24 de julho de 2025
Politica

O impacto da reforma tributária nos sistemas de financiamento à cultura

O tema da reforma tributária tomou conta do país nos últimos anos e permanece sendo pauta de intensos debates, a exemplo do que aconteceu recentemente com o IOF. No setor cultural, ela também é discutida, ainda que seu impacto ainda seja pouco compreendido. Um dos efeitos previstos — e que gera preocupação em parte do setor — é o fim do incentivo fiscal à cultura realizado pelos Estados e Municípios brasileiros, nos moldes que acontecem hoje.

Isto porque, com a aprovação da reforma, o ICMS e o ISS serão substituídos pelo IBS, imposto de competência compartilhada entre Estados e Municípios e no qual é vedada a concessão de benefícios fiscais, salvos os expressamente previstos pela própria Constituição Federal, o que não é o caso da cultura. Assim, com a reforma, os incentivos fiscais estaduais e municipais à cultura, como funcionam hoje, não mais poderão existir.

Esse novo arranjo não incide sobre a mais famosa lei de incentivo fiscal à cultura do país, a Lei Rouanet, visto que ela é construída em cima da renúncia fiscal de outro imposto, o incidente sobre a renda, de competência da União federal, e que não será impactado diretamente pela criação do IBS. Assim, a extinção do incentivo fiscal do ICMS e ISS para a cultura não alcança o incentivo fiscal realizado por meio do IR.

Contudo, embora o novo sistema preserve a Lei Rouanet, o ambiente cultural não sairá ileso da reforma. A cultura é um campo sensível às políticas públicas, e o financiamento depende de uma rede articulada de mecanismos. A ausência dos incentivos estaduais e municipais representa um retrocesso na construção de um sistema mais plural e equilibrado, capaz de atender às realidades regionais do país.

O fato de a Rouanet escapar à reforma tributária, ao menos até agora, não significa que ela passará incólume. É provável que a ausência do fomento indireto feito pelos Estados e Municípios, por meio das respectivas renúncias de ICMS e ISS, leve a um aumento vertiginoso de projetos submetidos à Lei Rouanet como alternativa de financiamento público às manifestações artísticas e culturais. Isso pode causar uma sobrecarga nesse mecanismo, que já atingiu, em 2024, o maior volume de captação da série histórica, segundo o novo portal “Salic Comparar”, com grandes chances de ser superado em 2025. A ver.

Essa centralização na esfera federal tende a gerar disputas mais acirradas entre os proponentes e reduzir a diversidade de projetos contemplados. Estados e Municípios, ao contarem com mecanismos próprios, conseguem calibrar suas políticas conforme peculiaridades locais, o que é essencial para o fortalecimento da produção cultural fora dos grandes centros. A perda dessa autonomia compromete a descentralização e o acesso democrático aos recursos públicos.

Mas a renúncia fiscal é a única forma de financiamento à cultura? Qual a previsão constitucional desses mecanismos?

O Sistema Nacional de Cultura (SNC), previsto no art. 216-A da CF/88, traz como um de seus nove elementos os sistemas de financiamento à cultura. O termo “sistemas”, no plural, foi descrito pela Lei 14.835/2024 — norma regulamentadora do SNC — como o conjunto articulado e diversificado de mecanismos de financiamento público da área da cultura.

Essa pluralidade visa garantir ferramentas variadas, desde renúncia fiscal até editais, fundos, prêmios e compras públicas. Cada mecanismo atende a públicos e realidades diferentes, compondo um ecossistema complexo e interdependente. A diversificação é essencial para a sustentabilidade do setor, e o fim dos incentivos via ICMS e ISS compromete esse princípio, ao centralizar o fomento indireto exclusivamente na União.

Também a articulação é prejudicada. O desaparecimento de um mecanismo deveria ser equilibrado com o fortalecimento de outro, de modo a manter a funcionalidade do sistema. Reforça esse argumento um princípio do SNC pouco lembrado nas discussões: o do aumento progressivo dos recursos públicos para a cultura (art. 216-A, §1º, XII). Esse princípio não se limita ao volume de recursos, mas inclui a responsabilidade compartilhada entre os entes federados no fomento à cultura.

Além disso, o próprio acesso à Lei Rouanet é desigual. Embora nacional, sua captação se concentra nas regiões Sul e Sudeste, onde estão a maior parte das empresas com capacidade de renúncia fiscal. Com a extinção dos mecanismos estaduais e municipais, essa desigualdade tende a se aprofundar. Projetos de regiões menos industrializadas ou com baixa presença empresarial terão ainda mais dificuldades em captar recursos, ampliando disparidades regionais históricas.

Assim, apesar de a criação do IBS não afetar diretamente o Imposto sobre a Renda, a extinção dos incentivos fiscais nos Estados e Municípios levará a um desequilíbrio no fomento público à cultura, impactando de forma indireta e significativa a operacionalidade da Lei Rouanet.

Ressalvados os mecanismos específicos do audiovisual, a existência da Lei Rouanet como único mecanismo de incentivo fiscal — uma espécie de “rouanetcentrismo” — vai de encontro aos princípios da cooperação entre entes federados, da integração de políticas e da descentralização articulada de recursos. Todos esses princípios, presentes no SNC, deveriam nortear os sistemas de financiamento à cultura, que compõem um de seus pilares.

Portanto, é fundamental que o debate sobre a reforma tributária não negligencie seus impactos no campo cultural. A cultura não pode ser tratada como setor acessório. É necessário garantir um sistema robusto, articulado e plural, que assegure o direito à criação e fruição cultural, respeitando a diversidade regional e promovendo a equidade no acesso aos recursos públicos. O futuro do financiamento cultural no Brasil dependerá da capacidade de se preservar e fortalecer os mecanismos existentes, evitando retrocessos e construindo novas estratégias de cooperação federativa.

Este texto reflete única e exclusivamente a opinião do(a) autor(a) e não representa a visão do Instituto Não Aceito Corrupção (Inac). Esta série é uma parceria entre o Blog do Fausto Macedo e o Instituto Não Aceito Corrupção. Os artigos têm publicação periódica

 

 

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