28 de agosto de 2025
Politica

As contradições na consolidação do grito de Independência

A definição de datas comemorativas é uma forma de viver e reviver fatos considerados relevantes para um povo, uma comunidade ou um grupo específico. Essas datas atuam como marcos simbólicos de identidade coletiva, memória histórica e resistência cultural. Nesse sentido, os diversos segmentos étnicos e culturais que formam a sociedade brasileira têm o direito constitucional de ver suas datas significativas reconhecidas e fixadas em lei. Isso assegura, de forma concreta, o direito cultural à própria história e à valorização das expressões culturais populares, indígenas, afro-brasileiras, entre outras.

O artigo 215 da Constituição Federal de 1988 respalda esse direito ao garantir o pleno exercício dos direitos culturais e ao estabelecer como dever do Estado a proteção das manifestações culturais dos diferentes grupos formadores da sociedade brasileira. Trata-se de um reconhecimento importante de que a cultura não é homogênea nem estática, mas plural, dinâmica e multifacetada.

Durante muito tempo, a história oficial do Brasil privilegiou uma narrativa centrada em “heróis nacionais” e grandes feitos individuais. D. Pedro I, por exemplo, é amplamente lembrado por ter proclamado a Independência do Brasil às margens do riacho Ipiranga, em 7 de setembro de 1822. Essa versão, no entanto, simplifica um processo que foi longo, cheio de contradições e que envolveu uma diversidade de personagens — muitos dos quais foram silenciados pela história tradicional.

Felizmente, essa narrativa vem sendo progressivamente revisada. A história das lutas pela independência está sendo resgatada com mais profundidade por estudiosos que trazem à tona o protagonismo de setores historicamente marginalizados, como indígenas, negros, mulheres e populações do interior. A historiadora Mary Del Priore, por exemplo, é uma das vozes que vem revelando as presenças femininas e populares que resistiram, atuaram e construíram a história nacional, ainda que quase sempre excluídas dos registros oficiais.

É nesse contexto que surge o Projeto de Lei nº 3220/2025, que busca instituir o Dia Nacional da Consolidação da Independência do Brasil. A proposta pretende reconhecer oficialmente episódios decisivos ocorridos após o 7 de setembro, especialmente as batalhas da Bahia — como as de Pirajá, Itaparica e Cachoeira, que ocorreram em 1823 e culminaram com a expulsão definitiva das tropas portuguesas. A Bahia, por sua vez, já comemora o 2 de julho como data magna, enfatizando que o processo de independência foi desigual e territorialmente assimétrico.

Apesar da boa intenção, o projeto ainda recorre a uma linguagem idealizada e homogênea, atribuindo aos participantes dessas lutas motivações uniformes, como o “inabalável propósito de resistir à exploração da metrópole”. Essa formulação obscurece a realidade histórica: muitos lutaram por liberdade prometida, outros foram forçados à guerra, alguns atuaram por interesses locais. A construção de uma consciência nacional unificada em 1823 é uma leitura anacrônica e conveniente.

A crítica, portanto, reside na maneira como os sujeitos históricos são representados. Homogeneizá-los com a roupagem de heróis patrióticos ignora suas contradições, motivações múltiplas e, em muitos casos, sua condição de oprimidos. Escravizados foram enviados à linha de frente; mulheres atuaram como combatentes, cozinheiras, informantes e organizadoras da retaguarda, mas raramente são lembradas. Ainda hoje, seu papel segue invisibilizado.

Mais grave ainda é o fato de que, mesmo após a consolidação da Independência, a estrutura social continuou baseada na exclusão. A escravidão permaneceu legal até 1888. A Constituição de 1824 previa liberdade e propriedade, mas esses direitos eram negados à maioria. Povos indígenas foram perseguidos, suas terras apropriadas, suas línguas e culturas reprimidas. Essa violência se prolonga até hoje, inclusive com a tese do marco temporal, que ameaça o direito à terra de comunidades tradicionais.

Além disso, a perpetuação de desigualdades sociais e culturais está frequentemente entrelaçada com práticas de corrupção institucionalizada. Recursos públicos que deveriam ser direcionados à reparação histórica e à inclusão são desviados ou mal geridos, perpetuando um ciclo de negligência estatal. A corrupção não apenas enfraquece as instituições democráticas, mas também sabota políticas públicas que poderiam promover justiça social e igualdade de oportunidades.

As mulheres, por sua vez, levaram mais de cem anos para conquistar o direito ao voto, e ainda enfrentam enormes desigualdades em todas as esferas da vida pública e privada. Sua presença política é minoritária, e os índices de violência de gênero continuam alarmantes. A falta de investimento efetivo em políticas de proteção e igualdade de gênero, muitas vezes, também está ligada à má gestão e ao desvio de recursos públicos destinados a essas finalidades.

O reconhecimento de datas simbólicas é importante, sim, mas não pode reproduzir os mesmos apagamentos históricos que busca combater. A consolidação da independência deve ser entendida como um processo coletivo, multifacetado e ainda em curso. Ela vive nas lutas cotidianas por terra, dignidade, educação, justiça e memória. Vive nos povos originários que resistem à grilagem e à destruição de seus territórios, nas comunidades quilombolas que lutam por titulação, nas mulheres que desafiam o machismo estrutural.

A verdadeira independência será aquela que incluir a todos. E isso só será possível com políticas públicas que enfrentem as desigualdades, combatam a corrupção em todas as suas formas, valorizem as múltiplas histórias e fortaleçam um compromisso efetivo com a democracia cultural. Enquanto a apropriação indevida dos recursos públicos continuar servindo a interesses privados e elites econômicas, a promessa de liberdade seguirá incompleta para milhões de brasileiros.

Este texto reflete única e exclusivamente a opinião do(a) autor(a) e não representa a visão do Instituto Não Aceito Corrupção (Inac). Esta série é uma parceria entre o Blog do Fausto Macedo e o Instituto Não Aceito Corrupção. Os artigos têm publicação periódica

 

 

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