A tática anti-Lava Jato contra Moraes e a ‘tese’ para salvar Bolsonaro e culpar apenas os militares
Cerceamento de defesa, contestação de provas e depoimentos e a tese de que tudo não passa de “atos preparatórios”, sem que nada vincule o réu à execução de um golpe de Estado. Assim se pode resumir os argumentos finais do criminalista Celso Vilardi em nome de seu mais famoso cliente, o ex-presidente Jair Bolsonaro.
A defesa é extremamente técnica. Aborda aspectos que os bolsonaristas, mais interessados em palanque do que em discussão jurídica, recusam-se a tratar. Exemplo: até na hipótese de condenação, procura convencer os ministros que a pena não deve ser a soma das previstas em cada um dos crimes, mas a do mais grave, aumentada até a metade.
É nas entrelinhas que a peça de 197 páginas usa argumentos anti-lavajatistas e abandona os militares acusados de golpe à própria sorte. Alega-se que tudo se passou sem que ele tivesse conhecimento: é a “Tese Carolina”. Ela cabe na melodia da música de Chico Buarque: “Eu bem que mostrei a ele /o golpe passou pela gente /e só Bolsonaro não viu”.
Tudo acontecia ao lado do ex-presidente, mas nada disso provaria que ele mantivesse uma unidade de desígnios com os demais réus. Diz o criminalista: “Não há uma única prova que atrele o peticionário (Bolsonaro) ao plano ‘Punhal Verde e Amarelo’ ou aos atos dos chamados Kids Pretos e muito menos aos atos de 8 de janeiro”. Isso para não falar da operação psicológica para emparedar o Alto-Comando do Exército contrário ao golpe ou da caixa de vinho de Braga Netto com dinheiro para os golpistas.
Vilardi contesta a afirmação da Procuradoria da República de que os tenentes-coronéis Hélio Ferreira Lima e Rafael Moraes Oliveira e o general Mario Fernandes, todos kids pretos, estiveram no Palácio do Planalto para tratar do golpe. “Estes 2, 3 corréus puderam ir a quais andares e a quais salas do Palácio do Planalto? Quais encontros tiveram? Viram o ex-presidente? Podiam chegar na sala deste? Seu acesso era livre?”

E por que o criminalista citou esses três militares? Entre todos os réus, foi com os três que foram encontradas as principais provas do golpe. Com Fernandes foram apreendido o plano Punhal Verde e Amarelo, aquele que previa assassinar Luiz Inácio Lula da Silva, Geraldo Alckmin e Alexandre de Moraes, e uma minuta do Gabinete Institucional de Gestão de Crise, órgão que seria criado para governar o País após os assassinatos.
Em áudio, o general disse em 8 de dezembro de 2022 a Mauro Cid que tratara do golpe com Bolsonaro: “Durante a conversa que eu tive com o presidente, ele citou que o dia 12, pela diplomação do vagabundo, não seria uma restrição, que isso pode, que qualquer ação nossa pode acontecer até 31 de dezembro e tudo. Mas, porra, aí na hora eu disse, pô presidente, mas o quanto antes, a gente já perdeu tantas oportunidades”. Ele imprimiu seu plano no Planalto. Fez seis cópias – três de cada documento. Interrogado, alegou que queria ler o documento, mas não o mostrou a ninguém. Virou piada: um general com muitos olhos…
No celular do coronel Oliveira foi encontrado outro plano: o Copa 2022. E, em uma foto, as suas digitais. Sua execução levou os militares do COpEsp a usar carros e recursos do Exército sem o conhecimento de seu comandante em uma operação lançada em 15 de dezembro de 2022 para prender e executar Moraes, mas que acabou abortada. Já o tenente-coronel Ferreira Lima mantinha uma planilha com mais 200 linhas descrevendo o passo a passo para o golpe.

Foram os dois coronéis que tentaram comparecer fardados ao interrogatório no STF. O primeiro buscou envolver o Centro de Inteligência do Exército na trama, como forma de pôr o golpe dentro do gabinete do comandante da Força Terrestre. O segundo quis comprometer o então comandante da 6.ª Divisão do Exército. Queriam, assim, atingir dois generais de divisão que ganharam a quarta estrela na última promoção.
Se o objetivo da defesa de Bolsonaro era afastar o ex-presidente dos militares comprometidos diretamente pelas provas, o alvo destes era comprometer o Exército e seu comandante, o general Tomás Ribeiro Paiva. Vilardi procura deixar seu cliente fora desse ambiente. E cita frases de Bolsonaro em uma live do dia 30 de dezembro.
“Nada justifica, aqui em Brasília, essa tentativa de um ato terrorista. Aqui na região do aeroporto de Brasília, nada justifica. Um elemento que foi pego, graças a Deus, com ideias que não coadunam com nenhum cidadão.” Bolsonaro tratava do atentado fracassado cometido por seus apoiadores. Isso provaria sua disposição de se dissociar dos “malucos”, como ele classificou os que acampavam em frente ao QG do Exército.
Chega-se à tese anti-lavajatista da defesa de Bolsonaro. Ela se apoia em parecer do professor de Processo Penal da USP Gustavo Baradó. A escolha do jurista é carregada de simbolismo. Durante a Operação Lava jato, ele teve um diálogo com um cliente – o ex-executivo da Odebrecht Maurício Ferro – gravado indevidamente pela PF. Antes de mandar que a gravação fosse destruída, o então juiz Sérgio Moro teria avisado o procurador Deltan Dallagnol para que ele tivesse acesso ao conteúdo.
Era 29 de julho de 2018. A defesa nunca foi informada sobre o fato. Em 21 de agosto de 2019, a força-tarefa de Dallagnol deflagou a 63.ª fase da Operação Lava Jato, chamada Carbonara Química. Além de prender Ferro, ela pôs tornozeleira eletrônica no ex-ministro da Fazenda Guido Mantega. Quinze dias depois, o STF pôs creme de leite na carbonara: determinou que o caso que apurava supostas propinas da Brasken a Mantega devia passar à Justiça Federal em Brasília. As medidas cautelares foram anuladas.
Quando as mensagens de Dallagnol no Telegram se tornaram públicas, Badaró descobriu que sua conversa com o cliente fora acessada indevidamente pelo procurador. E essa prova fora negada à defesa. Pois agora o jurista traz um argumento semelhante em parecer para Bolsonaro: Moraes teria negado à defesa a oportunidade de conhecer todas as provas contra o réu. Trata-se de uma acusação grave. Ela é prima daquela crônica que imputa a Moraes decisões secretas como as que Moro manteria em Curitiba.

Em seu parecer, Badaró diz que “não se defende o acusado sem conhecer o processo.” E prossegue: “O princípio da publicidade dos atos processuais tem direta relação com a legitimidade do exercício do poder de punir pelo Estado. Os processos secretos são típicos de Estados autoritários. O desconhecimento da existência do processo, ou mesmo de alguns de seus atos, é uma forma de esconder as arbitrariedades do exercício do poder.”
Vilardi diz que na véspera do início das audiências do processo a defesa não havia tido ainda acesso a todo o material produzido pela PF e, portanto, não pôde se preparar para contestar a acusação. Ao escolher Badaró, seu amigo, Vilardi parece mirar ainda em outra questão que paira sob o julgamento do golpe: o papel de Alexandre de Moraes no processo. Como ele pode ser o relator do caso se ao mesmo tempo atuou como juiz das cautelares? A adoção do juiz de garantias devia garantir que isso não ocorreria mais no País?
Há um ano, Badaró publicou um vídeo de 4 minutos em seu canal no Youtube no qual diz: “O juiz das garantias sendo um importante mecanismo para evitar que pré-julgamentos e vieses de um julgador que atuou na fase de investigação, tendo uma visão unilateral dos fatos, porque recebendo informações e elementos de prova somente da Polícia Judiciária e do Ministério Público, seja o mesmo julgador que ao final do processo irá proferir a sentença, assegura com grande força o direito a um juízo imparcial.”
Como todos sabem, a instituição do juiz de garantias veio após a Lava Jato, em que Moro ajudava procuradores e, depois, julgava os réus. Esse comportamento – aliado, à sua entrada na política – fez dele um juiz parcial e provocou a anulação das provas contra Lula. Ou seja, o petista só ganhou a eleição porque o STF decidiu que a ampla defesa e a imparcialidade de um juiz eram inegociáveis. Argumentos que enterraram a Lava Jato podem salvar da cadeia mais um ex-presidente?