Bolsonaro e a relação de causalidade com os atos de 8 de Janeiro
O que me tem chamado a atenção na ação penal movida contra o ex-presidente Bolsonaro e outras pessoas que integraram seu governo é a vinculação com a eclosão dos atos de 8 de janeiro.
Para entendermos se houve, ou não, essa vinculação temos de analisar o que é causa e relação de causalidade no direito penal.
Causa é a conduta sem a qual o resultado não teria ocorrido.
E o que é conduta?
A conduta pode ser definida como a ação ou omissão humana, consciente, voluntária e dirigida a uma determinada finalidade. Portanto, somente os seres humanos vivos podem praticar uma conduta voluntária e consciente, visando uma finalidade. Assim, os animais irracionais não podem realizar uma conduta, o mesmo ocorrendo com os fenômenos da natureza, que, inclusive, a afasta.
A conduta, em regra, se revela pela ação. Esta é uma atitude positiva realizada por meio de um movimento corpóreo tendente a uma finalidade. Quando o crime é cometido de forma positiva (ação), diz-se que o foi por comissão.
A conduta comissiva é a concretização material da vontade do agente e é realizada mediante a prática de um ou mais atos. O ato é um componente da conduta comissiva (ação). Assim, o crime pode ser praticado com um único ato (ex: injúria oral) ou com mais de um ato (ex: estelionato).
Já a omissão consiste em deixar de fazer alguma coisa, quando a lei o obrigava a agir. A omissão é normativa, pois a lei é que obriga a pessoa a agir em face de determinado caso concreto. Em suma, a pessoa tem o dever jurídico de agir e acaba se omitindo.
O resultado pode ser definido como a modificação do mundo exterior devido a um comportamento humano voluntário. Ou seja, é o efeito da conduta. São exemplos de resultado naturalístico: a morte no homicídio; o dano à integridade corporal nas lesões corporais; a ofensa à honra no crime de injúria, o prejuízo patrimonial no crime de furto, o perigo concreto no crime de explosão. Com efeito, o resultado pode ocorrer tanto nos crimes de dano quanto nos de perigo.
Há necessidade de verificar se foi a conduta do agente que deu causa ao resultado. Caso negativo, o fato será atípico e não terá ocorrido crime.
Há crimes que não possuem resultado naturalístico, como os de mera conduta (exemplo: invasão de domicílio – art. 150 do CP). Todavia, mesmo nesses crimes, há resultado jurídico, haja vista que houve dano efetivo ou potencial ao objeto jurídico tutelado pela norma. Esse conceito é necessário para explicar o art. 13 do Código Penal, que diz que a existência do crime depende do resultado.
Portanto, existem duas espécies de resultado:
a) naturalístico: que é a modificação do mundo exterior em face da conduta do agente;
b) jurídico ou normativo: que é a modificação do mundo jurídico em decorrência de uma conduta, que causa dano efetivo ou potencial ao objeto jurídico tutelado pela norma penal.
Embora o legislador pátrio tenha adotado o critério jurídico no art. 13 do Código Penal, a doutrina preocupa-se com o critério naturalístico de resultado, diferenciando os crimes materiais, formais e de mera conduta justamente em face do resultado naturalístico produzido.
Diz o art. 13, caput, do Código Penal, que: “O resultado, de que depende a existência do crime, somente é imputável a quem lhe deu causa. Considera-se causa a ação ou omissão sem a qual o resultado não teria ocorrido”.
Assim, a relação de causalidade é o elo que liga a conduta ao resultado.
O Código Penal adotou a teoria da equivalência dos antecedentes causais ou do “sine qua non”, segundo o que causa é a ação ou omissão sem a qual o resultado não teria ocorrido (art. 13, caput, 2ª parte). Deve ser aplicado o processo de eliminação hipotético em que causa é aquilo que, se retirado, não haveria o resultado.
A crítica que se faz a essa teoria é devido à sua elasticidade, já que pode regredir praticamente ao infinito, haja vista que tudo o que houver contribuído para o evento será considerado causa. Todavia, ela não leva a excessos, uma vez que deve ser verificado se o sujeito agiu com dolo ou culpa. Por exemplo, a fabricação de um revólver é causa de um homicídio praticado com esta arma? Entendemos que sim; porém, se o fabricante não agiu com dolo ao fabricá-la e se tomou todos os cuidados comerciais quando da venda, não incorrendo em culpa, não poderá ser responsabilizado pelo evento.
O mesmo se diga quanto à responsabilidade dos pais pelos atos ilícitos cometidos pelos filhos. Se não analisarmos a existência de dolo ou culpa, a concepção do filho criminoso será causa para um ilícito por ele praticado e os pais teriam de ser responsabilizados pelo evento. Obviamente, haja vista que ninguém concebe um filho para cometer ilícitos, não há como responsabilizar os pais pelos crimes praticados pelos filhos.
Assim, para a teoria da equivalência dos antecedentes causais, ocorrerá homicídio na conduta de João que alvejou Pedro com vários disparos de arma de fogo com intenção de matá-lo, vindo a vítima a falecer. Mesmo que para a morte de Pedro tenham contribuído outras causas (concausas), como a hemofilia, o diabete, a infecção hospitalar etc., o resultado (morte) será imputado a João. Dessa forma, os disparos de arma de fogo foram causa para a morte da vítima, isso porque sem eles o resultado morte não teria ocorrido.
A concausa é uma outra causa que, ligada à anterior, contribui para a eclosão do resultado. Ela pode ser preexistente, concomitante ou superveniente.
As concausas preexistentes ou concomitantes não excluem o nexo causal, vez que estão ligadas à causa original e dentro do processo causal.
A concausa relativamente independente possui alguma relação com a conduta, sem a qual não teria ocorrido. Todavia, comporta-se como se por si só tivesse causado o resultado.
Na realidade, não existe diferença prática entre a “causa” e a “concausa”, motivo pelo qual prefiro chamá-las simplesmente de “causa”.
A relação de causalidade só é aplicável aos crimes que imprescindem da produção do resultado naturalístico (materiais), ficando, portanto, excluídos os crimes formais e de mera conduta.
Por outro lado, a causalidade na omissão é normativa, pois do nada nada surge. A pessoa responde pelo crime porque a lei assim determina, uma vez que tinha o dever jurídico de agir e não agiu.
Nos crimes omissivos impróprios, o sujeito não é responsabilizado por ter causado o resultado, uma vez que inexiste nexo de causalidade entre a omissão e o resultado. Sua responsabilidade penal se deve ao fato de não ter agido quando tinha o dever jurídico de impedir a produção do resultado, quando possível fazê-lo.
Já nos crimes omissivos próprios, o sujeito responde pelo crime por que deixou de agir quando a norma o obrigava a uma atitude positiva, independente da produção de qualquer resultado posterior. Por isso, entende-se que a omissão é normativa, uma vez que a norma é que obriga o sujeito a agir em determinados casos.
Feitas essas considerações há necessidade de analisar se as condutas perpetradas pelos acusados foram a causa dos atos de 8 de janeiro, anotando que somente poderão ser imputadas condutas dolosas, já que aqueles crimes somente podem ser cometidos com intenção, isto é, com dolo.
Não basta, assim, mera suposição, mas que sejam os atos cometidos por Bolsonaro e demais acusados diretamente responsáveis pelo vandalismo existente naquela data, tidos como atos antidemocráticos pela Excelsa Corte, que condenou centenas de pessoas de “baciada”, sem a individualização das suas condutas, violando, no meu modo de ver, a teoria finalista da ação.
Lembro, aliás, que, por ocasião dos atos de 8 de janeiro, Bolsonaro e os demais acusados não mais integravam a administração pública e, por isso, não tinham o dever jurídico de impedir a produção daquele resultado, que somente lhes pode ser imputado se houver prova cabal, acima de qualquer dúvida razoável, que praticaram condutas voltadas à sua eclosão, não bastando meras suposições e presunções.
Se aqueles atos surgiram de forma espontânea em razão do fenômeno da turba enfurecida, conhecido como efeito manada, como é possível vincular condutas pretéritas a algo que surgiu naquele momento, sem liderança definida?
Só com a vinculação dos acusados aos atos de 8 de janeiro é que haverá possibilidade técnica de condenação, seja planejando, mandando, instigando, induzindo ou os auxiliando indiretamente com seu financiamento, transporte, logística ou facilitação.
Evidente que para essa vinculação e eventual condenação dos acusados não bastam ilações, suposições, conjecturas ou presunções, mas provas fortes e convergentes, além de qualquer dúvida razoável, da participação naqueles delitos, com a imprescindível individualização da conduta de todos os envolvidos.
Óbvio que se for demonstrado que os acusados tinham a intenção de que aqueles atos ocorressem e praticassem condutas voltadas à sua eclosão, devem ser responsabilizados criminalmente.
Não demonstrada, porém, qualquer vinculação de ações praticadas pelos acusados com aqueles atos de 8 de janeiro, caso tenha realmente ocorrido, todo o restante fica na cogitação, no planejamento, no querer, no pretender, que são condutas impuníveis no direito penal por não haver o início de execução de qualquer delito, excepcionando apenas os atos preparatórios puníveis, que são aqueles previstos em lei, como os crimes de associação e organização criminosa, que possuem elementares próprias.
Enfim, o que se aguarda no julgamento que se inicia no próximo dia 02 é que o direito seja analisado e aplicado de forma técnica e isenta para que a decisão que ficará para a história não seja manchada com a pecha de injustiça, o que não será nada bom para todos os envolvidos.
Links de artigos sobre o tema:
https://www.jusbrasil.com.br/artigos/o-julgamento-dos-atos-de-08012023/1977150457
https://www.jusbrasil.com.br/artigos/injustica/1737973502
https://www.jusbrasil.com.br/artigos/teoria-finalista-da-acao-e-os-atos-de-8-de-janeiro/3081764600
https://www.youtube.com/watch?v=CD-mtUTY0b4 (sobre a teoria finalista da ação)