Ainda há juízes em Berlim?
Conta-se que, ameaçado de desapropriação pelo rei da Prússia, um moleiro se insurgiu: “ainda existem juízes em Berlim”. A frase virou símbolo de uma civilização que via no Judiciário o último bastião contra o arbítrio. No Brasil de 2025, ela ressurge, não como esperança, mas como amarga interrogação. Recentemente, ministros do Supremo Tribunal Federal e seus familiares tiveram vistos suspensos por autoridades estrangeiras. O silêncio foi quase total. Naturalizou-se o anormal. Alguns comemoraram. Outros fingiram indiferença. Mas importa e muito. A suspensão não é apenas retaliação diplomática. É atestado internacional do colapso interno da autoridade institucional do Judiciário brasileiro.
O STF, antes guardião da Constituição, passou a ser tratado como grupo político, como inimigo. O desprestígio é doméstico. Criou-se um ambiente onde se atacam ministros como criminosos togados, reduzindo a Corte a um “partido judicial”, incentivando o desacato e pregando a desobediência como forma de resistência civil.
Mas esse roteiro institucional já foi visto e o desfecho não foi feliz. Em 1968, com o AI-5, ministros foram cassados, silenciados e afastados. Victor Nunes Leal, Hermes Lima e Evandro Lins e Silva foram expulsos do tribunal por desafiarem o poder. O STF foi mutilado. O Brasil mergulhou na noite autoritária. A toga foi calada, não pela lei, mas pelo medo. E quando o Judiciário silencia, a civilização desmorona.
Chegamos até aqui porque se tornou prática política deslegitimar o Supremo. Quando decide contra um grupo, é ativista. Quando decide a favor, é aparelhado. Parte da academia, do Parlamento e da opinião pública passou a desejar um tribunal militante, que julgue como queremos, contra quem queremos. Quando isso não acontece, exige-se punição. Mas o punido é o país. A suspensão dos vistos é apenas o sintoma. O problema é mais profundo: a Justiça virou alvo. A toga, meme. A imparcialidade, desvio. A Constituição, obstáculo.
Há quem cresceu acreditando que a democracia pode prescindir de um Judiciário forte. Que respeitar decisão judicial é fraqueza. Que ministros devem temer influenciadores, parlamentares e diplomatas. Essa inversão de valores nos empurra ao abismo. Os que defendem a “liberdade” celebram o constrangimento. Os que pedem “Estado mínimo” exigem um Judiciário obediente. É populismo travestido de vigilância democrática, mais cínico, mais perigoso.
Ulisses amarrou-se ao mastro para resistir às sereias. Aqui, ministros são açoitados por resistirem ao canto das massas. E agora, como ironia trágica, não podem nem pisar nos EUA. Não por crimes, mas por contrariar interesses errados. O país assiste. Ou sorri. Como se fosse normal. Mas não é. Nunca foi. O Judiciário não é infalível. Mas é indispensável. Ministros não são imunes à crítica. Mas precisam ser protegidos da corrosão deliberada. Quem não enxerga isso talvez não mereça juízes, nem em Berlim, nem em lugar algum.