8 de agosto de 2025
Politica

Sub-reptício, mas presente

Insidiosamente, Satã se infiltra na rotina existencial de seres que não acreditam nele, mas que, de forma premeditada ou imperceptível, passam a exercer o papel de seus obreiros. Ele está nas atrocidades diuturnamente cometidas, de forma violenta ou não, nas infidelidades, nas traições, nas armadilhas postas no percurso de numerosas vítimas de suas artimanhas. Está na maledicência, na sugestão dúbia de infrações éticas perpetradas por pessoas sobre as quais ainda não recaíra qualquer suspeita. Está na mentira, na alusão maldosa, na palavra jogada ao ar, mas contaminada com o vírus da maldade.

Quando Thomas Mann, em “Doutor Fausto”, lamentava o imperdoável delito alemão no período nazista, afirmou que, depois do Holocausto, a ironia cuidara de um castigo singular para os germânicos: “um povo que terá de viver isolado dos demais, como os judeus do gueto, porque o ódio terrível que se acumulou a seu redor não lhe permitirá sair de suas fronteiras”. Os alemães constituiriam um povo que já não poderia mais aparecer em público. A ignomínia perduraria através os séculos.

E proscrevia os responsáveis por esse infausto episódio: “Malditos, malditos os corruptores, que mandaram à escola do Diabo uma parcela do gênero humano originalmente honrada, bem-intencionada, apenas excessivamente dócil e demasiado propensa a organizar sua vida à base de teorias! Como faz bem amaldiçoá-los, e melhor ainda seria se o anátema brotasse irrestritamente de um peito não obstruído!”.

Pensar que tudo brotou de um projeto de restauração do patriotismo. Olha como é perigoso instigar as pessoas, para uma exacerbação do sentimento gerado por esses símbolos emocionais, quais bandeira, o verde-amarelo, as frases de efeito! Se os alemães, com sua cultura sedimentada, foram vítimas do engodo, o que se não dirá de um país com quase setenta por cento de analfabetos funcionais?

Quem não conhece a História, há de repeti-la, como farsa ou tragédia. Depois do Holocausto, era distinto o patriotismo defendido por Mann: “…um patriotismo que ousasse afirmar que o Estado sanguinário, cuja agonia atualmente (era o ano de 1945) presenciamos, que, para citar uma expressão de Lutero, “pendurou em seu pescoço” o peso de crimes incomensuráveis, e que, com seus apelos berrados, com suas proclamações aniquiladoras dos direitos do homem, provocou nas multidões arroubos de imensa felicidade, esse Estado sob cujas bandeiras vistosas marchava nossa juventude, de olhos chispantes, altiva, radiante, firme na fé – um patriotismo, repito, que ousasse afirmar que esse regime tenha sido algo totalmente alheio à natureza de nosso povo, imposto a ela, desprovido de raízes em seu íntimo, ia afigurar-se-me mais magnânimo do que consciencioso”. Essa magnanimidade carrega uma carga de periculosidade. Perdoar e esquecer não elimina a possibilidade de reincidir.

Inexplicável a coesa postura das massas, despertas para o sacrifício, oferecendo-se em imolação, pois iradas ante a criação artificial de um grande e poderoso inimigo, a perfilhar reações insólitas e prontas para gestos surreais, que não se imaginariam possíveis em uma comunidade civilizada. Isso não é ficção, mas aconteceu na Alemanha entre 1933 e 1945 e mais recentemente – guardadas as proporções – nesta nossa atormentada nação. E gestos de neonazismo não podem ser desconsiderados, por se exprimirem isoladamente e por “lobos solitários”. A contaminação é sempre possível e o comprometimento da sã consciência está sempre à espreita.

O vínculo entre as mais edificantes aspirações e as mais abjetas baixezas é muito tênue. Entre o cristalino coro dos anjos e o berreiro infernal do reino de Zebu não há tanta distância, diante da fragilidade do gênero humano. O diabo, tenho reiterado, é muito hábil em se disfarçar e fazer a maioria acreditar que ele não existe. Que sua figura se resume a uma folclórica narrativa cristã. Incutir essa crença, desenhada com habilidade capciosa, é o que permite a ele navegar com desenvoltura entre os que privilegiam a liberdade e não se conformam com observância de cânones impostos por uma religião rançosa ou por uma ética anacrônica.

A unidade dialética entre Bem e Mal é recorrente na literatura. Sem a tentação, fica difícil imaginar a santidade. Saber resistir àquela é o caminho para obtenção desta. Em uma era de tantas requisições, em que ser honesto equivale a ser imbecil, haja força para resistir. Mas quem é movido pela fé consegue arrostar as dificuldades e prosseguir na trilha mais perigosa, mas cujo termo final vale realmente a pena.

 

 

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