As provas da PF no inquérito sobre o esquema de R$ 119 bi das fintechs do crime organizado no câmbio
Um esquema tão grande quanto a bancarização do crime organizado por meio de fintechs e fundos de investimento no setor de combustível está nas mãos da Polícia Federal. Trata-se do uso das instituições de pagamento para a evasão de divisas e lavagem de dinheiro no mercado do câmbio investigado na Operação Tai Pan, realizada em novembro de 2024 e que estavam com seus documentos sob sigilo até agora. Relatórios de Inteligência do Conselho de Controle de Atividades Financeiras (Coaf) mostram que transações atípicas de pessoas jurídicas e físicas usadas como laranjas pelos principais acusados chegam a R$ 119 bilhões.
Trata-se do maior volume até hoje investigado pela PF em um único inquérito. Sua dimensão forçou os investigadores a tomar uma decisão: concentrar a apuração apenas nas pessoas mais “relevantes”. É o que escreveu o presidente do inquérito, o delegado Guilherme Alves Siqueira. “Esse volume de recursos movimentados dificultou a análise detalhada de todos envolvidos, forçando a investigação, neste primeiro momento, a se concentrar nas contas bancárias reputadas mais relevantes, seja pelo montante transacionado, seja pela relação direta com outras práticas criminosas.”
Segundo ele, as movimentações atípicas trazidas pelos relatórios corroboram o “modus operandi da organização criminosa”. O fluxo do dinheiro revela que os doleiros usam empresas de fachada, cujas contas bancárias são indicadas aos clientes. “Estes, quer estejam interessados na lavagem de capitais ou na evasão de divisas, remetem valores (depósitos, transferências) para as contas das empresas de fachada, em troca do recebimento de valores no exterior, ou de USDT (uma criptomoeda), que é útil tanto para ocultar patrimônio ilícito quanto para remessas internacionais”, afirmou em sua representação à Justiça.
Deflagrada em novembro de 2024, a Operação Tai Pan cumpriu 39 mandados de busca e apreensão e obteve o sequestro de bens de 34 alvos, inclusive de nove operadoras de criptomoeadas e três fintechs, uma das quais, o 2GoBank — que já era investigada por ligações com o Primeiro Comando da Capital (PCC) —, além da prisão preventiva de 16 acusados de envolvimento no esquema. Seus autos estavam sob sigilo na Justiça Federal até agora. Os acusados alegaram inocência.
As fintechs movimentavam dinheiro no Brasil e faziam operações de câmbio por meio das chamadas contas-bolsão, nas quais os donos do dinheiro só são conhecidos pela instituição de pagamentos, permanecendo ocultos para os órgãos de controle.

As operações investigadas envolvem países como Estados Unidos, China, Panamá, Argentina, Paraguai, Turquia, Venezuela e Brasil, além de criptoativos como USDT e bitcoin. “Hoje, qualquer indivíduo, dentro de sua própria casa, pode criar uma carteira virtual, contendo um ou mais endereços da blockchain, e passar a movimentar valores em criptoativos, transacionando com quaisquer pessoas ou países do mundo, sem ciência ou controle dos órgãos governamentais, e sem possibilidade de apreensão das quantias transacionadas”, explicou o delegado, responsável pelo pedido de bloqueio dos bens dos envolvidos no esquema.
Para evitar a instabilidade de criptomoedas como o Bitcoin, o crime organizado passou a usar os chamados stablecoins lastreados em ativos como ouro, petróleo ou dólar. Esse é o caso do chamado Dólar Tether, o USDT, que, segundo o delegado, passou a ser usado maciçamente em operações de evasão de divisas e de lavagem de capitais. “São bilhões de reais mensais, oriundos das atividades criminosas mais diversas e que precisam ser ‘convertidos’ em USDT para evitar bloqueios judiciais e para livre movimentação entre países”, escreveu o delegado.
O centro da investigação é o empresário chinês Tao Li e nasceu como um desdobramento da Operação Dollaro Bucato II, que investigou a empresa Cristália Produtos Químicos e Farmacêuticos. Com sede em Campinas, ela estaria usando os serviços de doleiros para a evasão de divisas. Tao Li teve a prisão preventiva decretada, mas acabou soltou por um habeas corpus. O esquema usaria empresas de fachada e laranjas para compor o quadro societário de empresas que movimentavam os valores por meio de criptoativos e fintechs.

A rede de empresas de prateleira e as fintechs dependiam da participação de contadores, advogados, gerentes de banco e de integrantes das juntas comerciais. O esquema, de acordo com os dados inéditos da Operação Tai Pan, funcionava assim:
Primeiro, um ou mais CNPJ são selecionados para abrirem contas em bancos de câmbio. Segundo a PF, os valores recebidos dos clientes circulam por diversas empresas e são direcionados para contratos de “aquisição de mercadoria (criptoativo) no exterior”. Em seguida, esses recursos chegam a offshores ou mesmo diretamente para uma conta em corretora estrangeira também controlada pelo doleiro. No exterior, o doleiro tem liquidez para a aquisição dos criptoativos em grande volume, algumas vezes conseguindo até mesmo desconto em razão do alto volume transacionado.
As negociações, de acordo com o delegado, usualmente são no mercado de balcão (OTC: over-the-counter) de grandes corretoras internacionais. “Com o USDT em mãos, os doleiros fornecem a contrapartida aos clientes, seja no Brasil ou no exterior. Os USDT são transferidos para os endereços indicados por estes clientes, sem que haja qualquer controle estatal ou tributação.” Trata-se de um paraíso sem igual para o dinheiro do tráfico internacional de drogas, para sonegadores de impostos e para o terrorismo.
De acordo com o delegado, os envolvidos investigados cobravam taxas mais caras do que as praticadas por instituições financeiras habilitadas pelo Banco Central. “O que atrai os clientes, portanto, não é o custo reduzido, mas sim a possibilidade de transacionar valores ilícitos de forma anônima.”

Alvo central da investigação, o chinês Tao Li chegou ao Brasil em 2011 e logo abriu uma empresa com atuação no comércio exterior. Em 2013, ele passou a integrar o quadro societário de nove empresas do grupo Global com atuação no comércio de ouro, câmbio, vestuário, turismo, hotelaria e importação e exportação. Todas em sociedade com outro acusado no esquema bilionário, o também chinês Lei Chen, além de sua companheira, Ying Liu, e com laranjas brasileiros e chineses que atuavam no comércio de rua de São Paulo.
Só um dos acusados de participar do esquema, o empresário brasileiro Marcos de Alencastro Curado, recebeu em sua conta bancária R$ 163,27 milhões da SJ Intermediações de Negócios e R$ 86,42 milhões, que se originaram da Global Intermediação de Negócios, para adquirir criptoativos no exterior. Ambas as empresas seriam operadas por Tao Li e foram investigadas na Operação Rekt, da PF, que envolvia lavagem de dinheiro do narcotráfico. O Estadão não conseguiu localizar suas defesas. À Justiça, todos alegaram inocência.
“Como contrapartida, Alencastro teria fornecido criptoativos para uma vasta gama de clientes, em sua grande maioria interessados na evasão de divisas e lavagem de capitais.” A empresa que lhe forneceu as criptomoedas foi a Bitseller. Só para a SJ, ela vendeu R$ 95,6 milhões em ativos digitais enquanto a Global recebeu outros R$ 15,7 milhões.
Outra empresa usada pelo esquema era Badminton Traveller, que registrou R$ 54,8 milhões em transações atípicas, parte dos quais foi transferida à Novadax Brasil Pagamentos para a compra de criptomoedas. Já a Global China Travel teria movimentado R$ 46,5 milhões com os mesmos propósitos. Um dos remetentes da Global é a primeira fintech que apareceu na investigação: a Freddom (You Be Bank), que movimentou R$ 209 milhões, cujos débitos se concentraram em Alencastro e na Bestseller.
A partir de 2019, Tao Li teria passado a controlar toda a cadeia criminosa. Desde dezenas de empresas de fachada até offshores que adquirem ativos no exterior, passando pelas empresas que fazem o câmbio no Brasil. Treze delas foram listadas pela PF. Elas tinham uma mesmo endereço e um mesmo contador e atuariam em conjunto com a Swapfy Serviços de Corretagem e Custódia de Criptoativos.
As compensações entre as empresas do grupo do chinês eram feitas por meio da fintech Opey Tecnologia e Soluções Financeiras e Serviços que atuava como um banco digital. “A utilização de ‘banco digital’ próprio lhe concederia certas vantagens, como a possibilidade de realizar transações TED em dias não úteis”, afirmou o delegado.
‘Aqui é perigoso’
A Swapfy teria, segundo a PF, a função de “formalizar os contratos de câmbio, e remeter os recursos para offshore também sob controle de Tao Li (CLTS Technologies LTD)”. Ainda no exterior, os valores eram convertidos em USDT e remetidos ao destino, como a China, o Panamá e os Estados Unidos. Li se comunicava pouco com seus parceiros pelo Whatsapp. Ele preferia o aplicativo de mensagens chinês WeChat e explicou uma vez por que: “Aqui se falar coisa perigoso (sic)… o WeChat servidor está na China… nós falar português e ficar tranquilo…lá não tem interesse em nós (sic)”.
A exemplo do que foi detectado na Operação Carbono Oculto, também na Tai Pan os acusados usaram uma rede de padarias, bares e restaurantes para lavar dinheiro do esquema. O grupo fazia ainda operações por meio do Banco do Brasil para enviar remessas de dinheiro à Hong Kong, na China. Dezenas de mensagens de Li e seus contadores constam da investigação da PF atestando as remessas irregulares.

Um dos clientes do esquema, Rubens Gomes da Cruz, pretendia adquirir armas no Paraguai. Ele usou o chinês para efetuar o pagamento. O esquema pagava seus laranjas com dinheiro vivo, ou seja, não havia ninguém usado inconscientemente pelo esquema entre os investigados. O grupo se preocupava até em fazer declarações falsas de renda dos laranjas para dar lastro à participação societária deles nas empresas.
Entre eles estaria Welyson Alves, relacionado a 16 empresas. Ele trabalhava na Citar tech, voltada a evasão de divisas por meio de criptoativos. Era ele quem trabalhava com a 2Go Administração e Pagamentos, o 2GoBank. Ele enviaria milhões de reais todos os dias para o exterior e transferia parte desses valores por meio do Travelex Bank para o Bank of New York Mellon e para a CLTS Technologies, de Vancouver, no Canadá, uma das empresas offshore de Tao Li, que operaria com o nome de Aquanow na aquisição de criptos no exterior.
Li também lavaria dinheiro do EZ Bank e a Grossi Sore, envolvidos em esquemas de pirâmide financeira conhecido como Trading Connect e com contrabandistas chineses. “Tais criminosos se valeram dos serviços prestados por TAO LI para converter os valores obtidos em USDT, ativo virtual que praticamente inviabiliza o rastreio e bloqueio do proveito do crime.” O EZ Bank mantinha ligações com diretores do 2GoBank, que fazia operações com USDT. A primeira delas envolveu R$ 1,2 milhão.
Tao Li chegou a ser preso em 2022, quando dois de seus subordinados foram flagrados esvaziando o escritório do acusado na Avenida Liberdade, em São Paulo. Nos Estados Unidos, o bando controlaria empresas em Miami usadas em triangulações com a China. Também seriam usadas empresas no Panamá, com a Open Port.
Em um diálogo Tao Li reconhece “que trabalha nessa área há muitos anos, fazendo câmbios em valores fracionados, de empresa cujo sócio “laranja” seria cidadão americano”. Ele operaria contratos de câmbio com bancos tradicionais e tentava burlar o compliance de empresas, como a Okcoin.
O empresário simularia importações fictícias para justificar as remessas para o exterior. Quando nos bancos solicitavam documentos que comprovassem as operações de comércio internacional, o grupo de Tao Li enviava documentos falsos do Paraguai. Assim ocorreu com o Wells Fargo. Assim como no caso de evasão de divisas que envolvia operações na Argentina. Só a empresária Ying Liu, a Lulu, mulher de Tao Li, teria ajudado a converter US$ 200 milhões de bolívares venezuelanos para bitcoins.

Por fim, os investigadores se depararam na apuração com uma empresa em nome do empresário Paulo Rogério da Silva, sócio da Sevem Tecnologia Digital, empresa que, segundo a delação de 2017 feita pelo executivo Ricardo Saud, diretor da JBS, foi usada para o pagamento de propinas a políticos.
Comunicação com o PCC
Ao examinar mensagens de um dos sócios de Tao Li, a polícia encontrou um diálogo que indica a relação de parte dos envolvidos com o PCC. Ao cobrar um executivo do grupo Global sobre recursos movimentados por meio de uma offshore nos EUA, um integrante da facção deixa claro que o PCC não tolera ser passado para trás. O diálogo releva ainda a dificuldade de comunicação do mundo corporativo com o mundo do crime. O bandido diz:
“Qual essa dificuldade de você encostar aí malandro e fazer papel de homem, vagabundo e vir nas ideias com nós aí. Você não envolveu o comando na caminhada, você não envolveu. (…) O dinheiro foi parar nas suas mão (sic), certo parceiro? Os dois milhão, parceiro, tá faltando 900 e poucos mil aí, certo, parceiro? Qual a dificuldade de você estar encostando e ser um homem honrado, honrando o que você tem no meio das pernas, de ir nas ideia com o crime?”
O executivo, sem saber o que dizer às indagações do bandido responde com um “Não, senhor”. E recebe um esculacho, uma repreensão final sobre como conversar com o criminoso: “Você não tá falando com polícia não, vagabundo, tá falando com bandido, é criminoso irmão, ‘não senhor’ você fala com polícia, rapaz, entendeu, tio?”
A conclusão do delegado Guilherme está nas mãos de Justiça: “Percebe-se que os envolvidos operam uma grande lavanderia de dinheiro, recolhendo valores em espécie, cheques, de procedências variadas, e convertendo tais valores em USDT, visando promover a ocultação e evasão massiva de divisas.”