cardoso. Da Imaginação à Constituição: a trajetória do Sistema Nacional de Cultura de 2002 A 2016 (Tese de Doutorado). Salvador: UFBA, 2018, p.161.

[4] COMTE, Augusto. Discurso sobre o Espírito Positivo (Portuguese Edition) (p. 84). Montecristo Editora. Edição do Kindle.

[5] CUELLAR, Javier Pérez (Org.). Nossa Diversidade Criadora. Campinas-SP: Papirus, 1997.

Este texto reflete única e exclusivamente a opinião do(a) autor(a) e não representa a visão do Instituto Não Aceito Corrupção (Inac). Esta série é uma parceria entre o Blog do Fausto Macedo e o Instituto Não Aceito Corrupção. Os artigos têm publicação periódica

 

 

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *