20 de agosto de 2025
Politica

Caso Ultrafarma: carta para ‘entidade’ vira confissão de fiscal da propina de R$ 1 bilhão

Uma carta manuscrita encontrada na casa do auditor fiscal Artur Gomes da Silva Neto, da Secretaria da Fazenda do Estado de São Paulo, é considerada pelos investigadores a confissão de um esquema de propinas que teria movimentado mais de R$ 1 bilhão.

O Estadão pediu manifestação da defesa.

O documento foi apreendido na Operação Ícaro, que prendeu o auditor e os executivos Sidney Oliveira, dono da Ultrafarma, Mário Otávio Gomes, diretor estatutário da Fast Shop. As empresas são suspeitas de pagar propinas para destravar em tempo recorde pedidos milionários de ressarcimento de créditos de ICMS-ST.

A carta datada de 3 de março tem três páginas, escritas de próprio punho pelo fiscal em caneta vermelha. Ele descreve uma proposta para “novas liberações de imposto”. Embora não tenha assinatura, a autoria é atribuída ao fiscal, pelo detalhamento de um assunto técnico e pelo fato de a carta ter sido encontrada em sua residência.

O documento é uma espécie de pedido de orientação espiritual. Artur afirma que é “muito perigoso” assinar outras liberações pelo risco de ser descoberto.

Carta manuscrita atribuída ao fiscal Artur Gomes da Silva Neto, investigado na Operação Ícaro por suspeita de receber propinas de grandes varejistas para facilitar restituição de ICMS.
Carta manuscrita atribuída ao fiscal Artur Gomes da Silva Neto, investigado na Operação Ícaro por suspeita de receber propinas de grandes varejistas para facilitar restituição de ICMS.

‘Eles disseram que eu podia assinar’

“Da outra vez eu perguntei para os guias do seu pai. Eles disseram que eu podia assinar, podia trabalhar com esse empresário. E deu esse problema imenso. Não posso mais fazer outro trabalho aqui e depois correr risco e ter que fazer trabalho espiritual de novo”, ele ponderou.

Demonstrando insegurança, o fiscal parece querer algum sinal de que não terá problemas. “Preciso ter certeza de que ninguém vai ver esses novos documentos que eu vou assinar”, escreveu.

A carta foi usada pelo Ministério Público de São Paulo para pedir a conversão da prisão temporária de Artur em preventiva – sem prazo para terminar. A decisão cabe ao juiz Paulo Fernando Deroma de Mello, da 1.ª Vara de Crimes Tributários, Organização Criminosa e Lavagem de São Paulo, que autorizou a Operação Ícaro.

Documento foi usado para pedir a prisão preventiva do auditor.
Documento foi usado para pedir a prisão preventiva do auditor.

Para os promotores, a carta demonstra “não apenas a confirmação do esquema criminoso operado por Artur, mas a intenção do fiscal em manter o sigilo para viabilizar a continuidade”.

Documentos, celulares e computadores apreendidos na Operação Ícaro estão sendo periciados, mas a carta já foi anexada ao processo porque a prisão temporária do fiscal está prestes a vencer. Os promotores consideram que, se for colocado em liberdade, o auditor pode tentar apagar pistas, ocultar provas e combinar versões com outros investigados.

Grau de influência

Em representação à Justiça, o Ministério Público afirma que a liberdade do fiscal, “tendo em conta a posição assumida por ele dentro do esquema criminoso, além de seu grau de influência dentro da Secretaria da Fazenda, pode colocar em risco a colheita de provas essenciais para a investigação”.

“A prisão preventiva visa, ainda, garantir a aplicação da lei penal, evitando que Artur venha a fugir ou mesmo se desfaça de bens e/ou dinheiro, impedindo o efetivo ressarcimento ao erário, já que se trata de esquema milionário com notícia, inclusive, da existência de criptomoedas, a evidenciar clara intenção de mascarar ativos e obstar a devolução dos valores”, argumenta o MP.

Carta não tem assinatura nem destinatário, mas parece ter sido escrita como um pedido de aconselhamento espiritual.
Carta não tem assinatura nem destinatário, mas parece ter sido escrita como um pedido de aconselhamento espiritual.

‘Mãe laranja’

A mãe do fiscal foi pivô da investigação. Professora aposentada da rede pública de São Paulo, Kimio Mizukami da Silva, de 73 anos, consta como dona da empresa Smart Tax, de consultoria tributária.

Em 2021, ela declarou R$ 411 mil no Imposto de Renda. O patrimônio saltou para R$ 46 milhões em 2022 e para R$ 2 bilhões em 2024, em decorrência dos “rendimentos” da empresa. A evolução patrimonial chamou a atenção dos órgãos de controle.

Segundo declaração de Kimio à Receita Federal, o aumento patrimonial teria decorrido, em grande parte, da compra de criptomoedas com os lucros da empresa. A professora também declarou guardar a vultosa quantia de R$ 6 milhões em dinheiro vivo em sua casa.

O Ministério Público acredita que Kimio era usada como laranja na Smart Tax, empresa de fachada, para Artur lavar propinas de gigantes do varejo em troca da liberação de créditos de ICMS.

Além da Ultrafarma e da Fast Shop, o Grupo Nós, dono das lojas de conveniência Oxxo, a Rede 28, de postos de combustíveis, a Kalunga, rede de papelaria e material de escritório, e a distribuidora All Mix também são citadas na investigação.

Artur seria o “cabeça” do suposto esquema. De acordo com o inquérito, ele oferecia uma espécie de consultoria clandestina às empresas. Segundo a investigação, a assessoria incluía orientações sobre documentação, o protocolo dos pedidos em nome das empresas e até a resolução de pendências internas na Secretaria da Fazenda. Com isso, as empresas que pagavam propinas recebiam tratamento privilegiado e “furavam” a fila de restituições. Os procedimentos de ressarcimento de ICMS envolvem cálculos complexos e tendem a ser burocráticos e lentos.

Nesta terça, 19, o governo de São Paulo e o secretário da Fazenda, Samuel Kinoshita, revogaram um decreto que abria caminho para o esquema de corrupção na pasta. As novas regras devem endurecer o ressarcimento do ICMS-ST.

Outros dois fiscais também são investigados por suspeita de corrupção. Marcelo de Almeida Gouveia, lotado na Delegacia Regional Tributária de Osasco, na Grande São Paulo, e Alberto Toshio Murakami, aposentado em janeiro deste ano, são apontados como auxiliares de Artur.

O auditor fiscal Artur Gomes da Silva Neto, da Secretaria da Fazenda do Estado de São Paulo, teria arquitetado esquema de propinas.
O auditor fiscal Artur Gomes da Silva Neto, da Secretaria da Fazenda do Estado de São Paulo, teria arquitetado esquema de propinas.

Mudança de protocolos

Depois que o caso veio a público, a Fazenda criou um grupo de trabalho para revisar todos os processos, protocolos e normatização relacionados ao ressarcimento do ICMS.

O Ministério Público avalia que os entraves em torno do processo de restituição criaram a demanda para o esquema de Artur.

Ao longo dos próximos seis meses, o grupo de trabalho vai vasculhar caso a caso para identificar o alcance da teia montada pelo fiscal e também estudar como melhorar os procedimentos.

 

 

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *