6 de agosto de 2025
Politica

A Lei Magnitsky e a sanção ao ministro Alexandre de Moraes

A Lei Magnitsky foi aprovada pelo Congresso americano e prevê a imposição de sanções financeiras a estrangeiros que se encaixem em quaisquer das situações nela previstas, permitindo que o Presidente dos EUA (por meio do Secretário de Estado e do Office of Foreign Assets Control – OFAC), possa aplicar uma vasta gama de sanções. Os alvos, conforme a lei, devem ser assassinos extrajudiciais, torturadores, genocidas ou perseguidores de ativistas que lutem por direitos humanos ou por transparência governamental, ou, ainda, um oficial de governo tido como altamente corrupto.

A Lei foi complementada pela Ordem Executiva 13818, que declarou como emergência nacional os atos cometidos pelos sancionados, classificando-os como uma ameaça incomum e extraordinária à segurança nacional, à política estrangeira e à economia dos EUA.

Nas sanções, previu-se, dentre outras: (a) a proibição de entrada do sancionado nos EUA; (b) a proibição de transações do sancionado que envolvam os EUA, passem pelos EUA ou passem por pessoas ou empresas ligadas aos EUA; (c) o bloqueio de bens que sejam de propriedade ou sejam ligados ao sancionado, incluindo pessoas que tenham se engajado em transações significativas com ele; (d) proibição de o sancionado receber doações ou financiamento; (e) proibição de qualquer pessoa ou empresa de receber bens, fundos ou serviços do sancionado; (f) a proibição de quaisquer transações que visem burlar a sanção. Caso alguém auxilie o sancionado, também está sujeito a sanções secundárias pelo OFAC.

Ela encontra paralelos na Europa (EU Global Human Rights Sanctions Regime, de 2020), no Reino (Global Human Rights Sanctions Regulations, de 2020), no Canadá (Justice for Victims of Corrupt Foreign Officials Act, de 2017), bem como em outros países. Em comum, sancionam-se pessoas por genocídio, crimes contra a humanidade, tortura, escravidão, assassinatos extrajudiciais, desaparecimento forçado, tráfico de pessoas e, no caso britânico e canadense (não no europeu), corrupção.

Ao longo do tempo, ela tem sido usada para punir pessoas acusadas de genocídio, de financiamento de milícias em guerras civis, de estupros e assassinatos em massa, responsáveis por campos de concentração, bem como a pessoas ligadas a regimes que os EUA considerem como inimigos (Coreia do Norte, Cuba, Venezuela e Rússia, por exemplo). As mais recentes sanções foram impostas ao Ministro Moraes e a indivíduos do Irã (e associados de outros países), acusados de lavar bilhões de dólares do regime dos aiatolás, por meio de movimentação de petróleo e derivados, a fim de burlar as restrições impostas ao seu país.

Na aplicação ao Ministro Moraes, divulgada no mesmo dia da ordem contra os iranianos, afirmou-se, em síntese, que ele seria responsável por “graves violações de direitos humanos” e “supressão da liberdade de expressão”, em “opressiva campanha de censura e detenções arbitrárias”, “politizando acusações, incluindo aquela contra o ex-Presidente Jair Bolsonaro”. Mencionou-se também que teria havido ordens de “censura a cidadãos baseados nos EUA” e “dirigidas a empresas americanas”, o que é um paradoxo, pois a Magnitsky atinge empresas que não são americanas.

Esta “jurisdição mundial” dos EUA não é nova e tem sido rotineiramente aplicada pela utilização da Foreign Corrupt Practices Act – FCPA, que permite ao governo americano processar e punir empresas e indivíduos estrangeiros por atos tidos como ilegais mesmo que não tenham sido praticados ou tenham gerado qualquer efeito nos EUA.

De toda forma, o item utilizado no caso do Ministro Moraes seria o item 1, (a), da Seção 3 da Lei, ou seja, ele teria cometido graves violações de direitos humanos contra ativistas de direitos humanos e/ou transparência governamental, bem como teria atingido empresas americanas em solo americano.

Em relação à aplicação, a Lei tem sido imposta em outros países e em outros sistemas bancários, utilizando-se o dólar americano como atrator de “competência”. Assim, para que haja imposição de execução extraterritorial, basta lembrar que a enorme maioria dos bancos do mundo utiliza corresponsáveis nos EUA (eles mesmos ou outras instituições) para concretizar operações de câmbio, operacionalizar importações ou exportações, bem como operam com fundos de investimentos ou ações listadas na bolsa americana, incluindo financiamentos da própria instituição financeira.

Para operar com dólares americanos, por exemplo, os bancos brasileiros necessitam de autorizações específicas dos EUA, por si ou por seus corresponsáveis, além de contratos com bancos americanos, que incluem adesão a políticas de prevenção de lavagem de capitais e preenchimento de formulários em que declaram não prestar serviços a pessoas sancionadas, vindo daí a obrigação contratual que determina a sujeição às regras americanas. Vale notar que tais regras não são só americanas, mas reforçadas pelo BACEN.

Os bancos poderiam, então, não executar a sanção? Nessa aplicação extraterritorial, as instituições financeiras de determinado país poderiam entender a ordem de forma restritiva, tão só limitando as operações do sancionado que envolvam a utilização de dólares americanos, justamente porque necessitam passar ou ser compensadas no sistema dos EUA. Assim, o sancionado não poderia fazer câmbio ou remeter valores, tampouco realizar compras em dólares.

Caso os bancos adotem tais posições restritivas, ou seja, entendam que a conta em moeda local pode ser mantida, restringindo somente operações com dólar, o governo dos EUA pode aplicar sanções secundárias a eles, tais como multas e até mesmo cessação das atividades delas em território americano, inclusive de seus acionistas relevantes.

A previsão consta das regras e pode ser utilizada caso o governo dos EUA assim o deseje e, pelo histórico, o OFAC não possui nenhuma preocupação extra para que isso seja aplicado, ampliando as sanções e causando efeitos gravíssimos. Sendo claro: se entenderem que a sanção foi descumprida, aplicam a punição secundária a quem eles entendam que as descumpriu.

Há precedentes. Confira-se o caso do banco BNP Paribas, multado pelo OFAC em 2014 em US$ 8,9 bilhões por supostamente facilitar operações envolvendo países sancionados, como Irã, Sudão e Cuba. Isso, por evidente, afetaria qualquer instituição de forma irreversível, bem como todos os seus clientes. Para resolver a questão, o BNP teve que firmar um acordo com o OFAC, no valor de US$ 1 bilhão. Alguém conseguiria imaginar o Banco do Brasil sendo sancionado em bilhões de dólares por manter uma simples conta bancária em reais? Como se vê, o problema não é só da pessoa atingida, é algo muito além.

Assim, diante de tal ameaça de sanção secundária, as instituições podem optar por enfrentar as sanções (o que seria catastrófico) ou cumprir com as determinações (o que seria mais simples), encerrando a relação com o cliente atingido.

Quanto às principais operadoras de cartão de crédito, elas são americanas e, portanto, proibidas de operar com sancionados sob pena de sanções secundárias, esperando-se que cancelem os cartões do alvo.

É possível a retirada da lista? Sim, há inclusive uma previsão de revisão administrativa junto ao próprio OFAC, que passa por análise criteriosa de “equívoco na inclusão” ou “mudança de conduta”, uma vez que o Departamento do Tesouro dos EUA afirma que “o objetivo final das sanções não é punir, mas promover uma mudança positiva de comportamento”.

Claro, em tese também é possível acionar o Judiciário dos EUA para pedir a retirada, mas somente após exaurir a via administrativa perante o próprio OFAC. O acionamento judicial só é possível nas hipóteses da Lei de Processo Administrativo e não pode ser feito diretamente perante a Suprema Corte, devendo-se iniciar em Cortes inferiores, até que se chegue (em sendo a hipótese rara, algo mais admissível em sendo um recurso do governo em situações como essa) à Suprema Corte. As chances, se baseadas em casos pretéritos, são baixíssimas, porque há uma deferência judicial enorme ao que o OFAC decide, especialmente porque se trata de ato do executivo.

Explica-se: lá nos EUA, ao contrário do Brasil, há uma restrição enorme ao Judiciário para emissão de ordens contra o Executivo (a revisão é cabível somente quando o agente público tenha agido de forma “caprichosa”, arbitrária ou ilegal), decorrente da interpretação vigente sobre a separação dos poderes, especialmente em questões de política externa. É raro encontrar decisões limitando a aplicação de ordens emitidas pelo Executivo, tal qual a aplicação da Lei Magnitsky.

Em 2024, ao que se saiba, houve somente uma decisão (Van Loon v. Dept. of Treasury, do 5º Circuito), mas, ainda assim, o Tribunal reviu a decisão somente porque contratos inteligentes de criptoativos não se enquadrariam na Lei Magnitsky por não serem “propriedade”, tampouco “serviços”. O OFAC, então, teria excedido seus poderes.

O caso do Ministro Moraes é distinto dos precedentes, contudo. É a primeira vez que se aplica tal sanção a um magistrado de uma Corte reconhecidamente democrática, num país notoriamente democrático. Para se chegar a tal conclusão, vale conferir o Índice Global da Democracia da revista inglesa liberal The Economist, publicado em 27 de fevereiro de 2025, que analisa 167 países. Nele, o Brasil é considerado uma “democracia com falhas”, estando em 57º sétimo lugar. Com esse mesmo adjetivo, encontram-se EUA (28º lugar), França (26º lugar), Chile (29º lugar). Na América inteira, somente Uruguai (15º lugar) e Canadá (14º lugar) são plenas democracias.

Em termos de aplicação prática sobre magistrados, há precedentes.

Mas não se trata do caso da Juíza russa incluída na lista por prender e condenar um defensor público, ativista de direitos humanos por suas posições contra a guerra da Ucrânia, tendo sido a magistrada alvo de relatórios diversos de organismos sérios de defesa de direitos humanos.

Menos ainda dos Ministros da Suprema Corte Venezuelana, que estão sob o controle e todos indicados por um Ditador, tendo sido responsáveis, também segundo respeitados organismos de defesa de direitos humanos e eleitorais (OEA, Human Rights Watch e União Europeia), pela fraude em eleições recentes. Em ambos os casos, os magistrados agiram contra pessoas que lutavam por direitos humanos, suprimindo direitos e garantias deles.

No caso do Ministro Moraes, ao contrário, não há lutadores de direitos humanos, menos ainda condenações por organismos internacionais. Pelo contrário: a Transparência Internacional emitiu comunicado condenando a aplicação da lei ao magistrado brasileiro. Poder-se-ia argumentar que as pessoas estão lutando pela liberdade de expressão. Não se discorda do argumento, mas é preciso lembrar que o conceito de liberdade de expressão é absoluto nos EUA, a ponto de a Suprema Corte ter permitido marchas de partidos nazistas (National Socialist Party of America v. Village of Skokie, 1977; Bradenburg v. Ohio, 1969), ao contrário do resto do mundo ocidental. Dessa forma, o direito à liberdade absoluto defendido pelas pessoas afetadas por suas decisões não é “internacionalmente reconhecido”.

Nesse sentido, o próprio idealizador e promotor da Lei Magnitsky, William Browder – que era cliente do advogado Leon Magnitsky, preso, torturado e morto por sua luta expondo atividades ilegais do governo russo – declarou que “é óbvio que isso não tem a ver com direitos humanos. Tem a ver com ajudar seu amigo Jair Bolsonaro. Isso desrespeita completamente o legado de Sergei.” Em nova entrevista, classificou o uso da lei contra o Ministro Moraes como “uma violação grosseira” da Lei e que não havia visto “nenhum outro caso em que a lei foi mal utilizada assim”, pois ela “não foi feita para resolver disputas políticas”.

Ele não está de todo errado. A declaração do Secretário do Tesouro americano e as explicações sobre as sanções tarifárias ao Brasil mencionaram expressamente o ex-Presidente como ratio decidendi e a primeira foi além, ligando-o à eleição de 2026, o que poderia estar ligado ao tal “ato caprichoso”, sujeito à revisão judicial. Se Browder estiver correto, tem-se também um problema de soberania.

Como se vê, a Lei Magnitsky é claramente inaplicável ao caso do Ministro Moraes. Aqui, trata-se de violações a direitos de um conjunto determinado de pessoas, por atividades descritas como crimes em nossa legislação (que possui regras claras em oposição à 1ª Emenda Americana de liberdade de expressão), sendo a principal delas a Lei dos Crimes Contra o Estado Democrático de Direito, aliás, promulgada pelo ex-Presidente Jair Bolsonaro, após aprovação por um Congresso majoritariamente de Direita.

Há, sim, violações a direitos e garantias por parte do Ministro Moraes (e de decisões colegiadas), é preciso que se diga: atuação de ofício, censura pela proibição ex ante de uso de redes sociais (proibida pela Constituição: arts. 5º, IX, e 220, § 2º), prisões preventivas prolongadas, aplicação de tipos penais em bis in idem, concessões de prazos exíguos e impraticáveis às defesas (em oposição ao art. 5º, LXXVIII, da CR, e art. 8º, do Pacto de San José), acesso parcial ao material em plena disposição da acusação e violação ao princípio Juiz Natural, tanto na manutenção da competência quanto de sua atração e prorrogação. Muito disso ocorre nos casos do chamado 8 de janeiro, bem como no caso do ex-Presidente Bolsonaro.

Um pequeno parêntese, já que foram os EUA a aplicar a sanção Magnitsky: tal censura é lá permitida pelas chamadas gag orders, nas quais os Juízes podem (pasme-se) proibir acusados e seus advogados de se manifestarem publicamente sobre seus casos (por todos, Gentile v. State Bar of Nevada, 1991), sem que ninguém diga que eles vivem em uma Ditadura.

Mas muitas dessas “violações” cometidas por Moraes, como bem apontado recentemente pela revista The Economist (30.jul.2025), dentre outras, e por diversos juristas, são francamente permitidas pelo nosso próprio sistema processual penal, que atribui poderes enormes aos magistrados para agir de ofício e ao Regimento Interno do STF, que o órgão entende ser “superior à lei” na questão da competência, algo que tem sido há muito tempo denunciado pela mais respeitada doutrina do país.

Algumas atitudes são sintoma de um mal maior. O que se faz nos processos em questão não é nada diferente do que é feito com negros e pobres todos os dias no país, sem que se veja uma só reclamação dos que tanto gritam agora, o que não torna as críticas menos verdadeiras, mas também não menos seletivas. Como a história mostra, na verdade, este é um problema do sistema, que demanda reforma democrática na direção de um sistema de garantias acusatório (em oposição ao inquisitorial), não somente do Ministro Moraes.

De toda forma, o Brasil não é a Venezuela, nem o Irã, tampouco a Rússia. O Judiciário nacional é independente e tanto é assim que o Presidente do país, caso quisesse, não teria influência nenhuma nos julgamentos em questão. Caso o fizesse, poderia responder por crime de responsabilidade (art. 6º, 5, da Lei nº 1.079/1950).

Pode-se discutir as violações, que de forma alguma se enquadram na lei Magnitsky. Uma coisa não exclui a outra: é possível rejeitar a aplicação da sanção e as decisões do Ministro Moraes, que merecem correção de rumo pelo próprio Judiciário brasileiro, ou seja, pelo STF. Mas ninguém em sã consciência poderia arguir que há uma Ditadura no país. Há eleições, vários governadores de Direita e Esquerda foram eleitos; e a Direita possui uma perspectiva declarada de conseguir maioria nas eleições que se avizinham. Isso só ocorre numa democracia, onde se tem liberdades em exercício em geral.

Afinal, este próprio artigo contém uma crítica dura ao Ministro Moraes, que tem seus erros e acertos (como todo magistrado, sem que haja absolutamente nenhum receio de repressão. Os jornais podem (e rotineiramente o fazem) criticar pesadamente as autoridades, publicar denúncias, expor fraudes e desvios sem medo de repressão, como outrora ocorria. Isso só ocorre numa democracia. Imperfeita, mas uma democracia soberana. Pela qual se deve lutar, tanto quanto se deve lutar pelos direitos e garantias para todos, não somente para alguns.

P.S.: nos dias 6 e 7 de agosto, a OAB/PR realizará o Congresso “STF: Defesa da Democracia e do necessário respeito ao Devido Processo Legal”, que contará com a presença de grandes juristas como Aberto Toron, Alaor Leite, Antonio Pitombo, Clèmerson Clève, Conrado Hübner Mendes, Dora Cavalcanti, Gustavo Badaró, Jacinto Nelson de Miranda Coutinho, José Carlos Cal Garcia, Juliano Breda, Marina Araújo, Maurício Dieter, Oscar Vilhena Vieira, Pedro Medeiros, Raquel Scalcon, Rodrigo Sanchez Rios, Técio Lins e Silva, dentre outros. Este tema, seguramente, lá será discutido e as inscrições podem ser realizadas no site http://bit.ly/4oplQfW

 

 

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