Assassinato no Maranhão vira investigação da PF sobre propina a sobrinho do governador
BRASÍLIA – A Polícia Federal investiga suposta cobrança de propina por um sobrinho do governador do Maranhão, Carlos Brandão (PSB), em contratos estaduais. As suspeitas surgiram a partir do assassinato de um homem em São Luís (MA), em agosto de 2022.
Daniel Brandão, hoje presidente do Tribunal de Contas do Maranhão (TCE-MA), era secretário do governo do tio e esteve à mesa com os envolvidos no crime minutos antes dos disparos feitos pelo matador, que sempre se apresentou nos depoimentos como seu amigo.
Apesar da proximidade com os fatos e de ser apontado como quem viabilizou o encontro, o sobrinho do governador nunca foi chamado a prestar depoimento na investigação conduzida pela polícia estadual.
Procurado, Daniel Brandão afirmou que rejeita tentativas de associar sua imagem a práticas ilícitas e que sofreu uma tentativa de extorsão por parte de quem agora o denuncia. O governo do Maranhão disse que a Polícia Civil realizou todas as diligências consideradas necessárias para elucidação do assassinato e que um segundo procedimento, encerrado em fevereiro deste ano, foi instaurado para apurar suposto envolvimento de agentes públicos com atos de corrupção. Esse segundo caso tramita em sigilo na Justiça estadual (leia mais abaixo).

“Ressalte-se que após a conclusão dos dois inquéritos não houve devolução para diligências complementares, o que leva ao entendimento de que as investigações cumpriram seus objetivo de apurar os fatos”, disse o governo em nota.
A Polícia Civil do Maranhão informou que não chamou Daniel Brandão para depor porque a requisição do Ministério Público não o mencionou e seu nome também não foi citado por nenhuma das pessoas ouvidas ou relacionadas durante a investigação. Entretanto, uma testemunha-chave citou o “amigo Daniel” em depoimento formal no dia seguinte ao crime. Mesmo assim, o sobrinho do governador foi tratado como “indivíduo não identificado” na fase inicial da investigação. O videomonitoramento, os depoimentos à Justiça e até o governador confirmaram a presença de Daniel Brandão no local.
Ele foi tratado como “indivíduo não identificado” na fase inicial da investigação. Entretanto, o videomonitoramento, os depoimentos à Justiça e até o governador confirmaram a presença de Daniel no local.
Seis meses depois do assassinato, Daniel ganhou, aos 37 anos, o cargo vitalício de conselheiro do TCE-MA. Em dezembro do ano passado, foi eleito presidente da Corte que tem entre as funções apreciar as contas de prefeituras e do governo do estado.
O inquérito da PF foi aberto em maio e está em fase inicial. Investigadores ainda analisam a consistência das informações obtidas a partir dos primeiros depoimentos colhidos. Nesta fase, não há indícios de envolvimento do governador do Maranhão, Carlos Brandão, nos fatos sob investigação.

A apuração surgiu após denúncias apresentadas a órgãos federais por Lorena da Silva Santos, companheira do assassino confesso Gilbson Cesar Soares Cutrim Junior, condenado a 13 anos de prisão.
Segundo a mulher, seu companheiro prestava serviços para os Brandões. O trabalho consistiria em procurar credores antigos do governo do Estado e negociar a devolução de parte dos valores a pessoas indicadas pelo grupo. Se o empresário topasse o acordo, o dinheiro devido era liberado.
“Eles procuraram meu marido. Era para ele procurar empresas que tivessem pagamentos trancados que eles iam liberar. Meu marido ficava com uma parte e as outras eles iam usar para campanha”, afirmou ao Estadão.

Ela disse ainda que Daniel Brandão era beneficiário de uma fatia das propinas arrecadadas, em conjunto com um vereador de São Luís aliado do grupo, Beto Castro (Avante).
“O valor ia ser dividido assim: um tanto ia ficar com meu marido, um tanto ia ficar com Beto Castro e um tanto ia para Daniel. Ia ser dividido e era para usar na campanha, da eleição que ia acontecer. Mas foi descontada uma dívida trabalhista da empresa. E não saiu nem um centavo para ninguém”, relatou.
A partir das informações, a Polícia Federal abriu inquérito e enviou o caso ao Superior Tribunal de Justiça (STJ) devido à suspeita de participação de Daniel Brandão, que tem direito a foro privilegiado por ser membro do TCE-MA.
A mulher do assassino prestou depoimento à PF sobre o suposto esquema em 10 de julho. O Estadão apurou que Gilbson negocia um acordo de delação premiada, ainda em fase de tratativas.
Lorena disse ainda que, até a transferência do marido, ela havia trocado o silêncio por pagamentos periódicos realizados por Marcus Brandão, irmão do governador, com quem descreve uma reunião dentro de um carro para tratar dos acertos.
A versão dela sobre a desistência do suposto favor financeiro seria o estado de deterioração física e mental do companheiro em Pedrinhas. Relator da investigação, o ministro Humberto Martins determinou a transferência dele para a penitenciária federal de Brasília, em 31 de maio deste ano.
Homicídio por causa de acerto de contas
O crime cometido por Gilbson Junior teria sido motivado por uma briga envolvendo a divisão de uma propina cobrada de uma das empresas. Por causa dessa briga, João Bosco de Oliveira Sobrinho Pereira foi assassinado com três tiros em um prédio comercial que fica na mais avenida mais importante de São Luís.
A investigação sobre o homicídio conduzida pela Polícia Civil do Maranhão constatou que o vereador Beto Castro (Avante) e Daniel Brandão, então secretário estadual de Monitoramento de Ações Governamentais, participaram da conversa que antecedeu o crime, na tarde de 19 de agosto de 2022.
Tio do secretário, Carlos Brandão havia assumido o Palácio dos Leões em abril de 2022 após Flávio Dino renunciar para concorrer ao Senado.
O objetivo do encontro seria resolver o rateio de um pagamento de R$ 778 mil a uma empresa de vigilância que prestou serviços ao governo em 2014. De acordo com as investigações, Gilbson foi acionado para destravar esse pagamento no governo, mas se tratava de uma área sob influência política de Beto Castro. Por isso, Gilbson buscou o auxílio do vereador.

O recurso foi empenhado — jargão orçamentário para “reservado” — em 10 de agosto e pago no dia seguinte, conforme o Portal da Transparência.
Beto Castro não recebeu o percentual combinado e admitiu que cobrou Gilbson para o acerto. O matador, por sua vez, havia se justificado dizendo que o dinheiro não caiu na conta da empresa e não seria possível pagar nada. O impasse evoluiu para ameaças. De acordo com as investigações, João Bosco, a vítima, seria um “parceiro comercial” do vereador e foi acionado por ele para cobrar de Gilbson o pagamento combinado.
A conversa evoluiu para uma discussão. Segundo a investigação, Daniel Brandão se “se levantou da mesa onde os quatro estavam às 16h25”. Um minuto depois, Gilbson matou Bosco. Gilbson alegou que precisou se antecipar a uma ameaça do homem que fazia papel de “cobrador” de Beto Castro e que anunciou represálias contra sua família.

Além das imagens de videomonitoramento, as duas únicas versões sobre as circunstâncias do crime levadas ao inquérito são de Beto Castro e de Gilbson Junior. Elas são conflitantes.
Segundo o vereador, o grupo encontrou Daniel Brandão no local por mera coincidência. O assassino diz que foi Daniel quem o telefonou e pediu para que comparecesse. Nessa época, entretanto, a versão do matador era a de que Daniel só queria ajudar a solucionar o impasse depois de ter sido procurado por Beto Castro e se preocupado com o relato.
“Eles sabiam que Daniel Brandão era meu amigo, isso eu não escondo de ninguém. Tinha e tenho uma amizade muito boa. Quando ele (Beto) descobriu que Daniel podia chegar em mim, me pressionar, me fazer pagar…. O Daniel me ligou e falou: ‘Junior, onde você está?’ Eu disse que estava em casa, tinha feito uma cirurgia no olho. ‘Mas eu preciso que a gente se encontre num lugar com bastante testemunha. O Beto Castro está aqui, começou a falar, está acompanhado de uma pessoa bastante alterada, parecendo desequilibrada, então vamos para um local em que a gente possa resolver’”, disse, em depoimento ao tribunal do júri, em dezembro de 2024.
Depois de meses na prisão, o assassino e a família dele decidiram apresentar nova versão e trazer outros fatos à tona. A mudança teria se dado por causa de maus tratos ao condenado em Pedrinhas. Foi a partir das novas denúncias que a Polícia Federal entrou no caso e começou a apurar a suspeita de esquema de propina.
O governo do Maranhão afirmou que “o débito em questão refere-se a serviços alegados terem sido prestados no último mês do ano de 2014, durante a gestão anterior, e que permaneceram sem processamento ou pagamento à época. Em 2019, o processo foi reativado e validado para pagamento”. Contudo, não detalhou os critérios que levaram à realização do pagamento em 11 de agosto de 2022.
O vereador Beto Castro foi procurado pela reportagem para esclarecer a versão e sobre o porquê de não ter relatado, no primeiro depoimento, a presença de Daniel Brandão. Ele disse que não se manifestaria.
Cobrador tinha histórico de violência e era comissionado do governo
A vítima João Bosco Pereira era conhecido em São Luís como um “notório cobrador de agiotas” e respondia por outros crimes violentos. Em 2020, o então prefeito da capital, Edivaldo Holanda Junior, registrou um boletim de ocorrência dizendo que Bosco estava de campana na porta de sua casa, impedindo entradas e saídas, até que uma suposta dívida fosse paga.
Apesar do histórico, Bosco foi nomeado para o cargo de auxiliar técnico da Secretaria de Estado de Educação, em novembro de 2021. O ato foi assinado pelo então chefe da pasta, Felipe Camarão, hoje vice de Carlos Brandão, com quem é rompido.
Carlos Brandão foi vice-governador por duas vezes de Flávio Dino, hoje ministro do Supremo Tribunal Federal (STF). Hoje ambos são rompidos. A disputa política no Maranhão está polarizada entre aliados de Brandão e antigos aliados de Dino, entre os quais está Felipe Camarão.
Em nota ao Estadão, o vice-governador afirmou que Bosco “preencheu todos os requisitos exigidos” por leis e decretos para a nomeação e que ela foi “aprovada pela Casa Civil”. O comissionado ficou no cargo até o dia em que foi morto.
Disse ainda que o empenho e o pagamento do recurso para a empresa não foram realizados no período em que ele comandou a secretaria. Ele foi substituído quatro meses antes.
O conselheiro Daniel Brandão afirmou que em setembro do ano passado registrou boletim de ocorrência relatando ameaça e tentativa de extorsão por parte da família de Gilbson Junior. Eles teriam pedido vantagem financeira em venda de terras em troca para não relacionarem Daniel com o crime.
O conselheiro, porém, não deu informações sobre os motivos que o levaram a participar da reunião que tratou da dívida criada após o pagamento à empresa credora.
“Rejeito, de forma categórica e veemente, qualquer tentativa de associar minha imagem a práticas ilícitas, por serem falsas, infundadas, destituídas de materialidade e motivadas por interesses políticos. Minha trajetória é pública e transparente, jamais tendo respondido a qualquer processo por condutas ilícitas”, destacou.
Marcus Brandão foi procurado para comentar a acusação de que viabilizou uma mesada à mulher do assassino em troca do silêncio da família. Ele não se manifestou.