Arbitragem tributária: comentários ao PL nº 2486/2022 que permitirá ao Brasil dar grande salto
O projeto de lei (PL) nº 2486/2022 dispõe sobre a solução das controvérsias em matéria tributária e aduaneira através na via arbitral, tanto em relação aos tributos e às respectivas multas, juros de mora e acréscimos legais, como quanto às penalidades pecuniárias e não pecuniárias.
No dia 20/06/2024, ele foi encaminhado pelo senado para revisão pela câmara dos deputados e, no dia 09/08/2024, foi apensado ao PL nº 2791/2022, tendo passado a tramitar em regime de prioridade. Seguidamente, ele foi encaminhado para apreciação conclusiva pelas comissões, tendo sido recebido, no dia 12/08/2024, pela comissão de finanças e tributação e, no dia 13/12/2024, pela comissão de constituição e justiça e de cidadania.
Estamos na era dos meios adequados de soluções de conflitos. Conflito posto, a sua pacificação deve se dar pela via mais adequada. E, comprovadamente, a via mais adequada não é a sua sanatória pela Jurisdição Estatal.
A pesquisa “Arbitragem em Números”, divulgada no ano de 2024, dispõe que os procedimentos arbitrais duram em média 19 meses. E a pesquisa “Justiça em Números”, divulgada no dia 28/05/2024, demonstra que há 84 milhões processos pendentes, que 35 milhões processos novos foram distribuídos só em 2023 e que a média de tramitação dos processos nos Tribunais é de 4 anos e que nos Tribunais Superiores essa média é de 2 anos. É incompreensível qualquer litígio, ainda mais os litígios tributários, perdurar pelo irrazoável prazo de 6 anos. Tal cenário é péssimo para a segurança jurídica e para o desenvolvimento econômico e social do nosso país.
Vamos ao PL.
O caput do seu art. 1º dispõe que: “Esta Lei dispõe, com fundamento no art. 22, inciso I, da Constituição Federal, sobre a utilização da arbitragem envolvendo matéria tributária e aduaneira, com vistas a promover a solução de controvérsias e a prevenção e a resolução do contencioso administrativo e judicial”.
Quanto ao ponto, mostram-se necessários três comentários.
O primeiro refere-se ao fato de que ao ser feita referência ao art. 22, inc. I, da CRFB (“compete privativamente à União legislar sobre (…) direito civil (…) processual”), adequadamente se enquadra a arbitragem como processo. E, de fato, arbitragem é um sistema e, por isso, aliás, não se aplica ao procedimento arbitral, a não ser que seja vontade das partes, as regras específicas do Código de Processo Civil, embora seja aplicável toda a teoria geral do processo. As normas de base na arbitragem são a lei de arbitragem, a cláusula compromissória ou o compromisso, o regulamento da câmara eleita, no caso de arbitragem administrada, e o termo de arbitragem. Em caso de omissão ou lacuna, não havendo consenso entre as partes, quem a supre é o tribunal arbitral ou o árbitro único.
O segundo ponto refere-se à menção à arbitragem como “prevenção (…) do contencioso”. Aqui cabe uma observação de que a arbitragem, tal como a mediação, a conciliação e a negociação direta, não é método de prevenção de litígios, mas método de solução, de resolução de disputas. O único método que previne controvérsias é o dispute board. É o único meio adequado que atua em tempo real, sendo que os experts indicados pelas partes se reúnem periodicamente tendo conflito ou não no decorrer da realização de um projeto, e é especialmente utilizado no setor construtivo. Ele sim é um verdadeiro seguro contra a disputa.
O terceiro ponto refere-se ao fato de a arbitragem vir para solucionar o “contencioso administrativo e judicial”, de modo que mesmo que já haja contencioso administrativo ou judicial, será possível, via compromisso, seguir com a via arbitral, momento em que haverá suspensão, seja do procedimento administrativo, seja do processo judicial, bem como a fruição do prazo da prescrição intercorrente (art. 9º e §1º).
O §3º (“Não poderão ser objeto da arbitragem de que trata esta Lei os créditos sobre cuja certeza, liquidez e exigibilidade já tenha havido decisão judicial com resolução de mérito transitada em julgado”) mostra-se desnecessário, pois já exaurida a jurisdição quanto ao mérito, seja pública, seja privada (no caso da arbitragem), não há possibilidade de regulamento ante a presença da coisa julgada.
Do mesmo modo, o § 5º (“O árbitro é juiz de fato e de direito (…) e a sentença que proferir não é sujeita a recurso ou a homologação pelo Poder Judiciário”), também mostra-se desnecessário, pois trata-se de disposição já constante da lei de arbitragem e do CPC.
Interessante previsão refere-se à presente no §7º (“O disposto nesta Lei aplica-se (…) à cobrança de valores devidos aos conselhos profissionais e à Ordem dos Advogados do Brasil (OAB)”), pois também poderão se beneficiar da via arbitral, tanto os conselhos profissionais, como a Ordem dos Advogados do Brasil.
O art. 2º é claro no sentido de que “cada ente federado poderá estabelecer por ato administrativo próprio o rol de hipóteses gerais em relação às quais será admitido o uso da arbitragem em matéria tributária e aduaneira”. Do mesmo modo, tal regulação também poderá ser feita pelos conselhos profissionais e pela Ordem dos Advogados do Brasil. Trata-se do amplo exercício da autonomia da vontade, princípio de base da arbitragem.
Importante nota é a relativa à possibilidade de fixação de critérios de valor para a submissão das controvérsias à arbitragem expedita, ou seja, aquela em que o julgamento se dará por árbitro único, o que é louvável considerando a substancial redução de custos em comparação com o tribunal arbitral, em que os pedidos são julgados por um colegiado, em regra, composto de três árbitros.
Com isso, será possível alcançar as pequenas e médias empresas e os litígios de menor valor.
Infelizmente, a arbitragem ainda é restrita a poucos, fruto do seu não suficientemente explicado alto custo em território nacional. O país permanece, assim, tendo o acesso à justiça sendo realizado pela porta única do Poder Judiciário, estando a arbitragem ainda longe de ser conhecida pela população e pelos advogados, e mais longe ainda de estar acessível e democratizada, via redução dos valores constantes das tabelas de custas das câmaras arbitrais existentes no país.
Não, a arbitragem não é “gourmet”. Não, a arbitragem não é “essencialmente elitizada”. Não, a arbitragem não é “apenas adequada para específicos litígios de alto valor e complexidade”. A arbitragem, segundo a lei vigente, aplica-se a direitos patrimoniais disponíveis e ponto. E, a lei tem a todos como destinatário e deve sim beneficiar a todos que possam pagar por uma jurisdição privada com inúmeras virtudes. Ao se elitizar, na prática, o instituo, se coloca esse meio adequado de solução de conflitos em crise, pois a vinda longa e a oxigenação de todo instituto, se dá com a sua disseminação, com o seu estudo e com a sua prática qualificada.
O PL optou pelas arbitragens serem necessariamente institucionais, ou seja, não será possível a realização de arbitragem ad hoc. E, em razão disso, ele estipula as regras para o credenciamento e a escolha das câmaras de arbitragem (art. 3º, inc. VII e art. 5º, inc. V).
O §4º do art. 2º (“serão observados os princípios gerais do direito tributário e da administração pública, especialmente os princípios da isonomia, da capacidade contributiva, da transparência, da moralidade, da razoável duração dos processos e da eficiência e, resguardadas as informações protegidas por sigilo, o princípio da publicidade”) e o art. 11 (“Serão sempre respeitados nos procedimentos arbitrais de que trata esta Lei os princípios do contraditório, da igualdade entre as partes e da imparcialidade e do convencimento motivado dos árbitros) poderiam ter mencionado também os basilares princípios processuais mínimos da ampla defesa e do devido processo legal.
As arbitragens sempre serão públicas, não havendo confidencialidade ou sigilo. Cabe destacar que a confidencialidade da arbitragem não é imposição da lei de arbitragem. Ela é fruto dos regulamentos de arbitragem das câmaras e da vontade das partes, via cláusula compromissória ou termo de arbitragem, mas, certamente, podem as partes optar pela publicidade. No caso da arbitragem tributária, por envolver a administração pública, a publicidade é imperativo legal.
Quando o PL se refere ao “requerimento de submissão da controvérsia à arbitragem”, trata-se da fase do conhecido requerimento de instauração do procedimento arbitral, ou seja, da fase administrativa da arbitragem. A sua instituição somente se dá com a nomeação dos árbitros, momento em que passa a estar presente o órgão judicante, que é finalizado com a sentença, ou com a decisão sobre os eventuais pedidos de esclarecimento.
O art. 4º (“A decisão administrativa pela aceitação do requerimento de submissão da controvérsia à arbitragem constitui etapa preliminar à pactuação de compromisso arbitral e será proferida pela autoridade máxima do órgão responsável pela administração do crédito, diretamente ou mediante delegação”) e o seu §2º (“A decisão administrativa que denegar a submissão da controvérsia à arbitragem deverá ser devidamente motivada, com indicação dos fatos e dos fundamentos jurídicos para a recusa”) poderiam ter previsto a possibilidade de recurso administrativo desta decisão e até mesmo deixado expressa a possibilidade de acesso ao Poder Judiciário para a sua reversão.
O art. 5º (“A arbitragem de que trata esta Lei observará as seguintes condições (…) II – as normas de direito material para fundamentar a decisão arbitral serão as do ordenamento jurídico brasileiro, inclusive aquelas objeto de precedente qualificado de que trata o art. 927 da Lei nº 13.105, de 16 de março de 2015”), deixa expresso que o árbitro deverá observar obrigatoriamente os enunciados de súmula vinculante e os acórdãos em incidentes de resolução de demandas repetitivas e recursos repetitivos.
Já o art. 5º, inc. III, que dispõe que “a arbitragem será realizada na República Federativa do Brasil”, poderia ter adicionado que o lugar da arbitragem é o da sede do ente, considerando a relevância do lugar da arbitragem para fins de cooperação entre a arbitragem e o poder judiciário, seja na fase pré-arbitral, seja na fase arbitral, seja ainda na fase pós-arbitral, nesta incluída o cumprimento de sentença arbitral, a impugnação ao cumprimento de sentença e a propositura das ações anulatórias.
Ponto de reflexão tem relação com o art. 5º, §1º (“Em nenhuma hipótese será submetida à arbitragem controvérsia envolvendo a constitucionalidade de normas jurídicas ou discussão sobre lei em tese”), pois diversamente do que restou disposto no PL, é possível que os árbitros realizem o controle incidental de constitucionalidade de leis. É possível o reconhecimento da inconstitucionalidade no caso concreto. Ora, havendo colisão entre uma norma legal e uma constitucional, prevalecerá a norma constitucional, tendo o árbitro o dever de declarar a inconstitucionalidade.
O controle da constitucionalidade das leis pode ser feito pelo juiz de direito e pelo árbitro, e valerá para o caso concreto. O árbitro apenas não pode realizar o controle abstrato, pois a sentença teria eficácia erga omnes, indo além dos limites do compromisso arbitral, restrito às partes.
De acordo com o PL, o que restaria ao árbitro ao estar diante de uma constitucionalidade? Deveria se abster de julgar? Penso que o mencionado art. 5º, §1º necessite ser aperfeiçoado.
Com acerto, o art. 5º, §2º dispõe que “é vedada a prolação de sentença arbitral cujos efeitos prospectivos resultem, direta ou indiretamente, em regime especial, diferenciado ou individual de tributação”.
Por sua vez, o parágrafo único do art. 5º dispõe que “não havendo tal estipulação [do valor dos honorários de árbitro], o árbitro ou os árbitros irão requerer ao órgão do Poder Judiciário que seria competente para julgar originariamente a controvérsia que os fixe por sentença”.
Não me parece a forma mais adequada de disciplinar o tema. Os honorários de árbitro devem ser previamente estipulados de forma expressa. E devem ser adiantados em parte de forma inicial, devendo o saldo restante ser pago para fins de disponibilização da sentença arbitral. Esse é o costume e a regra dos procedimentos arbitrais, funciona bem, e não seria interessante a inovação pretendida pelo PL quanto ao ponto.
O art. 16, inc. II (“O árbitro, no caso de arbitragem expedita, e os árbitros escolhidos para compor o tribunal arbitral deverão, no mínimo: (…) II – deter conhecimento compatível com a natureza do litígio”), ao apresentar termos vagos pode gerar desnecessária litigiosidade quanto ao tema.
O mais adequado seria suprimi-lo do que pormenorizá-lo. Árbitro é toda pessoa capaz e que tem a confiança das partes. Por óbvio, uma pessoa que nada saiba de um tributo específico não terá condições de desatar a lide e, por isso, não será escolhida pela parte para julgar a matéria. Porém, em um tribunal arbitral, um dos três árbitros poderá ser profundo conhecedor de arbitragem e os outros dois experts na temática tributária e isso ser chancelado pelas partes. E nenhum problema haverá quanto a isso.
Necessário mencionar que o art. 16 poderia ter feito menção expressa à disponibilidade necessária ao exercício da função de árbitro.
O art. 29 disciplina as causas de nulidade da sentença arbitral, reproduz o que dispõe o art. 32 da lei de arbitragem, mas vai além.
Há a inclusão de quatro causas adicionais de nulidade, fruto da reprodução de algumas das causas que possibilitam a distribuição de ação rescisória, de acordo com o art. 966 do CPC: “V – ofender a coisa julgada (…) VII – resultar de dolo ou coação da parte vencedora em detrimento da parte vencida ou, ainda, de simulação ou colusão entre as partes, a fim de fraudar a lei (…) X – for proferida em contrariedade a precedente qualificado de que trata o art. 927 da Lei nº 13.105, de 16 de março de 2015 (…) XI – for fundada em prova cuja falsidade tenha sido apurada em processo criminal ou venha a ser demonstrada na própria ação anulatória”.
Penso que o rol do art. 32 da lei de arbitragem poderia ser mantido, sem haver esse mix com as causas de distribuição de ação rescisória, mesmo porque não é possível propor ação rescisória em face sentença arbitral, bem como se tratam de causas já amplamente consolidadas pela comunidade arbitral. Destaque-se, ainda, que não resta claro quanto ao porquê de terem sido selecionadas apenas quatro das oito hipóteses previstas no art. 966 do CPC.
Por fim, o art. 30, em relação à norma geral (lei de arbitragem), amplia o prazo para a distribuição da ação anulatória de 90 para 180 dias, porém deixou de dispor de forma expressa que o seu termo inicial é não só o recebimento da notificação da respectiva sentença, parcial ou final, mas também o recebimento da notificação relativa à decisão do pedido de esclarecimento, de modo que seria útil essa inclusão.
Num país com uma produção legislativa tão intensa e muita das vezes desnecessária e contraditória entre si em razão da falta de harmonia dentro desse emaranhado de leis, está a florescer esta futura lei, absolutamente necessária e tão esperada pela comunidade jurídica. Que a celeridade, umas das essências do projeto, também possa ser aplicada quanto à sua tramitação. O debate, aperfeiçoamento e aprovação breve são medidas que se impõem.