A vaga que nunca existiu
Há silêncios que pesam mais que palavras. E a omissão da Assembleia Legislativa da Bahia em criar o cargo de Auditor no Tribunal de Contas é um desses silêncios que ecoam há décadas, como se a Constituição de 1988 tivesse sido escrita para todos, menos para o Tribunal de Contas do Estado da Bahia.
O Supremo Tribunal Federal, mais uma vez, se vê diante de um dilema que não é apenas jurídico, mas também histórico. A Constituição Federal exige que os tribunais de contas tenham Auditores — os chamados Conselheiros Substitutos — para equilibrar a composição dessas cortes, dar-lhes pluralidade e assegurar a simetria com o modelo federal. Mas na Bahia, o assento reservado nunca saiu do papel.
O tempo passou. Em 2021, o STF já havia declarado inconstitucional a prática de servidores técnicos substituírem conselheiros, e fixou prazo para a criação do cargo. O prazo se esvaiu. A omissão permaneceu. E agora, diante da morte de um conselheiro, o vazio institucional cobra resposta.
No julgamento da Ação Direta de Inconstitucionalidade por Omissão 87, o relator, ministro Dias Toffoli, reconheceu a mora legislativa, mas admitiu uma exceção: permitir ao governador preencher a vaga por livre nomeação. O ministro Flávio Dino, em voto divergente, também abriu espaço para a nomeação, mas apenas depois da aprovação da lei que cria os cargos. Duas leituras, duas portas entreabertas, ambas com o mesmo risco: transformar a exceção em regra, e a regra em letra morta.
A Audicon, associação que representa os Auditores, alerta para o perigo iminente: se a vaga destinada a essa categoria for ocupada, ainda que provisoriamente, por indicação política, cria-se um precedente que não se fecha nunca mais. Outros estados poderão se inspirar na omissão baiana, e o que deveria ser transitório se tornará estratégia.
O paradoxo é cruel: para suprir a ausência de Auditores, admite-se ignorar a razão pela qual eles deveriam existir. É como remediar o vazio com mais vazio, como se fosse possível consertar um silêncio com outro silêncio.
O STF já enfrentou dilemas semelhantes. Em decisões anteriores, preferiu manter cadeiras vazias a permitir que fossem ocupadas por quem não tinha assento reservado pela Constituição. Como bem alertou o saudoso Ministro Sepúlveda Pertence quando do julgamento da ADI 3276/CE: “Ninguém vai morrer se o Tribunal de Contas do Ceará ficar com seis conselheiros. Agora, se Vossa Excelência deixar essa norma transitória, ela nunca se vai exaurir”. Essa firmeza obrigou estados relutantes a cumprir a lei. Foi assim no Ceará. Foi assim no Distrito Federal. Por que não seria assim na Bahia?
Se há algo que a história ensina é que omissões, quando aceitas, tendem a se perpetuar. A cadeira destinada aos Auditores no TCE-BA é uma espécie de fantasma constitucional: todos sabem que existe, mas nunca foi ocupada. Agora, diante da oportunidade de corrigir o descompasso, o risco é que se insista em arranjos paliativos, que só adiam a solução e corroem a autoridade da própria Constituição.
Mais de três décadas se passaram desde a promulgação da Carta de 1988. A Bahia ainda deve ao país e a si mesma o cumprimento de um mandamento constitucional básico. O Supremo tem, mais uma vez, a chance de romper o ciclo da omissão. A história cobrará se essa chance for desperdiçada.