‘Boa tarde, Excelência’; ’18h aqui em casa’; diálogos de desembargador revelam fraude de R$ 14 mi
A Operação 18 Minutos, da Polícia Federal, resgatou diálogos entre juízes e advogados que indicam como uma organização criminosa supostamente formada por desembargadores, servidores e advogados se instalou ‘nas estruturas’ do Tribunal de Justiça do Maranhão durante dez anos para fraudes na emissão de alvarás contra o Banco do Nordeste com levantamento de valores milionários – os magistrados teriam arrecadado pelo menos R$ 54,7 milhões em propinas.
Em denúncia de 313 páginas, a Procuradoria-Geral da República aponta ‘mercancia de decisões’ no Tribunal de Justiça do Maranhão.
A Procuradoria requereu ao Superior Tribunal de Justiça a perda dos cargos públicos de três desembargadores e dois juízes – além da cassação da aposentadoria de um quarto desembargador – acusados de corrupção passiva, lavagem de dinheiro e organização criminosa.

São acusados os desembargadores Nelma Celeste Souza Silva Sarney Costa – cunhada do ex-presidente José Sarney -, Luiz Gonzaga Almeida Filho, Antônio Pacheco Guerreiro Júnior e Marcelino Everton Chaves (aposentado) e os juízes de primeiro grau Alice de Souza Rocha e Cristiano Simas de Souza. O Estadão pediu manifestação do Tribunal e dos juízes e servidores citados. O espaço está aberto.
A denúncia, subscrita pela subprocuradora-geral Luiza Cristina Frischeisen, imputa ao grupo um ‘sofisticado’ esquema de corrupção e lavagem de dinheiro que teria operado na Corte desde 2015.
Também são acusados os ex-assessores de desembargadores Paulo Martins de Freitas Filho, Lúcio Fernando Penha Ferreira e Zely Reis Brown.
Treze advogados estão entre os denunciados. Ao todo, são 29 acusados na Operação 18 Minutos.
A operação foi desencadeada no dia 14 de agosto de 2024, por ordem do ministro João Otávio de Noronha, do STJ. A investigação recebeu esse nome porque 18 minutos foi o tempo entre uma decisão judicial e um saque de R$ 14,1 milhões contra o Banco do Nordeste. Um outro saque foi de R$ 3,4 milhões.
O levantamento do primeiro alvará, no contexto da execução de título extrajudicial, ocorreu no dia 5 de outubro de 2015. “Os elementos reunidos demonstram que a organização criminosa adota como modo de atuação principal o ajuizamento de execuções de honorários advocatícios contra o Banco do Nordeste”, afirma a Procuradoria.
A ‘causa de pedir’ em tais processos foi o direito de crédito do advogado Francisco Xavier de Souza Filho, que se desligou do Banco do Nordeste em 13 de março de 1997. O Estadão tentou contato com um celular de Xavier e em seu escritório em São Luís. O espaço está aberto.
Em 19 de junho de 2000, Xavier ajuizou ação de cobrança contra a instituição financeira, visando ao arbitramento de honorários advocatícios que seriam devidos por sua atuação em um processo.
O banco negou a atuação do advogado e alegou que Xavier ‘omitiu a conversão de cruzeiro para cruzeiro real, o que provocou um salto exorbitante no valor cobrado’.

Após quase duas décadas de tramitação do processo, em 12 de julho de 2019, a juíza Alice Rocha, da 5ª Vara Cível de São Luís, reconheceu a prescrição da cobrança dos honorários advocatícios. O advogado interpôs recurso de apelação, distribuído inicialmente para a desembargadora Maria das Graças de Castro Duarte, que se declarou suspeita por ‘motivo de foro íntimo’.
O recurso foi redistribuído para o desembargador Guerreiro Júnior. No dia 12 de março de 2020, o Ministério Público do Estado se manifestou pelo desprovimento do recurso de Francisco Xavier. Um ano depois, em março de 2021, o desembargador pediu a inclusão do processo em pauta para julgamento.
A sessão de julgamento da 2.ª Câmara Cível do Tribunal, composta pelos desembargadores Guerreiro Júnior (relator), Nelma Sarney e Luiz Gonzaga, foi iniciada no dia 27 de abril daquele ano, mas acabou adiada em razão de pedido de vista de Luiz Gonzaga.
No dia seguinte ao pedido de vista, o desembargador recebeu, em sua casa, o advogado Felipe Ramos, filho de Francisco Xavier. O Estadão também tentou contato com Felipe. O espaço está aberto.
Antes da visita ao magistrado, Felipe enviou mensagem via WhatsApp – a Polícia Federal resgatou o diálogo em perícia realizada nos celulares dos envolvidos.
‘Boa tarde, Excelência. Tudo bem? Aqui é Felipe, filho de Xavier. Poderia dar uma palavra com Vossa Excelência?’
Luiz Gonzaga respondeu. ‘Pode’
‘Qual é o melhor horário para o senhor?’, perguntou o filho de Francisco Xavier.
‘18h aqui em casa’, sugeriu o desembargador.
‘Blz. Combinado’
Para a Procuradoria, ‘o tom da mensagem, sem maiores introduções entre os agentes (’aqui é Felipe, filho de Xavier’), ‘evidencia que os denunciados já se conheciam previamente’.
A Polícia Federal apurou que poucos dias antes da reunião na casa do desembargador, Felipe Ramos – pessoalmente e por meio de seu escritório – e Sirley Sousa ‘haviam sacado milhares de reais de forma fracionada, os quais foram entregues em mãos ao desembargador’. O dinheiro em espécie foi depositado parceladamente na conta de Luiz Gonzaga.
No mês da conclusão do julgamento, maio de 2021, o desembargador recebeu R$ 25 mil em sete depósitos, a maioria de R$ 3 mil.
“O encontro velado com o advogado durante o pedido de vista, somado às vultosas movimentações de dinheiro em espécie, comprovam a atuação criminosa de Luiz Gonzaga no julgamento de apelação cível”, sustenta a PGR. “Ele solicitou e efetivamente recebeu vantagem indevida como contraprestação ao voto proferido.”
No dia 4 de maio de 2021, os desembargadores Guerreiro Júnior, Nelma Sarney e Luiz Gonzaga, por unanimidade, ‘de forma contrária ao parecer do Ministério Público, deram provimento ao recurso de Francisco Xavier, para afastar a prescrição e fixar os honorários advocatícios em 10% sobre o valor do acordo celebrado na execução de título extrajudicial’.

“As provas demonstram claramente que os votos dos três desembargadores foram proferidos com infração de dever funcional, em razão da solicitação e do efetivo recebimento de vantagens indevidas”, afirma a Procuradoria.
‘NOBRE DOUTOR’
A análise do celular de Luiz Gonzaga ‘evidencia que o desembargador recebeu em sua residência, em diversas ocasiões, o advogado Felipe Ramos’. “O teor das conversas deixa claro que os assuntos tratados, reservadamente, são processos de interesse do advogado, inclusive processos em que Francisco Xavier figura como parte”, diz a PGR.
A Polícia Federal destacou outro diálogo entre o advogado e o magistrado nos autos da Operação 18 Minutos.
Dia 26 de outubro de 2022 o advogado escreveu. ‘Boa noite, Excelência. Aqui é Felipe, filho de Xavier. Gostaria de dar uma palavra com o nobre doutor assim que for possível. É sobre um julgamento do processo do meu pai que está na pauta virtual das Câmara Cíveis Reunidas’.
Luiz Gonzaga: ‘Pode ligar’
Em 9 de maio de 2024, um novo contato. ‘Boa tarde, doutor. Posso falar com o senhor? E caso positivo, qual o melhor horário?’, indagou o advogado.
Eram 17h48. ‘Estou chegando em casa, pode vir’, devolveu Luiz Gonzaga.
‘Tranquilo doutor, estou indo’.
A varredura no celular do desembargador mostra suas relações próximas com um outro advogado, Carlos Luna, a quem também recebia em sua residência, ‘para fazer ajustes sobre processos’, diz a investigação.

‘CELÊNCIA’
No dia 6 de agosto de 2024, Luna escreveu. ‘Celência, boa tarde primeiramente feliz aniversário que eu posso passar na sua casa’
No dia 7 de agosto, às 19h34. ‘Excelência. Posso ir agora?’
‘Pode’
A Polícia Federal ressalta que a organização criminosa era composta de três núcleos.
Núcleo judicial, em que operam desembargadores, magistrados e servidores do Tribunal, mediante o direcionamento de processos, manobras processuais e prolação de decisões judiciais previamente acertadas, em benefício da organização criminosa;
Núcleo causídico, que conta com advogados que atuam de forma coordenada com os julgadores para conseguir decisões judiciais em favor da organização criminosa, sobretudo levantamentos de alvarás em desfavor do Banco do Nordeste do Brasil (BNB);
Núcleo operacional, responsável por executar a ocultação e dissimulação da origem, da localização, da propriedade, da movimentação e da disposição do dinheiro obtido com os crimes antecedentes, repassando-o aos demais membros e núcleos da organização.
Para os investigadores, ‘a relação entre os denunciados dos núcleos judicial e causídico ultrapassa, e muito, uma mera relação profissional entre advogados e magistrados’.
“Trata-se, em verdade, de verdadeira organização criminosa que atua de forma estável e permanente há mais de uma década no Poder Judiciário maranhense.”
O Banco do Nordeste tentou barrar a ofensiva que culminou em novo alvará de R$ 3,4 milhões. Assim que o processo foi redistribuído para a 5.ª Vara Cível de São Luís, a instituição opôs exceção de suspeição em face da juíza Alice Rocha e interpôs agravo contra a decisão do desembargador Marcelino Chaves, de encaminhamento do processo para a então corregedora Nelma Sarney.
A PF descobriu que Alice Rocha não reconheceu a suspeição alegada pelo banco e o processo subiu para o tribunal. Os autos chegaram ao desembargador Luiz Gonzaga.
A exceção de suspeição foi remetida ao gabinete de Luiz Gonzaga no dia 30 de setembro de 2015, às 12h21, e julgada improcedente às 17h. Às 17h31, foi enviado ofício à 5ª Vara Cível comunicando a improcedência da exceção de suspeição.
Em menos de seis horas, a exceção de suspeição oposta pelo Banco do Nordeste foi recebida e julgada improcedente, com a expedição da ordem ao juízo de origem.
De outro lado, o agravo regimental foi remetido ao desembargador Marcelino Chaves no dia 15 de setembro de 2015 e apreciado somente em 16 de dezembro, ‘ocasião em que o recurso da instituição financeira não foi conhecido’.

“A celeridade seletiva nas decisões teve como justificativa a adesão dos desembargadores à organização criminosa e o ajuste das decisões entre os magistrados e advogados”, anota a PGR.
“Assim como Nelma Sarney e Marcelino Chaves, o desembargador Luiz Gonzaga também possui vínculos associativos estáveis e permanentes, que ultrapassam o mero relacionamento profissional, com os membros do núcleo causídico.”
A PF constatou que um dos advogados encaminhou direto para o celular do desembargador memoriais da ação de suspeição. Segundo a denúncia, a decisão de Luiz Gonzaga foi dada ‘em razão da solicitação de vantagem indevida, a qual foi efetivamente paga e, em seguida, ocultada e dissimulada mediante dezenas de depósitos fracionados de dinheiro em espécie nas contas do desembargador’.
EM MÃOS
Após a rejeição da exceção de suspeição por Luiz Gonzaga, a juíza Alice Rocha, ‘contrariando os cálculos realizados pela contadoria – que havia concluído pelo saldo remanescente de R$ 490,8 mil -, determinou a imediata liberação de alvará em favor de Francisco Xavier.
O alvará foi levantado no dia 5 de outubro de 2015 e o valor integral que estava na conta judicial foi depositado na conta de Francisco Xavier, especificamente R$ 14.163.443,18. No mesmo dia, às 13h41, Xavier transferiu todo o valor para seu filho, Felipe Ramos que, em seguida, enviou uma transferência eletrônica de R$ 12 milhões para sua cunhada, Janaína Lobão.
Após receber a transferência, segundo rastreamento da Polícia Federal, Janaína sacou R$ 12,010 milhões, sendo R$ 1.7 milhão debitados com a emissão de 19 cheques Orpag e R$ 10,3 milhões por meio de 18 saques em espécie, de forma fracionada.
Após as operações, a conta de Janaína ficou praticamente zerada, com saldo de R$ 38,58.
A decisão foi dada em 2 de outubro de 2015 e o alvará expedido no mesmo dia, ‘igualmente em razão de ajuste ilícito (solicitação/oferecimento de vantagem indevida), tendo a magistrada recebido, como contrapartida, dinheiro em espécie em mãos e em sua conta bancária, mediante depósitos fracionados’.
Segundo a PGR, no curso dos processos judiciais, ‘a organização criminosa utilizou afastamentos e substituições de magistrados, combinação de decisões, seguidas de movimentações financeiras para ocultar e dissimular a origem dos valores obtidos mediante a negociação de provimentos jurisdicionais’.
‘MERCANCIA DE DECISÕES NO TRIBUNAL’
“Desde já, destaca-se que não se trata de avaliar o ‘acerto’ ou ‘erro’ das decisões judiciais apontadas na denúncia, pois os atos jurisdicionais decorreram de prévio acerto criminoso entre os magistrados e os integrantes da organização criminosa”, atesta o Ministério Público Federal.
Segundo a denúncia, ‘em outras palavras, as decisões, que foram instrumentos imprescindíveis para a consumação dos crimes, estavam maculadas desde a origem’.
“Para que fique claro que não se trata de responsabilização objetiva dos magistrados ou de criminalização de interpretação jurídica, destaca-se que as decisões foram encomendadas, negociadas, isto é, decorreram de atos de corrupção”, segue a acusação. “Ao final, mediante atos autônomos de lavagem de dinheiro, os valores levantados nos processos reverteram diretamente em benefício pessoal dos magistrados e dos demais integrantes da organização criminosa. O objeto da presente denúncia, portanto, é a imputação de ‘mercancia de decisões’.