29 de julho de 2025
Politica

A traição ao irmão do ‘Capitão Nascimento’ e a aposta do general que planejou matar Lula e Moraes

Quando sentou no banco dos réus, diante da 1.ª Turma do Supremo Tribunal Federal (STF), que ia conduzir seu interrogatório, o general Mário Fernandes surpreendeu quem esperava mais um depoimento cheio de negativas. Assumiu a autoria do Plano Punhal Verde e Amarelo, que previa matar o presidente Luiz Inácio Lula da Silva, o vice-presidente, Geraldo Alckmin, e o ministro do STF Alexandre de Moraes.

O então presidente da República, Jair Bolsonaro é cumprimentado pelo comandante de Operações Especiais, o general Mário Fernandes, na sede do COpEsp, em Goiânia
O então presidente da República, Jair Bolsonaro é cumprimentado pelo comandante de Operações Especiais, o general Mário Fernandes, na sede do COpEsp, em Goiânia

O que o teria levado a agir desse modo? Qual seria a aposta do general? Ainda que tenha afirmado que tudo não passava de um “pensamento digitalizado” e concluído: “Hoje eu me arrependo disso; era apenas um pensamento de um militar, que não foi compartilhado com ninguém”. Ele admitiu que imprimiu o plano no Palácio do Planalto, mas disse que, logo depois, rasgou os papéis. “Imprimi para não forçar a vista.”

Ninguém acreditou. Primeiro, porque ao imprimir o plano, o oficial o fez uma vez em três cópias. Tentou justificar-se, dizendo que se tratava de uma configuração da impressora. Foi motivo de chacota entre seus colegas, até porque o documento foi ainda impresso em dias diferentes. Para entender a aposta de Fernandes com seu depoimento seria necessário conhecer sua história e a dos companheiros com quem conviveu no Exército. Esse é o caso da família Pimentel.

Era 21 de agosto de 2021, quando o general de brigada Carlos Alberto Rodrigues Pimentel recebeu do colega, Gustavo Henrique Dutra de Menezes, recém-promovido a general de divisão, a chefia do Comando de Operações Especiais do Exército, o COpEsp. Era a segunda vez em pouco mais de um ano que Dutra passava o comando para alguém da família Pimentel. Pouco antes, em 11 de setembro de 2020, ele entregaria a Academia Militar das Agulhas Negras (Aman) para as mãos do general Paulo Roberto Rodrigues Pimentel, irmão de Carlos Alberto.

O general Dutra, vice-chefe do Estado-Maior do Exército, durante solenidade em Brasília, no dia 19 de abril deste ano
O general Dutra, vice-chefe do Estado-Maior do Exército, durante solenidade em Brasília, no dia 19 de abril deste ano

Os três desempenhariam papéis-chave na crise que levou ao golpe fracassado de 2022. Tinham formação como Forças Especiais (FE), eram kids pretos, uma tradição que deixou a família Pimentel famosa no País. Tudo por causa do irmão dos dois generais, o ex-capitão do Batalhão de Operações Especiais (Bope), do Rio, Rodrigo Rodrigues Pimentel, autor do livro Elite da Tropa, que inspirou o personagem Capitão Nascimento, interpretado pelo ator Wagner Moura nos filmes do diretor José Padilha.

Filhos de um general, os irmãos Pimentel se destacaram tanto na Segurança Pública quanto na Defesa. Naquele ano, o primeiro deles a se ver enredado nas estrepolias do bolsonarismo foi Paulo Roberto. Comandava a Aman havia menos de um ano quando Bolsonaro tentou invadir o pátio monumental da escola, em Resende, com uma motociata, durante a entrega dos espadins. Era 14 de agosto de 2021.

Desde o começo da pandemia de covid-19, era a primeira vez que a tradicional festa se realizaria com a presença de familiares e de autoridades. Paulo Roberto disse aos generais e ministros Luiz Eduardo Ramos – outro Força Especial – e Walter Braga Netto, que acompanhavam o presidente, que só havia um jeito de Bolsonaro promover aquela arruaçana Aman: que nomeassem outro general para comandar a academia.

Walter Braga Netto, Luiz Eduardo Ramos, Jair Bolsonaro, Paulo Rodrigues Pimentel e Paulo Sérgio Nogueira Oliveira na Aman, em 14 de agosto de 2021, durante a cerimônia de entrega de espadim aos cadetes da Turma Bicentenário do General João Manoel Menna Barreto
Walter Braga Netto, Luiz Eduardo Ramos, Jair Bolsonaro, Paulo Rodrigues Pimentel e Paulo Sérgio Nogueira Oliveira na Aman, em 14 de agosto de 2021, durante a cerimônia de entrega de espadim aos cadetes da Turma Bicentenário do General João Manoel Menna Barreto

Um ano depois, foi a vez de Carlos Alberto se ver às voltas com a contaminação política dos quartéis provocada pelo ex-presidente e pelo seu séquito. Quem acompanhou de perto esse fenômeno na caserna afirma que o canto do bolsonarismo atraiu oportunistas, bem como a uma turma que se deixou envolver, como se “vivesse em Nárnia”. É nesse momento que entram outros personagens nessa história, todos ligados à história do COpEsp, o comando cuja sede fica em Goiânia.

O CopEsp e a 3.ª Brigada de Infantaria Mecanizada, em Cristalina (Goiás), ao lado do Comando de Artilharia do Exército, são as principais tropas do Comando Militar do Planalto (CMP), subordinado ao Comando do Exército. Sem elas, ninguém fecha ou invade o Congresso, o STF e o Palácio do Planalto. À frente do CMP em 2022 estava o general Dutra, que foi comandá-lo após passar o COpEsp a Carlos Alberto Pimentel.

Demonstrando a força que os kids pretos tinham então na instituição, Dutra teve como chefe nos momentos cruciais da crise de 2022 até 2023 dois outros FEs: os comandantes do Exército Marco Antônio Freire e Júlio César de Arruda, que seria nomeado por Lula para comandar a Força Terrestre, apesar das opiniões contrárias de quatro importantes generais consultados no processo de escolha – eles preferiam Valério Stumpf, mas eprevaleceu a opinião de um quinto, Enzo Peri.

BRASILIA DF NACIONAL 05-01-2023 JULIO CESAR DE ARRUDA EXERCITO Indicado pelo presidente eleito Luiz Inácio Lula da Silva, o general Julio Cesar de Arruda assumirá o comando do Exército na próxima sexta-feira, dois dias antes da posse presidencial FOTO MARCOS CORREA -PR
BRASILIA DF NACIONAL 05-01-2023 JULIO CESAR DE ARRUDA EXERCITO Indicado pelo presidente eleito Luiz Inácio Lula da Silva, o general Julio Cesar de Arruda assumirá o comando do Exército na próxima sexta-feira, dois dias antes da posse presidencial FOTO MARCOS CORREA -PR

Dutra, que deve passar para a reserva no próximo dia 30, deixando a vice-chefia do Estado-Maior do Exército, contava ainda em Cristalina com um último personagem dessa história: o general Marcus Augusto da Silva Neto, comandando a 3ª Brigada. O que os kids pretos Dutra, Carlos Alberto, Paulo Roberto, Freire Gomes e Arruda não sabiam é que um antigo conhecido deles, Mário Fernandes, então número 2 da Secretaria-Geral da Presidência, começava a se movimentar, pensando em um voo mais alto na Esplanada.

Fernandes era um coronel que em circunstâncias normais não teria saído general. As promoções para brigada em sua turma eram dadas como encerradas quando uma nova vaga abriu com a ida de um colega para uma missão nos EUA. Exímio atirador e saltador livre, o coronel era visto pelos colegas como um homem que, apesar da vaidade, não era um desagregador. Pelo contrário. Exercera uma liderança “muito forte” entre tenentes e capitães do 1.º Batalhão de Forças Especiais (1.º BFEsp).

Na época, o então coronel Dutra comandava o 1.º Batalhão de Ações e Comandos (1.º BAC). Ele e Fernandes estiveram sob as ordens do general Freire Gomes, que chefiara o COpEsp e admirava o subordinado do 1º BFEsp. Quem conviveu com Mário Fernandes nesse período lembra de outra amizade fundamental para a sua trajetória: a do general Ramos. De fato, quando saiu sua promoção a general, Mário era visto como o “02 do general Ramos”, então comandante da 1.ª Divisão de Exército (1.ª DE).

O general Carlos Alberto Rodrigues Pimentel recebe o cumprimento do general Costa neves, comandante da Amazônia, ao deixar, em 9 de dezembro de 2024, a  chefia do Centro de Coordenação de Operações (CCOp) do Comando Militar da Amazônia
O general Carlos Alberto Rodrigues Pimentel recebe o cumprimento do general Costa neves, comandante da Amazônia, ao deixar, em 9 de dezembro de 2024, a chefia do Centro de Coordenação de Operações (CCOp) do Comando Militar da Amazônia

E foi o lobby dos FEs o responsável por levar o Alto-Comando a tornar general de brigada, em novembro de 2016, Fernandes, um infante da turma de 1986 da Aman. Logo em seguida, o kid preto foi escolhido para comandar a Brigada Aeromóvel, em Caçapava (SP), uma das meninas dos olhos do Exército, antes de assumir em 2018, o COpEsp. Imaginou, então, que a nomeação como general de divisão estaria garantida.

Foi em 2020, quando foi barrado na promoção para divisão, que Mário Fernandes sentiu-se injustiçado. Começava ali o ressentimento nutrido em relação ao Alto-Comando, o que ficaria registrado nas mensagens flagradas pela PF que ele trocou com colegas nos meses finais de 2022, discutindo, inclusive, a dissolução do órgão colegiado do Exército.

Foi trabalhar no Palácio do Planalto, com o general Ramos, em um momento em que Bolsonaro resolvera afastar o amigo de infância do núcleo duro das decisões de governo – algo que Ramos comemora hoje em dia como um “livramento”, que lhe permitiu passar batido em todas as investigações sobre o golpe. E foi ali, no Planalto, que Mário começou a ganhar evidência e a ascender entre as hostes bolsonaristas. Logo pensou que, em um futuro governo Bolsonaro, seria ele a ocupar a cadeira na Esplanada, em vez de Ramos.

O general de Exército Luiz Eduardo Ramos Baptista Pereira, comandante militar do Sudeste
O general de Exército Luiz Eduardo Ramos Baptista Pereira, comandante militar do Sudeste

Começou, então, a mobilizar os antigos tenentes e capitães, bem como novos contatos, entre os fanáticos que acamparam em frente ao quartel-geral do Exército, na esperança de que a Força aderisse à intentona que, segundo a acusação, preparava-se no Planalto. Foi nessa época que o coronel Élcio Franco recebeu uma mensagem do ex-major Airton Barros, um dos réus ao lado de Mário Fernandes no processo do golpe.

Franco é outro FE que então habitava o Planalto. Trabalhava com Eduardo Pazuello (o FE que comandou o Ministério da Saúde) e, depois, na Casa Civil com Ramos e com o general Braga Netto. Na mensagem entre eles, Barros disse ao coronel que era preciso convencer o general Carlos Alberto Pimentel para que ele mobilizasse seus 1,5 mil homens para o golpe, impedindo a posse de Lula da Silva.

O ex-major mantinha contato com Braga Netto e este com Mário Fernandes, que criou, segundo a acusação, o plano Punhal Verde e Amarelo, bem como a Operação Psicológica feita para emparedar o Alto-Comando da Força a fim de empurrá-lo para o golpe ou, caso isso não fosse possível, servisse de estímulo para que os coronéis, comandantes de batalhões, bypassassem os generais, rompendo a hierarquia e a disciplina da tropa.

Trecho da conversa entre o general Mário Fernandes e o coronel Vieira de Abreu descoberto pela Polícia Federal
Trecho da conversa entre o general Mário Fernandes e o coronel Vieira de Abreu descoberto pela Polícia Federal

Não só. Mário Fernandes procurou o general Arruda, já nomeado comandante do Exército, com a proposta de que desse um golpe. Arruda chamava Mário de “32″, uma referência ao número do subordinado no curso de operações especiais. O encontro entre os dois foi no gabinete do Departamento de Engenharia de Construção do Exército, ocupado por Arruda até tomar posse como comandante da Força, em 30 de dezembro de 2022. Só em maio, ao ser ouvido no STF, Arruda negou ter recebido a proposta do golpe.

Após o fracasso da intentona de 8 de janeiro e com a decisão de Lula de retirar o general Arruda do comando do Exército, em razão de sua resistência em afastar o coronel Mauro Cid do comando do 1º BAC, o general Tomás Miguel Ribeiro de Paiva assumiu o comando da Força. As mudanças que se seguiram levaram à saída de Carlos Alberto Pimentel do COpEsp. Em seguida, Dutra seria afastado do CMP.

Não se sabia ainda a extensão, mas suspeitava-se da participação de FEs nos acontecimentos que antecederam a intentona do dia 8, não só no acampamento em Brasília de onde partiu a multidão que invadiu a sede dos Três Poderes, mas também nos ataques aos generais. Dentro do Exército, o comando apostava na pacificação.

Mensagens do tenente-coronel Rafael Martins de Oliveira durante a Operação Copa 2022, para 'filmar' e eventualmente 'prender' Moraes
Mensagens do tenente-coronel Rafael Martins de Oliveira durante a Operação Copa 2022, para ‘filmar’ e eventualmente ‘prender’ Moraes

O general Silva Neto, que mantivera durante toda a crise a 3.ª Brigada calma em Cristalina, recebera a missão de cuidar das relações do Exército com o Congresso, como parte do esforço do novo comandante de reconstruir as relações da Força com o poder Civil. Os fatos de 2022 e de 2023, no entanto, deixaram marcas. Poucos fora da caserna notaram quando Carlos Alberto Pimentel perdeu a promoção para general de divisão e passou para a reserva, em dezembro de 2024.

O general, apesar de todo o tumulto que envolvera os FEs naquele período, dizia aos amigos que se sentia aliviado, pois acreditava que nenhum subordinado sob suas ordens cometera nenhuma ilegalidade. Tudo começou a mudar quando a PF deflagrou a Operação Tempus Veritatis e, depois, a Operação Contragolpe, ambas em 2024.

“O que mais me deixa triste é que fui traído. Eu achava que havia controlado tudo, mas não controlei pessoas que estavam despachando comigo”, desabafou o general. Do COpEsp saíram os oficiais que executaram a vigilância da casa do ministro Moraes. Era o Plano Copa 2022. Nele estariam implicados os tenentes-coronéis Rodrigo Bezerra de Azevedo, Rafael Martins de Oliveira e Hélio Ferreira Lima.

Militares do Comando de Operações Especiais, em Goiânia: dali saíram parte dos oficiais acusados pela Polícia Federal
Militares do Comando de Operações Especiais, em Goiânia: dali saíram parte dos oficiais acusados pela Polícia Federal

As revelações tiveram um impacto enorme entre os FEs, mesmo entre aqueles que não embarcaram na canoa bolsonarista. Uma das poucas exceções, por enquanto, foi o general André Lúcio Ricardo Couto, que assumiu o comando de Goiânia após os eventos que levaram ao 8 de janeiro. André Lúcio acaba de ser promovido a general de divisão depois das reformas levadas a cabo no COpEsp sob a supervisão do atual comandante militar do Planalto, o general Ricardo Piai Carmona.

Foi nesse ambiente, quando a caserna procurava, fechar as feridas – além de esperar que o STF saiba separar o joio do trigo, punindo Mário Fernandes, Braga Netto e Cid, mas reconhecendo que alguns dos réus foram arrastados para essa trama sem que tivessem uma participação efetiva na execução das operações clandestina – que os réus do núcleo 2 do golpe prestaram depoimento no STF.

Ao assumir a autoria do plano, Mário Fernandes se distanciou da postura de Bolsonaro, que chegou a chamar de malucos os apoiadores que pediam um golpe de Estado. Ou Braga Netto, que alegou estar se divertindo na praia no dia 8 de janeiro enquanto uma multidão, que acreditava nos líderes, arriscava o pescoço pelos chefes – e centenas estão na cadeia em razão dessa escolha.

Os colegas do general não têm dúvida de que ele sabe que sua causa é perdida, que está condenado no Supremo, até porque é difícil acreditar na versão do plano em três vias. A impostura de Mário Fernandes não precisou de mais nada para ficar impressa na processo. A aposta do general seria uma só: a anistia como resultado da vitória do bolsonarismo e de seus aliados em 2026 ou por meio das sanções de Trump ao Brasil. E não importa o preço pago pelos amigos, pelo Exército e pelo País.

 

 

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