23 de julho de 2025
Politica

O antissistema: muitos bolsonaristas de hoje já foram petistas nos anos 90

Resistir a uma ordem social, econômica e cultural majoritária, de acordo com a percepção do resistente é uma forma de expressão política presente na sociedade brasileira e que é capaz de transmutar um mesmo indivíduo por meio do tempo. Há uma parcela do eleitorado, que, hoje, faz o símbolo da arminha, em homenagem a Jair Bolsonaro, que defendeu a ascensão do líder sindical Lula, para derrotar os “pelegos” neoliberais, que se organizavam em torno do governo Fernando Henrique Cardoso. Eras distintas têm o domínio de sistemas distintos, mas o eleitor que luta pela quebra da ordem perpassa por ideologias e navega entre mares muito antagônicos para defender sua posição.

Em um estudo encomendado pelo blog De Dados em Dados, do Estadão, o instituto RealTime Big Data trouxe um dado bastante interessante sobre esse fenômeno. Das 1.000 pessoas, acima dos 50 anos, ouvidas entre os dias 1 e 2 de julho de 2025, que votariam em Jair Bolsonaro, caso tivéssemos uma eleição nos dias de hoje, 307 delas afirmaram já terem votado em Lula, no passado. Quase 1/3 desse eleitorado, que vivenciou na maioridade as últimas três décadas de democracia no Brasil, já estiveram do lado que hoje condenam com veemência. Uma certa decepção que transformou a visão desse indivíduo e que o fez crer em coisas que outrora lhe pareciam abomináveis.

Lula, presidente, e Jair Bolsonaro, ex-presidente
Lula, presidente, e Jair Bolsonaro, ex-presidente

Esse dado traz consigo um outro ponto bastante interessante. Esse eleitor é em sua maioria homem, morador do Sudeste e tem uma renda média entre cinco e dez salários mínimos. É alguém que venceu financeiramente na vida, comparado ao cenário brasileiro, mas não vive com sobras, já que tem seus gastos elevados por pertencer a uma casta, que não admite ter que recorrer aos serviços básicos de saúde, educação e transporte públicos, porque já experimentou a diferença brutal entre a qualidade do estatal e do privado. É o eleitor que paga plano de saúde, seguro de carro, por vezes escola para filhos ou netos e tem sua renda final corroída e muitos deles chegam ao final do mês endividados.

Esse inconformismo com sua própria condição de vida o leva a questionar tudo. Há uma mão invisível, que está longe de ser a do mercado de Adam Smith e está mais próxima do Leviatã, de Thomas Hobbes, que molda um sistema que só tem o prejudicado. O governo executivo, a Casa de Leis, o supremo poder judiciário, a mídia, as organizações empresariais e lideranças civis parecem orquestrar um mundo que vende ilusões e entrega fiasco. Para esse eleitor há que se destruir toda essa estrutura para que sua vida possa de fato decolar.

A ânsia por mudança e quebras de estruturas tem um componente histórico peculiar. A transição democrática brasileira foi gradual. O eleitor não pôde escolher de imediato quem seria seu primeiro presidente pós final do regime militar. O sistema posto criou um colégio de líderes que apontou para a vitória de Tancredo Neves. O trágico que vira e mexe acompanha o processo apareceu e, com a morte do escolhido, José Sarney teve a missão de cumprir a transição. Com um governo bastante questionado e a inflação galopante, ficou marcado por ser o presidente da década perdida, assim alcunhado os anos 80.

Em 1989, quando o brasileiro finalmente teve a chance de voltar às urnas, após 39 anos, a escolha foi justamente por dois nomes que desafiavam as estruturas dominantes. Fernando Collor de Mello, o caçador de Marajás, eleito pelo minúsculo PTN, teve como combatente no segundo turno, Luiz Inácio Lula da Silva, o líder sindical que prometia calote no FMI e pedia ao povo que não tivesse medo de ser feliz. Dois nomes que prometiam acima de tudo ruptura com o sistema.

O mandato de Collor durou muito pouco. Sem base congressual, com denúncias de corrupção e com a impopular decisão de mexer na poupança dos brasileiros, foi sacado pelo chamado sistema e seu impeachment levou para o poder Itamar Franco, que já tinha uma trajetória política consolidada, tendo sido prefeito de Juiz de Fora e senador da República por Minas Gerais. Seu mandato-tampão e a criação do plano Real são uma resposta de um sistema que precisaria provar para os brasileiros que a aventura Collor não poderia vingar. Fernando Henrique Cardoso vira o pai da nova moeda e se elege e reelege, passando oito anos comandando o País, período só menor do que o de Getúlio Vargas, quando do Estado Novo, em toda a República.

Durante esse intervalo de tempo, as ruas do Brasil eram pichadas pelo Fora FHC e com entidades sociais organizadas, lutando para que o sistema implodisse. O Movimento dos Trabalhadores Sem Terra teve um peso muito grande nas discussões sobre a reforma agrária, que levou, inclusive, a um dos folhetins mais exitosos, do ponto de vista de audiência televisiva, a novela Rei do Gado, exibida, na TV Globo. Fernando Henrique, professor, pouco dado a arroubos populistas, se mantinha no poder, graças a uma certa estabilidade, que o fim da inflação trouxe. No entanto, ele não representava a classe dos antissistemas, que queriam Lula para romper com tudo que estava lá. Vale notar, que o PT era contrário ao Real e até mesmo votou contra a Constituição Federal de 1988.

Lula, que tinha até então o voto de boa parte da classe média brasileira, por exemplo, vencendo em 1998 em dois Estados, que tem boa concentração de classes B e C, Rio Grande do Sul e Rio de Janeiro, mesmo no auge da popularidade do governo FHC, ganha as eleições de 2002, já muito repaginado, trazendo o tema da esperança no slogan, mostrando que ela poderia vencer o medo, mas ainda representando uma ruptura com o sistema. Essa ruptura deixaria de ser radical, mas ela existiria. Um reposicionamento, que foi fundamental para conquistar parte de um eleitorado, que receava sua vitória, mas que estava exausto do final do governo FHC, em que a paridade do real com o dólar havia acabado, as crises na Rússia, Argentina e México, impactavam diretamente a economia brasileira e o desemprego escalonava.

A lua de mel com Lula durou até a sua entrega ao sistema. Dois anos após sua posse, Lula e o PT, que representavam a ética, a transparência, a luta popular, o rompimento com os esquemas fraudulentos, estavam chafurdados no maior escândalo de corrupção até então visto pela República: o mensalão. A decepção foi tamanha, que muitos líderes do próprio PT saíram das fileiras do partido para se organizarem em outra sigla, o PSOL. O partido virou o símbolo do sistema e esse eleitor que queria a ruptura não tinha onde se abrigar. As disputas sucessivas ficaram entre o PT e o PSDB, o partido de FHC, que não trazia nenhum alívio para aqueles que queriam a ruptura completa.

Depois de mais uma crise, essa sem precedentes, em que o país recuou em 7% seu PIB, a presidente foi impeachmada e um político tradicionalíssimo e que passou por duas tentativas de afastamento estava no poder, o disruptivo Jair Bolsonaro surge como uma esperança para desafiar o sistema. Sua trajetória impressiona e o episódio da facada dá a certeza para alguns de que esse monstro chamado sistema não o queria como presidente. Alguns dirão que, por sorte, Bolsonaro não conseguiu mostrar a que veio. Seus dois primeiros anos foram de uma pandemia global, que não deixou qualquer chefe de Estado trabalhar em condições normais. O efeito econômico da covid-19 e a soltura de Lula, até então preso, deixaram o cenário bastante turbulento e por uma margem ínfima, Lula, agora representante do sistema, venceu as eleições. Muitos, inclusive, contestam, dizendo que as urnas são programadas pelo sistema para apontar esse vencedor.

O fato é que, apesar de ter já experimentado a cadeira de presidente, Bolsonaro segue sendo para esse eleitor uma referência no combate ao status quo. Ele é a única esperança de uma mudança radical, mesmo que isso signifique rupturas institucionais. O exemplo de Bukele, em El Salvador, é sempre trazido em grupos de foco pelos defensores mais fieis do reformado capitão. Com um cenário econômico que não melhora, novas denúncias de corrupção involucrando o governo Lula, como o esquema do INSS, as trapalhadas tributárias do governo, que tem trazido o apelido de Taxadd ao ministro da Fazenda, além do enfrentamento entre Bolsonaro e a Justiça, símbolo máximo do sistema, esse eleitor tem inclusive dificuldade em aderir a outros nomes que possam substituir Bolsonaro, no campo da direita. É para esse público que o ex-presidente tenta vender seu filho como sucessor imediato e represente antissistêmico. É no medo de novas traições que Bolsonaro tenta resguardar a esperança de mudança, em seu seio familiar.

 

 

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