6 de agosto de 2025
Politica

O desafio silencioso da Justiça

Nos últimos anos, o sistema de Justiça brasileiro tem enfrentado um desafio silencioso, porém crescente: o uso abusivo do Judiciário por meio de litígios predatórios. Trata-se da prática de ajuizamento massivo de ações com fundamentos frágeis ou repetitivos, visando lucros indevidos através de acordos rápidos ou decisões favoráveis. A boa notícia é que a tecnologia — especialmente a inteligência artificial (IA) — tem se mostrado uma aliada poderosa no enfrentamento dessa distorção.

Segundo o relatório Justiça em Números 2024, do CNJ, o Brasil bateu recorde com 35,3 milhões de novos processos em 2023. Boa parte desse volume é composta por ações repetitivas ou padronizadas, que pressionam o Judiciário e consomem recursos que deveriam ser destinados a causas mais complexas e relevantes.

Diante desse cenário, a tecnologia vem contribuindo em diversas frentes. Uma delas é o monitoramento e a detecção de padrões anômalos.

Trata-se de ferramentas de analytics e IA que estão sendo utilizadas para identificar o ajuizamento atípico de ações. Sistemas alimentados com grandes volumes de dados judiciais conseguem mapear, por exemplo, a repetição excessiva de teses jurídicas, a ausência de documentos, a atuação continuada de determinados escritórios, a concentração atípica em determinadas comarcas e o uso reiterado de um mesmo CPF como parte. A partir desses e de inúmeros outros sinais, é possível classificar casos suspeitos de litigância predatória, reduzindo o tempo de resposta e permitindo uma atuação estratégica.

Outra ferramenta é a antecipação de riscos via redes sociais e escuta digital. As redes sociais e os aplicativos de mensagens tornaram-se ferramentas centrais na propagação de campanhas organizadas por quem pratica a litigância predatória.

É comum que grupos incentivem, com base em modelos padronizados e promessas de ganhos rápidos, o ajuizamento em massa de ações, muitas vezes sem análise prévia do mérito individual ou da viabilidade jurídica. O fenômeno se intensifica em plataformas de grande alcance e algoritmos de viralização como Instagram e Tik Tok, facilitando a captação de autores em potencial com a disseminação de promessas de “dinheiro fácil”.

Diante disso, escritórios e instituições recorrem a estratégias de escuta digital, conhecidas como “social listening”, e mapeamento de comportamentos para rastrear, ainda em estágio inicial, padrões de atuação suspeitos. O social listening consiste no monitoramento sistemático de conversas públicas em redes sociais, fóruns, blogs e outras plataformas online. A técnica permite identificar temas, hashtags, vídeos, anúncios e padrões de discurso que estejam promovendo ajuizamentos em massa ou replicando estratégias litigiosas.

Realiza-se uma análise de conteúdo amplamente acessível, com o objetivo de antecipar riscos, proteger a integridade do processo judicial e subsidiar decisões estratégicas.

Há um monitoramento de hashtags, conteúdos patrocinados, vídeos com scripts repetitivos e anúncios disfarçados de conteúdo informativo. Essa escuta ativa permite a identificação precoce de redes de disseminação, possibilitando que medidas internas sejam tomadas, como representações administrativas, criminais e a produção preventiva de provas documentais.

Além disso, algumas iniciativas buscam responsabilizar judicialmente autores de condutas abusivas, utilizando ações regressivas, pedidos de condenação por litigância de má-fé e compartilhamento de informações com órgãos de regulação e ética profissional. É fato que essas técnicas não eliminam o problema, mas representam um avanço concreto na contenção da litigância predatória que se organiza a partir do meio digital.

Outra iniciativa é a promoção da integração tecnológica no Judiciário e no setor privado. A digitalização do Judiciário também tem contribuído com esse combate. De acordo com o CNJ, mais de 90% dos processos em tramitação são eletrônicos, o que viabiliza a automação da análise de dados. A criação de levantamentos como o dos Grandes Litigantes, além do avanço do Programa Justiça 4.0 — que inclui o uso de IA para triagem e classificação de processos — reforçam a transparência e o controle sobre práticas abusivas.

Além disso, a existência de núcleos especializados de inteligência jurídica presentes nas empresas tem ajudado a realizar o cruzamento de dados internos com informações públicas, detectando inconsistências e elaborando estratégias jurídicas baseadas em evidências.

A pressão por produtividade no Judiciário — que em 2023 conseguiu reduzir 35 milhões de processos e bateu recorde, segundo o CNJ — torna ainda mais imprescindível o uso racional e estratégico dos recursos institucionais.

Litígios predatórios não apenas aumentam artificialmente a carga de trabalho, mas também desvirtuam a função social da Justiça ao se aproveitarem da massificação de demandas como modelo de negócio.

Isso impõe um duplo desafio: de um lado, proteger o sistema da sobrecarga indevida; de outro, garantir que os esforços estejam voltados à solução de conflitos genuínos. A tecnologia, nesse contexto, cumpre papel central ao restabelecer filtros de legitimidade, permitindo que o Judiciário concentre seus recursos em decisões que de fato gerem impacto social e promovam justiça substancial.

Não se trata de robotizar a Justiça, mas de blindá-la contra abusos. Ao lado da atuação humana, a inteligência artificial e as ferramentas digitais têm o potencial de restabelecer o equilíbrio processual, proteger o Judiciário do uso indevido e garantir que o acesso à Justiça não seja confundido com a exploração do sistema. O presente já é tecnológico — e exige, mais do que nunca, um compromisso ético renovado com o litigar responsável.

 

 

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