Erro de Tipo: uma análise penal do caso Rota x Polícia Civil
No último dia 11 de julho, o Brasil assistiu atônito à divulgação das imagens de uma operação policial ocorrida na zona sul de São Paulo que terminou de forma trágica: um policial civil alvejado e morto por um policial militar, enquanto ambas as instituições realizavam diligências simultâneas no local.
Toda a ação foi captada pela câmera corporal do PM da Rota que, ao adentrar em uma viela, avistou um homem – seu colega de outra corporação – trajando moletom escuro, calça jeans e com uma arma de fogo em punho. Todavia, em fração de segundos, sem verbalização ou qualquer tentativa de abordagem, o policial militar efetuou disparos que resultaram na morte da vítima, o policial civil Rafael Moura, de 38 anos.
As imagens são dramáticas e chocaram toda a comunidade ligada à Segurança pública. No âmbito penal, o devido enquadramento jurídico gerou inúmeras discussões entre juristas e operadores do Direito.
Mas antes de adentrar na análise penal deste lamentável e fatídico episódio, cabe sopesar – especialmente ao público leigo –, que ambas Polícias realizam diversas operações e diligências diuturnamente e, dificilmente, há comunicação entre as organizações no afã de informar acerca dos trabalhos realizados por cada uma delas; procedimento paradigmático que merece ser reavaliado entre as secretarias de segurança pública e suas inteligências.
Outro ponto relevante é que a Polícia Civil exerce, por mandamento constitucional, a função de polícia judiciária e, assim, realiza investigações e operações de inteligência que exigem vestes civis, ou seja, roupas comuns para que, logicamente, não haja identificação pelos suspeitos e, consequentemente, comprometimento do trabalho.
Art. 144. A segurança pública, dever do Estado, direito e responsabilidade de todos, é exercida para a preservação da ordem pública e da incolumidade das pessoas e do patrimônio, através dos seguintes órgãos:
[…]
IV – polícias civis;
V – polícias militares e corpos de bombeiros militares.
[…]
§ 4º Às polícias civis, dirigidas por delegados de polícia de carreira, incumbem, ressalvada a competência da União, as funções de polícia judiciária e a apuração de infrações penais, exceto as militares.
§ 5º Às polícias militares cabem a polícia ostensiva e a preservação da ordem pública;
Entretanto, quando há operações – como a deste caso concreto na favela do Fogaréu, região do Campo Limpo –, o procedimento é expor, ao menos, o distintivo da Polícia Civil a fim de identificar o agente do Estado à sociedade; como ocorrido neste caso de São Paulo.
Mas infelizmente, o distintivo da Polícia Civil não foi suficiente para evitar essa tragédia institucional que, agora, desafia os limites do Direito Penal.
Desafios analíticos porque, à primeira vista, o caso se semelha a um homicídio doloso por dolo eventual: quando o agente não quer diretamente o resultado, mas prevê sua ocorrência como possível e, mesmo assim, decide prosseguir com a conduta assumindo o risco de produzi-lo. Aqui, não há vontade direta, mas há aceitação consciente da possibilidade do resultado típico morte ou “se apresenta como decisão pela possível lesão do bem jurídico”, nas palavras do jurista alemão, Claus Roxin.
Inclusive, essa foi a capitulação criminal do indiciamento. Conforme o inquérito policial, o homicídio doloso por dolo eventual teria se dado pois o autor (policial militar) teria assumido o risco de matar ao agir com uso desproporcional da força desferindo quatro (4) tiros contra a vítima (policial civil).
No Direito Penal, os conceitos de “Dolo” e “Culpa” são fundamentais para a caracterização da responsabilidade criminal.
Inicialmente, destaca-se que o dolo é a vontade consciente de realizar uma conduta típica (leia-se: aquela cuja ação ou omissão está expressamente descrita e caracterizada como crime no Código Penal ou em legislação especial).
Salienta-se, ainda, que o dolo pode ser tanto “direto” – quando o agente deseja o resultado -, como “eventual”, quando ele aceita o risco de produzi-lo. (MIRANDA COUTINHO, 2024)
O episódio é traumático sob todos os ângulos! Ponto em que se exige, portanto, uma acurácia técnica, serena e profunda ao manejar este sensível enredo.
No exemplo em tela – de acordo com as informações difundidas –, o policial militar da Rota não sabia quem era a vítima, desconhecia haver uma operação da Polícia Civil no local e, em vista disso, acreditava estar diante de um criminoso armado prestes a agir.
Desta feita, o PM da Rota atirou por, em fração de segundos, presumir estar diante de uma ameaça real, atual e iminente. Então, o militar estaria respaldado pela legítima defesa do art. 25, do Código Penal?
Art. 25 – Entende-se em legítima defesa quem, usando moderadamente dos meios necessários, repele injusta agressão, atual ou iminente, a direito seu ou de outrem.
Em tese não, pois há uma presença inequívoca sobre a falsa percepção – ou falso juízo – da realidade por parte do militar.
Aqui, o ordenamento jurídico brasileiro se amolda à invocação do instituto do “Erro de Tipo Essencial” (art. 20, Código Penal), pois o erro do policial militar não foi sobre a existência ou não de uma causa de exclusão da ilicitude, mas sim, sobre a própria configuração da realidade concreta: ele errou sobre a identidade da vítima e a natureza da conduta que ela realizava.
Art. 20 – O erro sobre elemento constitutivo do tipo legal de crime exclui o dolo, mas permite a punição por crime culposo, se previsto em lei.
§ 1º – É isento de pena quem, por erro plenamente justificado pelas circunstâncias, supõe situação de fato que, se existisse, tornaria a ação legítima. Não há isenção de pena quando o erro deriva de culpa e o fato é punível como crime culposo
Como visto, não há respostas simples neste estudo de caso. Afinal, em tese, o autor dos disparos não queria matar um inocente, muito menos um colega de farda, mas alguém que, segundo seu juízo equivocado, apresentava-lhe risco real e imediato; hipótese em que o erro recai sobre a situação fática.
Assim, essa falsa percepção da realidade traz diferentes características do “Erro de Tipo Essencial”, podendo ser invencível (inevitável) – quando não poderia ser evitado com a diligência normal –, ou vencível (evitável), quando poderia ter sido evitado com a devida atenção.
Ao analisar as tristes imagens da ocorrência, percebe-se a velocidade em que as ações se deram; em segundos. Isto posto, reflete-se: a reação do autor dos disparos foi razoável e inevitável? Ou será que haveria possibilidade para realizar uma abordagem verbal naquele cenário de tensão e risco? Ou a conduta do policial da Rota, treinado, atirando quase instantaneamente ao avistar “aquele homem”, foi precipitada?
Se restar demonstrado que havia outros meios para que o agente pudesse verificar a situação real – por exemplo, se tivesse progredido com cuidado nas vielas, verbalizando ordem de parada na abordagem, observado insígnias e/ou agido com maior cautela tática –, então o “Erro de Tipo Essencial” poderá ser considerado “vencível ou evitável”, hipótese em que o dolo será afastado, restando a possibilidade de imputação culposa de homicídio (art. 121, §3º, do CP) ou, ainda, na forma de aumento de pena por uma suposta inobservância técnica de profissão (art. 121, § 4º, do CP).
Art. 121. Matar alguém:
[…] § 3º Se o homicídio é culposo
[…] § 4o No homicídio culposo, a pena é aumentada de 1/3 (um terço), se o crime resulta de inobservância de regra técnica de profissão, arte ou ofício […]
Por fim, essa tragédia que vitimou o policial civil não deve ser usada como pretexto para simplificações punitivistas ou para absolvições automáticas. É justamente nesse tipo de acontecimento hostil que o Direito Penal precisa demonstrar maturidade técnica e prudência dogmática.
O Direito Penal não existe para atender o clamor das manchetes, mas para realizar justiça conforme os princípios do devido processo legal. Exige-se serenidade e precisão para poder separar tragédia de crime; Erro de Dolo; falha humana de vontade homicida.
Isso, porque quando o erro mata, o que está em jogo não é apenas a vida perdida, mas a própria integridade do sistema penal e do que se entende por Justiça.
Meus sinceros sentimentos aos colegas de São Paulo e suas famílias.
Referências:
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BRASIL. Decreto-Lei nº 2.848, de 7 de dezembro de 1940 (Código Penal). Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto-lei/del2848compilado.htm. Acesso em: 23 julho 2025.
BITENCOURT, Cezar Roberto. Erro de tipo e erro de proibição: uma análise comparativa. 6. ed. São Paulo: Saraiva, 2013.
BOLEA BARDON, Carolina. El exceso intensivo en la legitima defensa putativa. Anuario de Derecho Penal y Ciências Penales, Madrid, 1998. Disponível em: https://dialnet.unirioja.es/servlet/articulo?codigo=234107. Acesso em: 23 jul. 2025.
CIRINO DOS SANTOS, Juarez. A moderna teoria do fato punível. Rio de Janeiro: Freitas Bastos, 2002.
COUTINHO, Thiago de Miranda. Dolo eventual e culpa (in)consciente: Da responsabilidade penal às explicações de Freud. Portal Migalhas. Disponível em: https://www.migalhas.com.br/depeso/413688/dolo-eventual-e-culpa-in-consciente-responsabilidade-penal. Acesso em 26 julho 2025.
ROXIN, Claus. “Derecho penal: parte general”. Fundamentos. La estructura de la teoría del delito. Traducción y notas: Diego-Manuel Luzón Peña, Miguel Díaz y García Conlledo y Javier de Vicente Remesal. Madrid: Civitas, 1997.
ZAFFARONI, Eugenio Raúl; PIERANGELI, José Henrique. Manual de direito penal brasileiro: parte geral. 15. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2023.